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A imagem da vida

Todos os Paulos do Mundo começa com voz off de seu biografado recitando o mito da Torre de Babel, sobre a proliferação dos povos pela Terra, com suas línguas e culturas distintas confundindo-se, em desentendimento. Extraída de 500 Almas (2004), de Joel Pizzini, a fala aparece agora, neste longa de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, imantada ao começo de A Vida Provisória (1968), de Maurício Gomes Leite. Na cena, um plongée avista a cidade do alto e mergulha até Paulo José, que assiste mais de perto o movimento caótico dos pedestres, dos carros e da vida urbana. Dali, Paulo José sairá por uma sequência de cenas, ao som de “A Morte de Ivan Ilitch” de Prokofiev, usada neste Vida Provisória, primeiramente caminhando de costas, depois de frente, em seguida correndo em desespero, num compêndio que reúne O Homem Nu (1968), de Roberto Santos, a Faca de Dois Gumes (1989), de Murilo Salles, para então cair, em desespero agônico, em sequências puxadas de A Culpa (1971), do amigo Domingos Oliveira. Grave, a trilha é misturada a ecos distantes da voz do biografado. E os sentidos já estão dados: o formal, numa liberdade absoluta de utilizar imagens e vozes reunidas para um discurso desenraizado de suas matrizes; e o enredo, definindo Paulo José como um artista da condição humana, ator de afinação realista que carrega o drama da existência no mundo. Desvirtuado pelo filme, o citado mito fala agora sobre a disseminação de um ator numa outra geografia, a do cinema, da TV e do teatro, e do pensamento e intimidade de um artista. Todos os Paulos do Mundo fala sobre um ator, sobre um homem, sobre um mundo.

A voz, a forte voz de Paulo José, aparece pelos trechos de filmes, de uma e outra entrevistas que ele deu lá atrás e terceirizado pela voz de colegas de ofício. Estes incorporam Paulo José a partir de texto escrito por ele para o filme. Daí, Paulo (Milton Gonçalves) falará sobre seu apreço pelo realismo do Teatro Arena, por trazer ao palco algo da vida. Paulo (Helena Ignez) contará, também, sobre seu primeiro trabalho no cinema em O Padre e a Moça (1966). Paulo (Flávio Migliaccio) não deixará de explicar o empréstimo que a televisão dos anos 1970 faria da estética cinemanovista. Paulo (Joana Fomm), ainda, falará sobre Leila Diniz. Antes de ser um meio de levar aos ouvidos a voz de um Paulo José abatido pelo Mal de Parkinson, essa artimanha é um meio de pavimentar, via fluxo, uma narrativa sobre Paulo José que coincida com a trajetória de um artista num mundo coalhado de contradições, mazelas e belezas, violência e amor. O recurso não é, digamos, inédito, inclusive já sendo uma tendência em vários documentários biográficos, como Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz (2011, Joel Pizzini) e Cinema Novo (2016, Eryk Rocha). Mas é o que melhor relaciona o biografado ao seu contexto sem o recurso das cartelas, das falas didáticas, da fácil conexão entre depoimento e performance do artista. Em Todos os Paulos do Mundo, as coisas se misturam, numa miscigenação indicada desde a primeira sequência, que vai da voz em off ao indivíduo andando, correndo, até ir ao chão e se entrosar na matéria do mundo, da lama, da água, da natureza.

Da apresentação que deixa claro ao espectador um percurso em aberto, que vai se esbarrando em instâncias, de algo breve da biografia (“nasci em 20 de março de 1937 em Lavras do Sul”) a impressões, um registro raro em Super-8 com Fernanda Montenegro no Teatro Arena, uma longa sequência que traz a essência do lindo amor entre Paulo e Dina Sfat, e um aniversário de 80 anos do ator filmado em câmera fixa ao estilo “álbum de família”, que inscreve a “vida real” no filme e traz toda a carga ritualística de celebração da maturidade, de inevitáveis arranhaduras de vida vivida – e uma frase final no filme, “como pode ver, eu sempre tive muita sorte”, que é pura ironia, quase insinuando que a trajetória artística de Paulo José foi menos predicada por ele do que pelo mundo.

A não esquecer que Todos os Paulos do Mundo é, também, um filme essencialmente da palavra, à moda não só do cinema documental em geral como a de um de seus diretores, Rodrigo de Oliveira. Da oralidade solta nos diálogos entre amigos flutuantes de seu primeiro longa, As Horas Vulgares (2011), à escrita original duma tradição narrativa da cultura ocidental em Teobaldo Morto, Romeu Exilado (2015) e do romance clássico no curta Eclipse Solar (2016), a escrita é uma força orientadora nos filmes, quase de ordem cósmica. Agora, será um texto que determinará mais sinteticamente o princípio de encenação: o Paulo José deste filme fala “eu me sinto sendo filmado”, e em seguida o comentário surge em forma de letras saindo de sua boca, postando que toda a empreitada de Todos os Paulos do Mundo é usar imagem e som (retrabalhá-la numa reconstrução bem dentro da tradição experimental) para contar a história de uma vida, entre nascimento, amor, violência, amizade, angústia, descoberta, beleza, velhice, morte, maturidade.

O discurso cinematográfico de Todos os Paulos do Mundo pode não sublinhar ou emoldurar certas informações orientadoras típicas das biografias, mas deixa na tela, à nossa percepção, quem de fato seria o artista Paulo José, que inclusive entende a atuação como uma vivência e não uma representação, o que dá sentido ao fluxo de acontecimentos ao longo do filme, comprometendo ator e mundo (o dos filmes, que é sim um mundo real, segundo o cinema).

E o rosto de Paulo José. Um rosto que carrega a gravidade ontológica do mundo, mesmo nos momentos de forte humor, como num Macunaíma (1969) ou num Cassy Jones, O Magnífico Sedutor (1972). Um rosto que comporta sorriso e dor, humor e drama, amor e desilusão, e que consegue dar conta de um personagem como o Paulo de Todas as Mulheres do Mundo (1966). Um rosto típico do indivíduo moderno, que nos lembra sobre esse grande salto entre viver e morrer. Um rosto que insiste em ficar na tela. Um rosto que é a maior dádiva deste Todos os Paulos do Mundo.


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