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Gesto fundamental

Não dá para falar de Bandeira de Retalhos sem passar pelo violão de seu diretor. Na verdade, não dá para falar da história da arte moderna no Brasil sem ir a ele. Violão perdido, porque, arremessado com justiça a uma plateia estúpida, foi rebaixado a gesto desvairado dum artista em fúria. Enfurecido Sérgio Ricardo estava, ali no 3o Festival de Música Popular Brasileira da Record, em 1967, pois o mimado público o impedia de tocar “Beto Bom de Bola” por puro fricote de querer ouvir a grande novidade musical. E, sejamos justos, uma tremenda novidade, a da Tropicália, mas a música do Sérgio não era démodé, partia dum estilo “ultrapassado” para responder forte contra os meios de produção capitalista: a tragédia de Garrincha, o homem do povo cuja figura ilumina toda uma lógica perversa de exploração que identifica a história do Brasil desde seus primeiros instantes, na era colonial. Em Quem Quebrou Meu Violão – Uma Análise da Cultura Brasileira nas Décadas de 40 a 90, escrito e lançado por Sérgio Ricardo em 1991, ele comentaria mais sobre a passagem, mas não houve ali em 1967 e nem mesmo nos anos 2000, quando Zuza Homem de Mello escreve A Era dos Festivais, uma análise mais atenta daquele gesto. Gesto, apenas gesto: é o que agrega um pintor e seu pincel à máquina do escritor, ao “olhar de enquadramento” dum cineasta que faz par com os dedos e ouvido dum músico. O gesto é, essencialmente, uma reação articulada com uma forma, um estar no mundo que instaura uma estética. O gesto é a revolução. Interditado de mostrar sua música, Sérgio Ricardo pegou o que tinha à mão e “tocou sua música” de forma, digamos, mais incisiva: se a arte não iria aos tímpanos, que então um violão quebrado atingisse os ânimos do repressor público. O instrumento de um artista ganhava, ali, uma outra forma de utilização, mas mantendo o mesmo propósito. Do violão, SR trocava o dedilhar nas cordas pelo arremesso, a dedicada ação digital pela expansão muscular dum braço agindo como catapulta. Nada diferente do que ocorre vez e outra na história da humanidade, desde as cavernas, quando o fundo destas e o sangue eram os antepassados diretos da tela e do óleo consagrados na pintura do século 15 d.C. Gestos. Gesto inaugural. Gesto fundamental.

Assim, não dá, mesmo, para falar de Bandeira de Retalhos sem falar do violão de Sergio Ricardo. Porque o gesto do violão é idêntico ao que define o artista SR. Feroz, direto, estrito, esse gesto explica a moral de ação de um típico artista dos anos 1960 no Brasil, no encontro duma estética que revelasse uma condição material do país e um projeto revolucionário. Ao trazer a revolta lírica do samba de Zé Kéti e o didatismo revolucionário do CPC (Centro Popular de Cultura), ele politizaria a bossa nova, prescrevendo o que seria a canção de protesto que figuraria ao longo dos anos 1960 e que ecoaria inclusive no Tropicalismo e nos gritos de socorro musicados dos artistas exilados na década seguinte. Da música ao cinema (e ao teatro, o de Arena), SR revoltava-se contra o mercado e assumia uma postura missionária, de artista político, deixando ao mundo pequenas rosetas como a canção “Zelão”, a trilha de Deus e o Diabo na Terra do Sol e filmes musicados (“musicados”, não musicais) dirigidos por ele, como Esse Mundo É Meu (1964) e a ópera repentista A Noite do Espantalho (1974). Marca de sua obra, o lirismo dá um rebuscamento que seria detectado só em poucos de seus parceiros de movimento cinemanovista, e um em especial: Paulo César Saraceni, onde a música tem uma presença mais formidável em construir uma ponte entre literatura e cinema, texto e imagem, narrativa e digressão intelectual. O estilo, enfim, afasta a obra de SR do desfiladeiro do funcionalismo político, do cinema como meio de doutrina, pois seu cinema, naturalista, tem no formalismo uma dimensão poética, híbrida, de lirismo trágico – Juliana do Amor Perdido (1970) merece uma revisão. E, ainda sobre aquele gesto na noite de 1967, quando Sérgio Ricardo pegou o que tinha para recriar novo sentido para um violão (nada mais criativo), ele deixaria evidente que a escrita não perde seu princípio fundador, o da criação que surge do atrito com o mundo, mas o traço virá das condições materiais desse mesmo mundo.

Localizar Bandeira de Retalhos, 44 anos após Sérgio Ricardo ter feito seu último longa de ficção, pede uma revisão de sua obra e lembrar qual é seu modus operandi. E não é como o de um Orson Welles, cuja lida com a penúria material era uma grande saga que afetava maravilhosamente as obras. Ao contrário, nunca houve tempo ruim com SR: o violão avisava, lá atrás, que basta o que estiver à mão. Há 40 anos morando no Vidigal, Sérgio Ricardo tem a sorte de contar com o grupo Nós do Morro, que engendra um projeto de formação e arte na favela condizente com o passado do morro, que em 1977 mobilizou-se contra uma ação irregular de despejo em massa promovida pelo Estado, para se construir um hotel na que é das vistas mais belas da Guanabara. É o tema do longa, que antes foi espetáculo teatral encenado por Sérgio Ricardo. Esse encontro, que pode ser chamado de “Bandeira de Retalhos, o filme”, é fruto de todo um processo histórico de um cineasta que manteve seu ideal de arte política preservado, ou seja, o espírito daqueles jovens cinemanovistas, que mudaria bem antes de 1968, repousa faceiro e atuante em Sérgio Ricardo. A aliança, agora com a comunidade do Vidigal, é um ato de engajamento. O filme, um ato de recuperação de uma história (uma narrativa) para negar a inércia do povo. A fala desiludida de Paulo Martins, sobre a alienação do povo, em Terra em Transe, não ecoa para SR, que talvez traga algo duma paisagem igual à do término de Deus e o Diabo…, ainda apostando na possibilidade de mobilização popular. Eu diria que Sérgio Ricardo não parou no tempo, e, ciente do fim dos projetos políticos e da vitória do mercado e do neoliberalismo, o que ele tem a fazer é sacudir o animal abatido, tentar reavivá-lo, gritar e correr avante como o Manuel de Deus e o Diabo na Terra do Sol, agora com ponto no horizonte mais definido (ainda que, talvez, mais longínquo, nessa era pós-golpe). Os anos Lula, inclusive, são um lastro fundamental para explicar por que Sérgio Ricardo ganhou tônus artístico nos últimos anos, em teatro, música, no curta Pé Sem Chão (2015) e neste longa.

A força da comunidade, ou melhor, da mobilização das classes oprimidas, naquele 1977 e depois promovida nos tais anos Lula, ganha sua celebração numa reconstituição histórica que, por motivos de acaso material e quiçá de escolhas pensadas, o coloca como um conto dos anos 2010. Marca da obra sergioricardiana, o lirismo entorpece o inevitável trágico que há no centro dramático do longa: o triângulo amoroso entre Tiana, o marido Neno e o ladrão e ex-namorado Bituca, enquanto os moradores passam por um truncado processo de consciência de classe até que possam, politizados, barrar a desapropriação. Bandeira de Retalhos é um típico filme dos anos 1960, em sua franca tentativa de diálogo com as massas, ser popular sem deixar de ser rebuscado, algo que alia o musical ao dedalus do CPC, numa escolha que o diretor defende hoje ipsis literis os revolucionários defenderam lá atrás: fazer uma arte para o povo.

O popular, cujo fenômeno está na lida com um inventário que é a mais sintética e plena representação de uma cultura, teve fortes erupções da chanchada e no cinema da Boca, mas a sua consumação foi na televisão. Daí que, mesmo por acaso circunstancial, não parece aberrante que em Bandeira de Retalhos haja uma convergência entre soluções cinematográficas e televisivas. Do cinema, o forte texto nos diálogos, o proseado ritmado das canções (aqui, grande marca do cinema de Sérgio Ricardo desde os anos 1960), o uso de locação. Da TV (mais especificamente das séries), uma cenografia que não se acanha em estar dentro de códigos naturalistas tipo Projac, uma iluminação que revela o artifício dos espaços internos (ainda que o efeito esteja mais próximo do teatro filmado, o que é bem interessante). Não é acessório dizer que, orçado em R$ 3 milhões, o filme obteve via TV e crowdfunding pouco mais de R$ 100 mil. A produtora Cavídeo, de Cavi Borges, fez um milagre e, no usual mutirão a que o Nós do Morro conhece bem, a ação foi a de remodelar a estética conforme as condições. Esse artesanato gera flutuações notáveis, dos arremedos na utilização de arquivos de época (cujo efeito é fantástico, pois parecem fichários colados à mão) a uma montagem e decupagem que deixam farpas mas acertam bonito na ideia de conjunto, como o ato final do triângulo romântico. O efeito, portanto, é de um conto popular que possui certa densidade formal típica dos musicais de SR lá de trás (ou melhor, típica dos filmes modernos brasileiros dos anos 1960) e também um apelo mais direto que é típico do meio mais popular da cultura brasileira, a TV. Deixemos claro que o cinema é dominante em Bandeira de Retalhos, sobretudo pela própria dimensão panorâmica que o filme ambiciona. O rei dessa espacialidade mais ampla é Antonio Pitanga, no papel de João da Lua, uma espécie de entidade, um personagem que é a própria história daquele morro contado pelo filme mas também a do próprio Cinema Novo brasileiro.

Num filme que faz o possível no impossível, a gramática é a da “teoria e prática”: o grande salto no abismo entre uma e outra é a aventura que move a arte desde as cavernas citadas acima. Sem o gesto, não há nada. “Filme dos anos 1960”, Bandeira de Retalhos é forte porque algo ainda tem de ser reparado, levado à frente nessa dívida que o Brasil mantém com sua condição histórica, com seus artistas, com Sérgio Ricardo e com o incompreendido voo daquele violão em 1967.


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