É interessante reunir no mesmo texto Dias Vazios, de Robney Bruno Almeida, e Baixo Centro, de Ewerton Belico e Samuel Marotta, ainda que sob certos riscos. Pois, evidentemente são filmes com pontos de partida e universos muito diferentes e aproximá-los pode apenas cair na armadilha de juntar duas obras exibidas no mesmo dia, no mesmo evento. Uma mera casualidade. Contudo, com todas as diferenças, ambos os filmes estão ancorados no espaço e no deslocamento como motor narrativo, algo que não é novo, nem exclusividade desses dois filmes: dentre todas as reconfigurações pela qual o cinema autoral brasileiro tem passado desde a primeira edição da Mostra Aurora, um ponto permanente é o deslocamento como gesto subsidiário do desejo de encontrar, olhar, conhecer novos espaços, lugares e possibilidades de vida comunitária. Porém, o imprevisto e a aleatoriedade que norteavam os deslocamentos em muitos filmes – da viagem de Hermila a Iguatu em O Céu de Suely, de Karim Aïnouz, até as caronas de Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo, passando pela cartografia do interior de Minas Gerais de Acidente, de Cao Guimarães e Pablo Lobato – dão lugar a deambulações mais coordenadas, incorporadas à forma do filme como modo de revelar suas personagens e facetas desconhecidas do mundo que as cerca.
Em Dias Vazios o deslocamento, mais que um dado ou procedimento, é uma pulsão: o filme é ambientado em Silvânia, pequena cidade do interior de Goiás, de onde os jovens protagonistas do filme desejam escapar para não caírem no estilo de vida a eles destinado caso permaneçam o resto de suas vidas lá. Uma imagem de estrada, com a câmera em movimento a percorrê-la, surge como um divisor entre a história de Jean e Daniel. De repente, esta imagem é cortada por uma ambulância, signo da urgência que perpassa esses jovens, mas também da morte como única possibilidade de escape. Iniciado e encerrado pelo som do mar, símbolo histórico de uma promessa de mudança nem sempre possível na iconografia do cinema brasileiro, tornado imagem no meio da trama como um sonho inalcançado, a cidade e seus espaços são arenas de um estado tedioso que aprisiona os jovens protagonistas de Dias Vazios.
Percorrer Silvânia junto das personagens é caminhar por uma cela a céu aberto, que envolve repetição e monotonia. Dividido em duas fábulas – a misteriosa história do suicídio de Jean e o desaparecimento de sua namorada Fabiana; e a busca de Daniel, com a ajuda de sua namorada Alanis, para descobrir o paradeiro da moça e o que de fato aconteceu – Dias Vazios repete espaços (a escola, o bar), ações (a entrevista com a freira coordenadora da escola), diálogos, para construir tanto um ritmo próprio daquele lugar, onde nada mais parece ter espaço, quanto a obsessão de Daniel pelo destino de Jean e Fabiana. Mas não apenas isso: o próprio filme parece obcecado por esta estrutura, tentando reproduzir, desde seu título, esse vazio, optando por certos cacoetes como o tom quase sussurrado das falas, as atuações esmorecidas tomadas de melancolia, a fotografia acinzentada de cores frias, o ritmo de ações espaçadas, ainda que a montagem e as opções de planos não caminhem para o drama alargado no tempo.
Não só pelo tema, mas também por suas opções formais, Dias Vazios se assemelha, nesse sentido, a Os Famosos e os Duendes da Morte (2009), de Esmir Filho. Em ambos os filmes, o mundo adolescente é deslocado de certo frenesi dos corpos em busca de identidade e afirmação para um estado terminal em que o diálogo só é possível num clima fúnebre que une a todos, com a diferença de que o indie do filme de Esmir Filho, algo como um espírito guia das personagem materializado na música, dá lugar aqui a uma ausência. Enquanto o filme de Esmir Filho é povoado por imagens – de internet – e sons – a música pop -, Dias Vazios relega à elipse qualquer elemento mais incisivo que desamarre o cordão de esvaziamento criado. O suicídio de Jean e o desaparecimento de Fabiana são gestos de ruptura enfáticos desse ciclo, marcando um ponto médio da narrativa. Porém, um ponto médio elíptico, secreto, relegado ao fora-de-quadro. Num filme girando em torno deste único tema – o vazio dos dias – qualquer ato extremo é uma perturbação grande demais. O indie, então, dá lugar a um outro espírito, mais obscuro: em certo momento, vê-se um pôster do disco In Utero, último álbum de estúdio do grupo estadunidense Nirvana, que redefinira pouco anos antes o zeitgeist pop com o hino “Smells Like Teen Spirit”: I’m worse at what I do best / And for this gift, I feel blessed (Eu sou pior no que faço melhor / E por essa dádiva, me sinto abençoado). Depois de Kurt Cobain, o espírito adolescente não será mais aquele dos agridoces colegiais dos filmes de John Hughes – aparentemente no horizonte de Esmir Filho e também Felipe Bragança e Marina Meliande em A Alegria (2010) – e sim uma exasperação autodepreciativa com forte carga de destruição. Mas In Utero já parece uma ressaca deste novo espírito, rapidamente absorvido pela indústria cultural, trazendo uma música bruta, suja, com vocais quase guturais, como uma voz sem potência se desfazendo em nossos ouvidos. Ou como resume os primeiros versos da canção de abertura “Serve the Servants”: Teenage angst has paid off well / Now I’m bored and old (Angústia adolescente pagou muito bem/Agora estou entediado e velho). Um gesto agressivo contra seu próprio espírito. É este tipo de gesto que Dias Vazios não consegue encampar, lutando à revelia do que narra, para sustentar seu próprio modo de narrar.
No início do filme, Daniel está na sala de aula de seu colégio católico. Vazia – mais um sinal – o garoto escreve em seu caderno a história de Jean e Fabiana que o fascina pelo mistério e pela ausência de sentido. A elipse que o gesto abrupto do suicídio coloca nos dias vazios mobiliza uma escrita que preencha lacunas, crie motivos e encontre explicações. A ficção, como motivo narrativo a partir do livro de Daniel, vem de certo modo amarrar pontas soltas, mesmo que se afaste do factual ou do desejado. Daniel e Alanis discutem o final do livro, ponderando seu lado triste, sua originalidade ou simplesmente se ele é necessário ou não. O gesto de criar uma narrativa é envolvido por um impulso de entender, fazendo da fabulação uma organização de sentidos. É nessa estrutura que Dias Vazios transita pelos espaços públicos e se refugia na privação dos quartos de suas personagens como reflexão para os deslocamentos. Uma ambivalente forma de entender a ficção na qual esvaziar é criar um sentido de “vazio” reiterado nos diversos procedimentos técnicos-estéticos e nos motivos narrativos que engendra; e fabular é explicar um certo mistério do mundo, não reverberá-lo. Esvaziar preenchendo: se o domínio da técnica narrativa é realmente notável aqui, como raramente se encontra em cineastas dedicados à narrativa convencional no cinema brasileiro, é muito difícil não se afogar nessa estrutura de reprodução de um estado moroso das personagens que sufoca progressivamente o filme com um sem número de signos e excessos. Nesse sentido, Dias Vazios é um filme ortográfico, marcado por seu desejo de correção no uso dos cacoetes para atingir um sentido preciso, ao mesmo tempo que se volta para si, obsessivamente buscando arregimentar os mistérios que cria. Deslocar é mover, não apenas externamente, mas internamente também, transformar-se. Dias Vazios busca penetrar na intimidade das personagens e no mistério de Silvânia, ainda que não se deixe levar para além das potências contidas na correção da superfície imagem.
Já Baixo Centro é um filme topográfico. Logo no início, a câmera acompanha, em plano próximo, Robert (Alexandre de Sena) andando por um cemitério, enquanto ao fundo é perceptível as modulações do terreno, entre aclives, declives e mares de morros banhados pela noite de Belo Horizonte. Esta interação entre câmera, corpo e espaço será a base narrativa de Baixo Centro: acompanhando cinco personagens que habitam as bordas da cidade, o filme percorrerá diferentes espaços junto delas, transitando entre periferia e centro, da casa ao boteco, por praças, ruas, becos, pontos de ônibus, viadutos e passarelas.
Falar em topográfico tem aqui um duplo sentido. Primeiro, na pulsão pedestre do filme em deambular por diferentes paisagens de Belo Horizonte, apontando na composição dos planos as divergências de terreno, as formações de relevo entre a periferia no alto e o centro em baixo, os acidentes geográficos no caminho das personagens espelhando um certo mal-estar que habita essa cidade aparentemente viva à noite, quando morre o dia. Ao transitar por quebradas, bocadas, vielas e arrabaldes, Baixo Centro cria uma cartografia própria dessa cidade cuja intimidade tem sido desbravada pelo cinema em tempos recentes. Ao contrário de Notas Flanantes (2009), de Clarissa Campolina, em que essa cartografia de Belo Horizonte assumia uma feição subjetiva da narradora, correspondendo a um desejo de fazer da cidade um retrato seu, Baixo Centro almeja articular uma dimensão coletiva que reconfigura, pelo caminhar, o modo de enxergar a cidade. Descrevendo as diferenças de relevo e forma das veredas no trajeto, o filme calibra periferia e centro velho, cracudos e artistas marginais, sonhadores e pragmáticos, alta e baixa cultura, o candomblé e o transcendental, rap, funk e Xenakis, não para equivaler essa pluralidade, mas fazê-las habitar o mesmo sentimento de dissolução eminente.
Com isso em vista, Baixo Centro é também topográfico em relação às personagens. As cinco personagens são como refrãos soltos nesse noturno urbano. Enquanto Djamba (Marcelo Souza e Silva) fotografa buscando registrar algo escondido nos encontros, Luísa (Barbara Colen) namora roupas em lojas de centro, como a sonhar com uma fuga de não sabe bem o quê. A câmera filma os rostos, o vagar pelas ruas, os breves encontros, um olhar ou outro perdido para o mundo, enquanto as personagens rememoram uma cidade que não é mais visível ou divagam sobre uma incerteza que se faz cada vez mais presente. Neste trânsito entre o chão de terra batida e o concreto sujo do centro esquecido, as personagens são também acidentes geográficos provocados pelo estado instável das coisas. Como em A Margem (1967), de Ozualdo Candeias, a profundidade desses seres está na fagulha de vida que ainda as torna motoras. Também lá a topografia da cidade está presente desde o título e o trânsito entre este lugar físico/simbólico – a margem – e o centro afeta e é afetado por essas vidas à revelia, cuja dureza material imprime uma subjetividade física nas personagens. Em Baixo Centro, essa subjetividade, ao contrário, só existe na superfície enquanto manifestação de erosão. As personagens do filme de Belico e Marotta não tem profundidade psicológica, apenas existência que resiste em suas últimas pulsações.
Também é preciso entender que Baixo Centro não é apenas um descrição de Belo Horizonte e seus habitantes no apagar das luzes, contentando-se em ser um “filme mineiro”, cujo lastro empático estaria nos sotaques, no reconhecimento de certas localidades da cidade ou no retrato de costumes impresso nas cenas, como agrada sempre boa parte do jornalismo cultural que corre por eventos de cinema. Há a composição de um ânimo tensionado entre personagens e mundo, o lado obscuro da realidade que ameaça devorar essas vidas flanantes. Enquanto o cinema brasileiro – em especial o mineiro – dos últimos dez anos encontrou nos deslocamentos e nas deambulações uma forma de matizar certa pluralidade do mundo e as múltiplas possibilidades de encontros, olhares e narrativas num Brasil mundializado, adequando-se ao compasso do consumo contemporâneo do capitalismo avançado – mais uma vez Notas Flanantes, mas também O Céu Sobre os Ombros (2011), de Sérgio Borges, e Desassossego – Filme das Maravilhas (2011), filme coletivo capitaneado por Felipe Bragança e Marina Meliande -, os trajetos casuais e caminhos imprevistos de Baixo Centro criam um labirinto existencial que coloca todas possibilidades de vida sob o mesmo teto tenebroso, embalando o filme no cenário de trevas do Brasil pós-golpe. Uma cidade tomada pelas trevas: a leitura de tal zeitgeist é literal.
E aí reside um dos perigos desse flanar. No debate que participei sobre o tema central da Mostra Tiradentes este ano falei sobre os deslocamentos deslumbrados pelo próprio deslocar-se, fugindo de algo que não se sabe o que é para chegar num destino que também não se tem conhecimento, mas garantindo um certo elogio do trajeto por si só. O labirinto urbano de Baixo Centro tem algo de sismógrafo de uma sensação de Brasil atual, mas esta leitura de sentimento do mundo às vezes se revela autossuficiente. Enquanto perambula sem rumo junto de suas personagens, o filme mostra uma firmeza narrativa rara, uma contradição interessante com a política de incerteza que a obra testemunha. É quando o filme se põe a narrar uma trajetória – um destino – com alguma ênfase – Robert e sua “dívida”, as vidas de outras habitantes da cidade até então esquecidos pelo filme -, quando decide dar um norte, que ele se mostra desconfortavelmente exposto. Não significa que devemos pedir dos filmes o apontamento de caminhos para a nação ou para as almas perdidas nesse labirinto que Baixo Centro formula. Não temos o direito de pedir aos artista que arte deve ser feita, Além do mais, isso nunca deu muito certo. Mas Ewerton e Marotta decidem que é preciso apontar um rumo: é quando decide fazê-lo que Baixo Centro revela a fraqueza narrativa de ter que deixar de ser sintoma ou reflexo e passar a ser proposta. Neste ponto, o filme fica afônico, ainda muito preso ao impressionismo que a primeira hora de projeção compõe com destreza. Mas Baixo Centro não é exceção: entre denúncias, pulsões, melancolias e desejos de transformação, este é ainda um ponto cego do cinema brasileiro autoral recente.
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