madrigal-header

Crônicas de Tiradentes: 2. Perdidos e malditos

Madrigal para um Poeta Vivo apresenta, logo de início, um panorama muito simples e claro. Tico, o poeta do título, surge na escuridão carregando um foco de luz e calor que servirá para acender uma fogueira. Em seguida, a equipe surge no meio de uma paisagem florestal andando pelos becos naturais da mata guiados pelo protagonista, antes de letreiros com os versos de Louco (Hora de Delírio), de Junqueira Freire, e um prólogo que apresenta o coveiro escritor e dá a informação de sua morte. Nesses primeiros minutos, a questão da homenagem a Tico se coloca como processo de encontro com um personagem morto a ser desbravado e também a quem se entrega na jornada.

Nessa toada, o retrato de Tico vai constituindo um arquétipo bastante comum e apreciado no documentário brasileiro recente há pelo menos dez anos: a figura marginal, underground, fora dos padrões e do ritmo da vida urbana contemporânea. Por se tratar de um escritor inaudito, com um ganha-pão “inadequado” para a convenção burguesa do artista tradicional – Tico trabalha como coveiro -, o filme embarca na construção de uma mitologia do “poeta maldito” como figura emblemática. Uma mitologia da qual o cinema insiste em participar, ainda que o experimental no cinema tenha natureza completamente diversa e contraditória em relação à poesia marginal, com um certo modo de ação já codificado para tal construção documental. Em geral, um conjunto de relações entre as imagens que, enquanto homenageia um artista fora do padrão, busca encarnar tal espírito “louco” para fazer jus à memória.

Assim, Madrigal… abre algumas abas formais, incorporando um conjunto de estratégias diversas entre si, como versos de um poema anárquico, onde cabe a entrevista convencional, o registro ficcional que se faz falso documentário, a entrada da equipe discutindo os procedimentos do filme, a encenação teatral de uma peça de Plínio Marcos, a citação de trechos de grandes autores ou a paródia dos coveiros de Hamlet com Tico e seu amigo Menelão (Renan Rovida) num cemitério em São Paulo. Esses procedimentos, se caminham sob a batuta da inquietação em simplesmente aplicar uma forma documental única e decodificada, desenrolam-se num terreno estável, sempre anunciando sua chegada ou explicando suas saídas. Adriana Barbosa e Bruno Mello Castanho entram em cena para apresentar a ideia de encenar Plínio Marcos, assim como Junqueira Freire aclimata o espectador quando apropriado os versos “Não, não é louco. O espírito somente / É que quebrou-lhe um elo da matéria. / Pensa melhor que vós, pensa mais livre”. O filme anda por um terreno de fertilidade formal já mapeado, colocando em cena uma ideia de experimental que se basta enquanto gesto autêntico de (tentar mas não plenamente) experimentar. Traz os signos do cinema arriscado (mudar de procedimentos constantemente, misturar ficção e documentário, incorporar o processo e discutir a linguagem) sem contudo arriscar-se abertamente no mar que navega.

O maior risco no cinema documental contemporâneo de homenagem não é entregar-se ao elogio da figura retratada, como o senso comum poderia indicar, mas perder-se em suas próprias vibrações. Isso não significa, contudo, que o documentário deva simplesmente mergulhar no universo de sua personagem como lastro de retrato fidedigno ou tentar reproduzir cacoetes que “signifiquem” a essência do objeto documental. Há uma relação em jogo que o documentário experimental – e, no limite, qualquer documentário – arrisca explodir enquanto se faz. Nesse sentido, Madrigal… é um filme que se basta, a começar pela própria ideia anacrônica de “madrigal” como forma poética que se impõe sobre o gesto de dar a esse homem morto uma nova vida. Um modelo antigo, profano, mas que em sua singeleza pode ser apenas um galanteio. Um carinhoso aceno, Madrigal… se fixa na ideia do poeta maldito para além do que o material aponta. Em seu primeiro ato, o filme se concentra em Tico e sua profissão, o andar pela quadra do cemitério sob responsabilidade, sua consciência na relação entre trabalho, identidade e vida. Barbosa e Castanho apostam na constituição de uma figura singular que se revela nos depoimentos e no jeito de descrever a própria situação e trajetória até ali. Mas este primeiro sopro é logo administrado pela lógica do poeta inquieto que não se contenta com os padrões estabelecidos. Isso se torna mais evidente nas cenas mais espontâneas entre Tico e Menelão. São cenas ficcionais interativas entre os dois homens, transitando entre a declamação de poesia, as opiniões sobre a vida cotidiana, o trabalho no mundo capitalista e uma filosofia de estar no mundo. Como um alter ego mais jovem e romantizado, Menelão dá corda e cria situações, participa como o estopim de um diálogo que se revela uma queda de braço. Enquanto Menelão puxa o personagem para o centro nervoso do filme – seu mito ideológico – Tico parece resistir, criando algo mais complexo que teima em ser adequado. Na sequência mais explicita dessa tensão, Menelão senta-se à máquina e inicia frases para que Tico complete. Enquanto seu duplo coloca palavras de ordem ou pensamentos mais ligeiros de poesia e política, o poeta passa uma rasteira vivaz, trilhando caminhos inesperados. No mais rasteiro deles, Menelão grita e repete, instigando Tico, “Xô, burguês!”, de repente respondido pelo escritor “Saravá Mário de Andrade!”, um dos mais importante escritores do movimento modernista na arte brasileira, cujo centro intelectual estava na burguesia esclarecida paulistana da qual Mário e, principalmente, Oswald de Andrade faziam parte. Um ruído, não mais que lampejo, de contradição e vida por parte do personagem resistindo ao gesto cada vez mais ostensivo do filme de enquadrá-lo em certo ideário.

Sob a superfície de um filme inquieto, descontente em fixar procedimentos e construções, Madrigal… esconde um documentário de alma domesticada, apostando mais na sua ideia de marginalidade que nas potências encontradas pelo caminho. Tenta enquadrar a vida de Tico em ferramentas de construção dramática que, se parecem inusitadas, como a divisão em três atos com dois finais, todos demarcados por cartelas sobre imagens em super-8, armam um esquema reconhecível de uma vida singular que entra em decadência – o problema com a bebida, a perda de emprego e a situação de rua que quase leva ao suicídio – mas se supera, culminando no relançamento de seu livro. Filme que experimenta a divisão em atos, num gesto épico à maneira de Brecht que desemboca, a contrapelo, no mesmo sistema de atos do cinema convencional. Uma ideia adocicada de poeta maldito que, com toda sua coragem diante da vida, é exemplo de risco a espelhar o cinema. Madrigal… é um filme encantado com esta ideia que chama de sua, forçando uma adequação a este modelo do poeta anônimo, excluído, alcoólatra, frequentador dos botecos do centro velho e decadente, próprio de um imaginário folclórico de uma cidade provinciano-cosmopolita como São Paulo.

O cinema brasileiro na última década foi ao encontro de diversas figuras exemplares, cujas culturas e modos de vida inspirassem uma autoimagem dos artistas diante do compasso do mundo. Por um lado, comunidades e tipos em vias de desaparecer, de cultura tradicional e integração umbilical com a terra, a natureza e o ethos de resistência frente à modernidade atropeladora. Filmes como Aboio (2005), Vilas Volantes – O Verbo Contra o Vento (2005) ou Meu Nome é Dindi (2007) são habitados por esses modos de vida acanhados do ritmo do progresso capitalista. Em outra via, o retrato de figuras do mundo artístico, especialmente personagens marginais da cultura brasileira moderna, cujo pathos inapropriado com o mundo da técnica e eficiência contemporâneas servia de inspiração, espelhamento e afirmação para as posturas de interação entre arte e vida dos próprios cineastas: Vida (2008), Estafeta (2008), Rocha que Voa (2002), O Céu Sobre os Ombros (2010). Os primeiros tentam fazer desse ethos, pathos, traduzindo em imagens o universo cultural, filosófico e afetivo das comunidades ou personagens retratadas. O segundo conjunto de obras faz o contrário, do pathos um ethos artístico, transformando as trajetórias e ideias das personagens uma transfiguração de suas próprias (ou das que desejavam). Em ambos os casos, as potências acanhadas da relação, projetadas nos objetos do olhar dos/as cineastas, leva muitos desses filmes a produzir imagens voltadas para si, com maior (Vida, O Céu Sobre os Ombros) ou menor (Aboio, Rocha que Voa) força estético-política.

Madrigal… parece estar num lugar a meio passo disso tudo, em que o ethos moral, político e artístico já é um dado inicial, derivando um pathos em trânsito praticamente de grau zero. Madrigal… gira em torno de si mesmo e sua afirmação de valores que supostamente não precisam de forma e procedimentos a transfigurar novas potências, mas apenas reafirmarem-se a cada cena. É significativo que o filme tenha em sua segunda sequência final, entre as quatro cenas do bloco, uma passada num bar repleto sinais que denotam uma política de resistência cultural contemporânea – uma roda de samba, uma festa de lançamento literário alternativo, a bandeira da Palestina pendurada na parede – com Tico fazendo um elogio dos procedimentos realizados no processo de filmagem, descrevendo como a proposta dos cineastas o emocionou; outra com a câmera o acompanhando na saída do bar e, já na rua, deixando que o personagem se vá, com ele afastando-se da câmera (mais um sinal formal convencional para os momentos finais); e a última cena, com Tico ao longe desvanecendo embaixo da cachoeira. Essa dissolução da personagem no filme, contraditório com o sentido do “para” já contido no título, é talvez o ponto de fuga para onde Madrigal… sempre apontara.


Leia também: