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Crônicas de Tiradentes: 3. Novos engajamentos

Em 2015 escrevi um texto discutindo a reconfiguração de forças ideológicas no cinema brasileiro que se avizinhava a partir de minhas percepções da cobertura do Festival de Brasília de 2014, quando Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós, ganhou o principal prêmio do evento e, num gesto histórico, anunciou a divisão da premiação em dinheiro com os outros filmes em competição. Foi o ano da participação, além do filme de Queirós, de Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro, Brasil S/A, de Marcelo Pedroso, Pingo D’Água, de Taciano Valério, Ela Volta na Quinta, de André Novais Oliveira, e Sem Pena, de Eugênio Puppo. A maioria desses diretores revelados nas telas de Tiradentes – para ser mais exato, apenas Eugênio Puppo não tem uma carreira acompanhada pelo festival mineiro. A cobertura jornalística se voltou em massa para tachar os filmes de Brasília daquele ano de herméticos, com linguagem experimental e atores desconhecidos ou “não-profissionais” nos créditos, sem preocupação com os caminhos normais do mercado cinematográfico brasileiro. Mais especificamente a acusação de “tiradentização” do mais tradicional festival brasileiro de cinema.

Sem alongar a discussão já presente no artigo de três anos atrás, um risco a que Tiradentes se expôs desde a criação da Mostra Aurora, dedicada a primeiros, segundos ou terceiros filmes de jovens cineastas, foi o de uma homogeneização das propostas fílmicas. Não pelos filmes, mas por discursos críticos desse tipo como o de Brasília 2014, que refletem mais uma problemática relação entre esta parcela da crítica – ligada a uma pensamento cinematográfico gestado ao longo dos anos 1990, ideologicamente em torno do mercado, da sedução do público e da qualificação técnica – e o jovem cinema independente que começou a aparecer em 2005, articulado em torno da interação arte-vida. Pois um dos exercícios da crítica é procurar semelhanças e fazer aproximações de natureza autoral, econômica, produtiva ou apenas do enredo. Contudo, uma parte importante da energia crítica está em dedicar-se à diferença para que propostas diversas de cinema não desapareçam levianamente, ainda mais quando está em jogo filmes de cineastas iniciando suas carreiras e colocando no mundo seus primeiros gestos cinematográficos.

Seria possível fazer um enquadramento de Imo na ideia pré-fabricada do que seria o “cinema de Tiradentes” a partir de alguns índices presentes em seus primeiros minutos: o plano longo fixo, com ações espaçadas, numa aproximação delicada com as personagens que tenta captar uma fagulha do real pela persistência do momento; o silêncio como sustentação retórica da elipse de sentidos mais determinados da narrativa; a presença da paisagem rural e a floresta como signos do contato com a natureza pré-civilização, como a resistir ao compasso da modernidade. Três sequências no início com três personagens femininas realizando ações pontuais cotidianas, em espaços vazios acanhados pelo tom repetitivo e intimista do silêncio interno da cena e o som do ambiente apontam algo no mesmo terreno de Mulher à Tarde (2010), primeiro longa-metragem de Affonso Uchoa, de uma certa estética do esvaziamento encontrada no cinema brasileiro autoral recente.

Mas tão logo esta espécie de prólogo alargado apresentando as personagens deixa a tela, Imo revela um gesto interessante de busca de caminhos próprios. O filme é divido em três histórias, acompanhando cada uma das personagens apresentadas no começo, como esquetes surrealistas em torno do imaginário da mulher reprimida pelos códigos sociais – dois dos três contos se passam num ambiente doméstico enquanto a terceira parece se situar numa espécie de cabaré aclimatado ao interior brasileiro. Depois de um início mais naturalista, Imo adota o tom do absurdo e do grotesco, ainda que de modo brando, para configurar ações ressignificadas por elementos imprevistos e associações de signos imagéticos. O filme utiliza repetição de ações, gestos, objetos e sons para criar tensão entre as imagens e seu significado. Imo constrói um embate interessante, pois signos de forte simbolismo na história das imagem ganham outra dimensão. Assim, a maçã não é amor ou erotismo, a água não é pureza, a nudez não é beleza transcendental, as plantas não são natureza selvagem – conceitos que fazem parte de um tradição da definição do feminino como a ambiguidade entre “natureza intocada”, por um lado, e astúcia, por outro, que Imo busca destroçar.

É claro também que Imo apresenta questões relativas à primeira proposta cinematográfica de uma jovem autora, comuns em diversos filmes de estreia não só de Tiradentes, como o jogo de citações muito evidente – no caso, da gramática do cinema de Chantal Akerman (especialmente Jeanne Dielmann) -, a confusão entre consistência de conceito e monotonia que atrapalha o ritmo do filme, uma certa precariedade material que, em determinados momentos, até colabora a favor do filme (como a brincadeira com as diversas mãos e os órgãos decepados da primeira história ou a maquiagem dos olhos arrancados do segundo segmento). O referencial estético muito claro e o deslumbre com os próprios conceitos leva o filme a oscilar sua narrativa de repetição, menos para relacionar-se violentamente com as expectativas de progressão dramática que arregimentar um gesto estético potencialmente poderoso e instigante de tatear uma outra simbologia, outro conjunto de significações, outra semântica. Isso fica claro na articulação inicial entre os planos gerais e os mais fechados, recusando o uso dos planos médios, e jogando com a escala de corpos e objetos no quadro. Ainda que não seja auto-evidente o sistema de significações, há uma pulsão forte que se desdobra quando os elementos visuais da cena e os corpos femininos parecem transitar num campo de possibilidades de proporção que nega o realismo renascentista.

Por outro lado, quando Imo assume a violência como princípio da fábula, na terceira história, esta potência é negada. Uma mulher nua é “servida” num banquete grotesco de frutas, com cinco homens engravatados conversando em língua de blábláblá ao som de um ragtime em loop. Também à mesa, uma mulher-manequim vestida em traje de gala está sentada entre dois homens. A personagem se levanta e, a partir de uma ferida causada pela mordida de um dos homens, serve seu sangue, que envenena os glutões quando a mulher-manequim substitui a personagem na mesa do banquete. A relação com o simbólico aqui é substancialmente mais palatável: a mulher-manequim é uma mulher-manequim “acessório” dos homens, a mulher servida na mesa torna-se “objeto”, as frutas ganham conotação sexual e o comportamento desses homens com a comida simula o abuso e o padrão predador. O sistema em reconfiguração das duas primeiras histórias recai num código mais delineado que expõe com clareza a violência cotidiana contra a mulher que o filme busca denunciar. Nesse sentido, Imo recai num modo explícito de lidar com suas questões – o lugar e o tratamento dado às mulheres pelos homens – que simplifica as possibilidades de reconfiguração desse imaginário, tentativa essa que, se não era plenamente satisfatória, sustentava o interesse das duas partes anteriores. Imo termina aqui por dar o que se espera e satisfazer a ânsia por catarse ao invés de radicalizar a relação de curto-circuito que um sistema simbólico imprevisto pode ativar.

No debate do filme, um jornalista questionou porque o final não foi mais radical em sua catarse vingativa, propondo um reviravolta mais intensa daquela mulher contra os machos predadores da mesa, tirando assim as personagens de Imo do lugar de vitimização que passam durante quase toda a projeção. A colocação simplória pensa em binarismos complicados quando se lida com o objeto artístico, mas é possível partir desse questionamento para deslocar seus termos mais banais e levantar uma reflexão importante para pensar as escolhas estéticas dos filmes que se propõem mais abertamente a retratar o estado de coisas da realidade (seja para falar de gênero, raça, minorias ou mesmo a macro-política). Sinto que a discussão sobre o que fazer com a matéria do real tem transitado entre dois polos principais, aflorados pelos debates de representatividade atuais: 1. a transmutação da realidade em um novo sistema semântico que abarque um desejo de mudança social e política; 2. a transposição dos dados da realidade de modo mais fidedigno possível, como a expor suas mazelas e problemas. Com muitas possibilidades no meio do caminho, a balança é sempre puxada para os extremos, como se a linguagem cinematográfica fosse apenas retórica e não semântica. Modificar a realidade pela fantasia do possível ou retratar sua tragédia com poder da câmera. As zonas intermediárias são ignoradas (ou, às vezes, problematizadas como “complicadas”), como os planos médios ausentes de Imo.

Ara Pyau – A Primavera Guarani, de Carlos Eduardo Magalhães, se insere nesse debate de uma maneira imprevista. O filme documenta uma revolta de tribos Guaranis residentes perto do Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo, pela demarcação de suas terras na região, revogada pelo governo do estado. Disputada por fazendeiros e empreiteiras, há ainda a ameaça de privatização do parque ecológico onde localizado o famoso Pico. Ara Pyau é uma descrição dos debates internos, preparação e execução da ação de protesto pelos indígenas da aldeia, a fim de revelar e propagar a boa nova deste evento real que não ganhou destaque na grande mídia.

Quando falo em “descrição” pode ficar a impressão de Ara Pyau optar apenas por procedimentos identificados com o cinema direto ou com o gesto de um filme de intervenção no calor da hora. Ainda que ambas as tendências sejam visíveis no filme – uma câmera que se posiciona como observadora das ações e acompanha a população da tribo sem intervir nos acontecimentos, ao mesmo tempo que capta os eventos no calor da hora, colocando-se no meio da ação – algo à primeira vista contraditório, o principal a se reter do documentário é seu desejo de alegrar, como se para além das tragédias da luta indígena fosse preciso exaltar as pequenas vitórias.

Desde o título, que remete às primaveras árabes do início dessa década, passando pela ideia de vitória da luta que encerra o filme, com a revogação da portaria que cancelava a demarcação das terras da tribo, Ara Pyau enfileira motivos de felicidade, integração comunitária e esperança: um pôr-do-sol com um índio armando seu arco e flecha, animais brincando no mesmo espaço de vivência das pessoas, rituais com muita música e dança de plenitude da comunidade, rodas de conversas de jovens consciente das lutas e tradições da tribo. A questão é menos de um floreamento ou não da realidade, já que possivelmente essa dinâmica de grupo da tribo Guarani assentada na região é fiel com a lógica da comunidade, assim como a vitória no caso da demarcação de fato aconteceu. O caso é observar como Ara Pyau busca transmitir em cada imagem a ideia positivamente alegre da luta da tribo, de seu engajamento e sua estratégia como povo. Um longo plano no início do filme mostra três crianças pequenas interagindo com a câmera, brincando com a lente, que por sua vez parece responder com seus movimentos a dar corda para os pequenos continuarem a rir e jogar com o aparelho cinematográfico. Nesse momento, o tom do filme é definido não apenas por essa alegria – todos temos direito de ser felizes e não é obrigatório que se mostre apenas índios sofrendo para satisfazer nosso desejo perverso de ver a resistência dos oprimidos; o que se estabelece é uma relação com o tempo que deixa para fora do filme a história como discurso ambíguo de tradição e maldição, herança e tragédia, concentrando-se apenas na descrição do momento.

Se há dois anos Vincent Carelli fez uma obra monumental de resgate e resistência da etnia Guarani-Kaiowá, resgatando sua relação com o Estado ao longo da história moderna brasileira, cujo resultado está na desastrosa e incerta situação atual, chamando esse périplo de Martírio, Ara Pyau está ancorado num presente absoluto, repleto de possibilidades de vitória, uma visão otimista de primavera e superação que resulta num engajamento carpe diem. Ainda que a história apareça em certas falas e numa palestra realizada pelos líderes da tribo para explicar como será a ação, seu tempo é o agora, como se o política fosse um evento e não um processo. A música instrumental que acentua os planos de drones mostrando as faixas e ocupação da torres de TV no Pico do Jaraguá exalta o feito, mas o relega à morte da política em favor de um tipo bastante desejado de ativismo contemporâneo: aquele que pode ser entendido, fruído, usado, celebrado, gozado, levado para casa como animal de estimação que pode ser paparicado e alimentado com a melhor ração. Não à toa, a consequência mais impactante e violenta da ação promovida pela tribo vira uma nota de rodapé, uma informação dada rapidamente por reproduções de páginas de notícias e um som off de César Tralli na Rede Globo. Num filme que busca mostrar a primavera, não há espaço – simbólico, mas também concreto no plano – para passado ou futuro, para as trevas da herança ou o mistério do desconhecido. Seu espaço é do gozo efêmero e seu tempo é imaterial. Sem fricção ou confronto, Ara Pyau é o heroísmo repaginado no âmbito das identidades à revelia da História – como o reino das ficções se propõe fazer.


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