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A dívida, o segredo, o labirinto

“Queriam nos queimar vivos”, Nuno, personagem de No Quarto da Vanda, de Pedro Costa

“Estes genealogistas da moral jamais viram até aqui, nem que fosse de maneira vaga, que o conceito de Schuld (falta, culpa), por exemplo, conceito fundamental da moral, remonta ao conceito bem material de schulden (dívida); (…) Durante o mais longo período da história humana, não punimos de maneira alguma porque pensávamos o malfeitor como responsável por sua ação, portanto de forma nenhuma pensando que apenas o culpado deve ser punido; não, como ainda fazem hoje os pais com suas crianças, nós puníamos por cólera, pelo fato de termos sido objetos de um sofrimento, e passávamos nossa cólera para o autor do sofrimento que nos foi imposto; mas esta cólera se encontrava limitada e modificada pela ideia que todo sofrimento encontra seu equivalente de uma forma ou de outra e pode ser realmente compensado, nem que fosse por uma dor infligida a seu autor. De onde tiramos esta imemorial relação, profundamente enraizada e hoje talvez inextirpável, entre o sofrimento sentido e a dor imposta ao seu autor? Eu já bem o disse: Da relação contratual entre credores e devedores, relação tão antiga quanto a existência das ‘´pessoas jurídicas’, e que se religa, por sua vez, às formas fundamentais da compra, da venda, da troca, do tráfico”.

Nietzsche, Genealogia da Moral, segunda dissertação

“(…) Enquanto que o sentido metafísico de Gritos e Sussurros produz o cadáver com vistas à morte (este constituindo-se na figura inferiorizada desta), só pensamos em Avanti! de Billy Wilder na morte graças ao cadáver que ela abandona no filme. O aspecto positivo do filme consiste então em não eludir nenhuma das formas socializadas de sua existência (a começar pelo fato de que um cadáver é alguma coisa inteiramente regida pela lei, e que não possui o mesmo valor para aqueles que o enterram). (…) Seria agora o tempo de não mais pensar o referente como grão de areia em mecânicas arcaicas, mas como o vetor necessário da positividade”.

Pascal Kané, Cahiers du cinéma 248; Avignon 73: Pour um front culturel révolutionnaire

Todo desaparecimento deixa um rastro, e podemos pensar neste contexto de evanescência ‘impressiva’ que o gênio nefasto de tantos fascismos consistiu justamente no apagamento dos rastros de tantos homens e mulheres, na consignação de um status ontológico novo (lembrem-se no Decreto lei e neblina, editado por Hitler com o fito de legitimar o desaparecimento forçado dos opositores do regime) a pessoas cuja única condição que lhes restou foi a de ‘desaparecido’, este singular quid fantasmático: “Onde tava todo mundo que tava aqui? (…) tinha até um helicóptero aquele dia!”, revela-nos mais frontalmente em Baixo Centro, perto do final, o personagem que é encarregado de narrar em tom-quase profético de ficção psicótica aquilo que permanece em sua maior parte mascarado pela crônica casual, pela observação de minuta, pelo novelesco de descontração carpe diem (“Esqueça a rivalidade, valorize cada dia”, canta um rapeiro enamorado); Baixo Centro é um filme assombrado pelo desaparecimento iminente mas um tanto subterrâneo (sim, dos efeitos do fora de campo) de toda uma comunidade, como simultaneamente de seus duos concertantes de namoro, de parceria, de ‘mit-sein’; é um filme que persegue implacavelmente ‘aqueles que não estavam mais aqui’, e como arremate de sua estratégia de captura dos desaparecidos nos oferece um fondu interminável (espécie de memento mori onde reconhecemos os fondus de Josef Sternberg em seus filmes com Marlene Dietrich: uma fixação do irrevogável através de uma inspiração fetichista) destes homens e mulheres com um close naquela Divindade encarregada de invocá-los, de reconduzi-los à presença por meio do canto, como do filme: o conto. Contos e cantos não serviram sempre para reconduzir os homens abduzidos do circuito da presença à palavra, instrumento de fixação definitivamente infenso ao Oblivium que o tempo nos reserva, presença privilegiada por sua intransitividade de celebração?

Nossa memória, nosso imaginário, nossos cantos e contos… há um beat elegíaco que é o leitmotif secreto do leitmotif evidente do rap no filme, mas este jamais descamba para o sentimentalismo de espécimes menos maturados, porque terá sempre como plataforma e coordenadas de orientação a clareira do cinema moderno: este bazinismo ‘de base infra-estrutural’ do plano-sequência, da locação, da profundidade de campo e do som direto é indispensável se quisermos entender as operações ulteriores de ressignificação (da vida capturada aí), de ‘trabalho’ efetivadas pelo filme, que se começa sob a inspiração telúrico-epifânica de Bazin jamais vai se acomodar em permanecer lá. Pensemos, para tentar entender o Jogo que está em jogo, na diacronia da temporalidade mobilizada aqui (operada pelo découpage e montagem), na distância vertiginosa dos contra-campos – como se de uma outra dimensão, revelando a estranheza subjacente ao hebdomadário documentado, a ameaça de transitividade náufraga que espreita sob cada sequência –, e como situação dramática a constatação de que estas diferenças irreconciliáveis se encravam um contexto carpe diem anticlimático de observação morosa, de digressão atenciosa, da fenomenologia da ausculta, como se o filme aprofundasse nossa impressão de Real para melhor apoiar, sobre esta fina armadura de verossimilhança realista (mas tudo sempre em pequenas pinceladas), os traços e as réstias que vão constituir uma espécie de inconsciente da catástrofe, finalmente acabada com o tiro e fondu ao noir finais.

O linguista Saussure pensou a língua em suas dimensões sincrônica e diacrônica. A sincronia se centra na análise de pontos específicos da temporalidade da língua, se dedica a um recorte preciso, geralmente de natureza causal, da linha do tempo: tópico, o sincrônico se realiza como circunscrição a um cristal de minuto de todo o horizonte do tempo, e serve a narrativas mais diretivas, lineares; a diacronia, pelo contrário, se espraia e repercute por toda a extensão do horizonte temporal da língua: ela nos permite pensar o presente como rememoração do passado e projeção do futuro, como êxtase horizontal (Heidegger) de uma linha do tempo que pode retroceder a contento, precipitar-se hesitante, ser simultânea e co-extensiva, desdobrar-se em subgrupos distintos, estacar subitamente, e permanecer Outra sendo Mesma…não é este o uso, coalescente ao intempestivo , ao casual, à rememoração como à projeção dos personagens e dos décors, da montagem em tantas sequências de Baixo Centro? Lembrem-se de que, ao realizar um corte, em geral os diretores persistem na mesma situação dramática que a sequência anterior, pois a voz do personagem, agora em off e sobreposta a um outro cenário, permanece no comando da mesma narrativa? É assim quando do encontro dos amigos no descampado em Castanheiras (recordam-se? Quando ao final pegam o ônibus…); quando da intrusão, durante a festa, da voz do fotógrafo e da conversão do namoro cinematografado em fotomontagem titubeante, ligeiramente escandida por pequenos deslocamentos no espaço; ou quando os diretores inserem, depois dos amigos tomarem o ônibus, um plano americano das amigas sentadas, fumando; uma delas conta do acidente sofrido com o namorado, e a sua palavra traumática continua a capitanear o filme, quando Belico e Marotta nos mostram seu deslocamento pelos ângulos agudos e escaninhos estreitos de inspiração expressionista que mimetizam a ameaça passada (narrada) em um ominoso labirinto atual, nesta alternância entre o fantasmagórico da voz off ubíqua e a concretude de um cenário lapidado segundo o diapasão dos planos médios ou de conjunto que se constituem no coração do filme – sempre infenso a um formalismo saturado, sempre na ausculta dos personagens e de seus sintomas –, um dúplice espacial, temporal e existencialmente: dentro e fora, agora e ontem, em duo camerístico ou solilóquio monocórdico, entre a neurose da monotonia discursiva e a psicose ultra-ficcional do fotógrafo- que sempre precisa criar uma narrativa para as imagens que captura, uma representação que as legitime, e aqui se excele num valor de uso da invenção que preenche os buracos negros narrativos do filme, configurando-se como uma espécie de vate – diagnóstico da desaparição geral das pessoas e seus modos de vida, algo que os outros, demasiado imersos na própria experiência, já não podem ver –, Nós e eles: este interstício claudicante da ação a que correspondem de maneira tão contrapontisticamente percussiva os esmerados planos fixos (volto a isso) pode ser lido como a experiência-experimento sincrético problemática, de natureza tardia, de certo classicismo do plano efígie que necessita da ‘correção’ da narrativa desregulada, do personagem problemático (aqui temos no máximo rascunhos, em matéria de ´psicologia, jamais portraits arrematados), da estrutura inacabada de um filme contemporâneo que se sente na obrigação de prestar contas aos Pais (clássicos) e aos Filhos (modernos) sem abdicar desta saturação de obscuridade, desta reticência-mor, deste rascunho e desta polifonia fora do tom que nos faz tão contemporâneos. Lembram-se de quando Serge Daney, ao falar de diretores clássicos do fantástico como Tod Browning, nos dizia que eles eram assombrados pelo referente? Baixo Centro também é um filme assombrado, embora majoritariamente pelo fora de campo da debacle social, que a esta altura já não temos nem queremos desvincular da catástrofe existencial – os monstros? a droga, índex antes de tudo da marginalidade do indivíduo aí, mais à deriva de instituições como a família, o trabalho: livre no sentido de uma situação radical, como o próprio extravio narrativo do filme ilustra –, mas isto não exclui também um assombro pela coisa que ressoa nestas alturas e estreitezas das ruas ermas filmadas, herança do expressionismo que parece complementar, pela inervação libidinal do cenário opressor, aquilo que em geral permanece oculto nos corações, e que só vai aparecer intermitentemente, num balbucio de bad trip?

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Eu falei no início de uma distância do contra-campo, outra forma de ‘trabalho’ do bazinismo através do qual os diretores de Baixo Centro, sem abandonar a démarche ‘fenomenológica realista”, acabam por refratá-la, espelhá-la, espaçá-la, dando à práxis dialética contemporânea um corpo sobre o qual esta irá se exercitar; em Fassbinder e Pedro Costa, por exemplo, o contra-campo instala um novo estado de coisas, diferindo o campo espacialmente com a radicalidade de um olhar completamente estrábico, introduzindo uma nova dimensão ou fracionando a vista anterior com uma perspectiva não mais albertiana, devedora não da centralidade do sujeito do conhecimento mas de uma margem perceptiva, vinco ou borda onde o filme, no entanto tão belamente trabalhado espacialmente, acaba por abrigar um desequilíbrio de vórtex: um efeito de estranheza hospedado na clareira de um cinema narrativo, de unheimlich do corte. Recordemos o último filme de Costa, Cavalo Dinheiro, com o qual Baixo Centro reivindica esta diferença insuturável do corte especioso, de fixidez no seio do abismo; como no filme de Costa, soerguido classicamente (ou seja: centralidade do objeto, causalidade diretiva, estabilidade do plano escrínio) sobre as bases instavelmente dinâmicas , e portanto modernas, da Revolução (dos Cravos) rememorada e de um exército de fantasmas presentificado pela percepção outra de Ventura, Baixo Centro, ao nos interpelar de vertigem com este corte tantas vezes distante – lembrem-se da caminhada da Teresa pela cidade, quando da sua narrativa do acidente, da intrusão do plano-devaneio em que Luísa é acariciada por um rapaz fantasiado de Feminino – também nos adverte sobre a volubilidade deste centro, a instabilidade desta fixidez sem cessar descentrada e cambaleante, progressivamente minada pelo fora de campo da desaparição (do homem, da comunidade) a que o filme fatalmente irá ceder: são filmes trabalhados classicamente com uma minúcia de ourives, mas os fundamentos desta arte do plano estão enraizados em território minado; dança-se, como na boutade-diagnóstico de Renoir sobre A Regra do Jogo, sobre o abismo, e o décalage da voz off (jamais completamente presente para si mesma, sempre precipitando-se sobre a próxima sequência e plasmando-a com seu interlúdio fantasma), como do contra-campo remoto nos falam de uma exterioridade plena, da impossibilidade de um autofechamento, autocentramento classicistas. Baixo Centro, apesar de ser um filme cujo ponto de apoio está no plano e não na sequência, está sempre se movendo, despenhando-se em direção à catástrofe que o corrói em surdina; há um fio muito tênue entre o seu abaulado de pedra e o penhasco sobre o qual se funda, mas este nunca é exatamente ultrapassado, apenas entrevisto de relance, sugerido de viés, entreaberto de vislumbre. Certamente eu não posso endossar uma genealogia direta neste caso, mas penso por analogia nos filmes da produtora Diagonale ao rever o filme: como em certos Vecchiali, em todo Guiguet, flerta-se com o despenhadeiro a todo momento, sem jamais abdicar do esteio clássico ‘do plano’, Vista geral ou conjunto, de uma distância de registro que assegure ao diretor o dever de nos restituir um Olhar, e o Olhar será sempre aquele que se furta à experiência imersiva do personagem, que a captura sob a égide de um para-si longitudinal, de uma Distância supra-en-scène: “Le spectacle du monde, en ce sens, nous apparaît comme omnivoyeur” (Lacan, Le Seminaire, livre XI). Esta distinção inescapável entre o Sujeito do conhecimento e o objeto de sua inspeção, que aparece na obra de Lacan sob a figura do Olhar como objeto a, causa inconsciente do desejo na economia libidinal de um sujeito aberto ao mundo, mas apenas na medida em que desempenha um papel de catalisador de sua presença ‘olhada’, aparece com clareza de címbalo ao sol em obras que a princípio poderíamos considerar como neoclássicas como Baixo Centro (relevância fulcral do espaço), mas apenas na medida em que, num segundo e mais detido diagnóstico, descobríssemos que esta distância é por sua vez sitiada pelo abismo do fora de campo; e agora me detenho um tanto sobre uma espécie de Tirésias fotógrafo do filme – sim, “Eles não podem me ver” porque é ele o encarregado do Olhar –, adivinho e vate profético de nossa experiência secreta de naufrágio. Sim, para ele a dívida, como o Segredo e o labirinto da Cidade sob a Cidade são, respectivamente, impagáveis, revelável apenas sob a forma da narrativa iniciática e transitável a passo trôpego sob a tempestade sinfônica de Iannis Xenakis. O resto é silêncio, ou deserto.

Lembram-se que é ele quem introduz no filme a primeira cisão do casal foto-filmado, e que portanto lança o dado (que jamais n’abolira…) de uma Distância abissal sobre a experiência documentada? Lembram-se da fala-diagnóstico – sim, sobre o insondável que nos cerca, sobre o perigo… – que abre este texto, e que sai de sua boca? Lembram-se que pertence a ele o fluxo de mais-valia ficcional (sim, os helicópteros) onde se captura, como em teia inexpugnável, tudo aquilo que vai nos devorar? Acho que é Leclaire, psicanalista lacaniano (ainda) que nos fala que as ficções psicóticas Édipo, Electra são invenções narrativas cuja função é, talvez literalmente demais (o psicótico crê firmemente em suas ‘estórias’), tapar o buraco do Real? Que antes seria delicioso experimentar o terror de matar a mãe, de substituir-se em assassino e cidadão ao Pai, do que encarar o nihil do Real? Sim, ainda… é por meio de sua interjeição brusca, de seu corpo inencontrável em qualquer situação – pensem no corte vertiginoso, creio que de um close para um plano geral, num bar desses náufragos, onde se vê ambos os diretores sentados e mais ninguém em torno? –, de seu desvario somático… Ele tudo vê, como verá: que é impossível à finitude humana totalmente apreender de uma voraz vez, e que portanto à arte é dada a missão de Revelação em pinceladas parciais e diferenciais, em promessas jamais inteiramente cumpridas, num décalage de montagem, numa distância de contra-campo? Sim, uma fresta: a arte é o olho da fresta, que tudo vê mas de forma fracionada, para depois, no a posteriori da montagem do espectador, perceber e capturar significativamente; mas só depois…. Baixo Centro descreve uma grande épica de naufrágio vista perversamente sob o buraco tópico da fechadura.


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