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Monstruosidade contraditória

O que são “as boas maneiras” referidas no título do filme de Juliana Rojas e Marco Dutra? A expressão é carregada de sentido irônico, ao qualificar determinado comportamento (“maneiras”) como bom (“as boas”), pressupondo que exista, em contraponto, um ruim. Sob qual ponto de vista estão “as boas maneiras”? Da dupla de realizadores? Dos personagens? Do espectador? Eis o primeiro enigma de um filme que, a partir de uma fábula de horror, desenvolve a complexidade de relações sociais num Brasil urbano de ares contemporâneos, onde acontecimentos macabros se dão numa narrativa paralela à prosperidade econômica das elites e sob o alheamento do consumismo das novas classes médias frequentadoras de shoppings nobres.

Ana (Marjorie Estiano) inicia como protagonista, mas a personagem central de As Boas Maneiras é Clara (Isabél Zuaa), a empregada que aparece desconfortável logo na primeira cena, ao adentrar o prédio de luxo onde reside a futura empregadora. Da sutileza nos gestos e olhares à quantidade de obstáculos físicos que ela precisa discretamente suplantar para chegar ao apartamento de Ana, Clara tem o olhar sempre na direção do interlocutor. Nem mais pra baixo, nem mais pra cima. Sua pró-atividade garante a contratação para cuidar de uma jovem grávida que passa os dias apenas esperando nascer um bebê cujo pai ela não sabe exatamente falar a respeito.

As “boas maneiras” se intensificam no filme na segunda metade, quando Joel (Miguel Lobo), um garotinho frequentador da escola, aprende a se adequar à própria condição de “amaldiçoado” por orientação de Clara, mãe adotiva. Há aqui um curto-circuito sociológico na narrativa que encaminha o filme a outros patamares: Joel é um garoto branco, filho de burguesa pseudo-cosmopolita que é adotado pela empregada negra. Pelas circunstâncias, ele vai morar numa periferia paulistana e precisa se “comportar” (no caso aqui, ficar amarrado por correntes num bunker doméstico em noites de lua cheia), sob risco de devorar outros seres humanos, dada a condição herdada do pai. Cabe a Clara manter a boa aparência de Joel retirando os pelos que lhe cobrem todo o corpo quando de sua transformação em lobo. O ritual de prendê-lo à noite e libertá-lo na manhã seguinte é sempre seguido de um banho de banheira, onde o garoto retoma o visual de criança e a vida cotidiana.

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Este ciclo não vai durar, e As Boas Maneiras é sobre a impossibilidade de se manter as aparências incólumes por muito tempo. Se o dia-a-dia de Ana era blindado para parecer só o dia-a-dia de uma garota de classe média-alta vinda do interior para ter o filho em São Paulo (e essa máscara insistia em cair nas noites de lua cheia ou na ocasião de seu aniversário, revertendo-se em tesão e fome incontroláveis e caminhadas noturnas regidas pela lua), o de Clara e Joel se disfarça de “normal” enquanto não se revela a condição animalesca do garoto e principalmente a verdade sobre seu nascimento (num dos momentos mais fortes do filme, Ana morre por consequência de dar à luz Joel).

O elemento desagregador do ciclo operado por Clara vem de uma banalidade (do mal): o bife servido a Joel pela vizinha Amélia (Cida Moreira). Da carne e do sangue ascende a selvageria inerente ao menino, causando o descontrole evitado por Clara e derrubando os limites das “boas maneiras” que até então ela conseguira manter sob a fachada de mãe adotiva. Suas intenções são movidas pelo amor a Joel, mas também por medo do que ele é e do que pode fazer por puro instinto. Ele é, ao mesmo tempo, a benção e a herança maldita deixada por Ana. A forma cuidadosa com que Juliana Rojas e Marco Dutra explicitam essa dicotomia no desenrolar encontra explosões marcantes na cena do shopping, com o ataque ao melhor amigo; e perto do fim, quando Joel avança sobre a garotinha.

A fissura de Joel entre menino e lobo provoca sentimentos contraditórios. Reza a cartilha do filme de horror que se deve temer o monstro, mesmo que ele não tenha exatamente racionalidade em relação às próprias ações. Mas e quando o monstro é um menino de dez anos? Noël Carroll escreve, em A Filosofia do Horror, ou Paradoxos do Coração, que “os monstros são vistos como violações da natureza e como anormais, e isso se torna claro pela reação dos protagonistas. Eles não só sentem medo desses monstros; acham-nos repelentes, repugnantes, nojentos, repulsivos e impuros”. Tal caracterização de Carroll encontra eco desde a primeira aparição de Joel, ainda bebê: ele nasce na forma de pequeno lobo, e Clara reage a ele com absoluto pavor. O espectador tende a ter a mesma reação, para só em seguida se consternar com a fragilidade do recém-nascido (que, apesar disso, aparentemente devorou a mãe por dentro).

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O arquétipo do lobisomem (a regra principal é de que tal monstro só se manifesta na lua cheia) provoca uma afeição genuína à figura de Joel. O espectador se importa, de fato, com seu bem-estar, o que amplifica o impacto quando ele toma a forma monstruosa “repelente” e vai ao ataque. Quanto tempo até Joel romper os grilhões do quarto secreto? Como impedi-lo de cometer atrocidades? A fábula de As Boas Maneiras nos distrai de sua essência mais profunda, que é a de refletir de que maneira enfrentar um mal que vem de onde menos se quer ou se espera e o qual é impossível conter por muito tempo – drama similar ao de Regan (Linda Blair) em O Exorcista (1973), clássico absoluto do horror doméstico.

O clímax de As Boas Maneiras reúne organicamente a teia de relações e significados construídos em duas horas de filme. Joel deveria estar acorrentado no bunker durante a festa das crianças (é noite de lua cheia), mas agora ele se deu autonomia, reivindicou a desobediência e a liberdade e foi dançar com a amiguinha, a contragosto da mãe dele – que o procura desesperadamente. O menino não tem consciência do que pode fazer: ele ainda guarda a inocência da infância, que será destruída no momento em que a vizinhança se der conta do “perigo” que Joel representa. Ao derrubarem suas próprias boas maneiras, os moradores do bairro – tal qual a turba irracional de Frankenstein (James Whale, 1931), que persegue o monstro justamente depois de ele provocar a morte de uma garotinha – avançam sobre Joel, dispostos a linchá-lo.

Clara o leva para o único lugar onde ela identifica como seguro: o bunker doméstico, útero protegido que não vai suportar e será invadido pela massa raivosa, mundo de opressão que grita do lado de fora. Se o útero de Ana não suportou o nascimento de uma pequena criatura, o útero (simbólico) de Clara será também rompido de dentro para fora para dar lugar (possivelmente) a mais mortes e mais recomeços. A mãe aceita a condição do filho, o filho cresce aos olhos da mãe. De mãos dadas, eles se unem contra o poderio desproporcional de quem não vai mais fingir “boas maneiras”. Nem de um lado nem do outro essas “boas maneiras” se sustentam, e é à inevitabilidade dessa guerra (social, política, econômica) a que o filme parece fazer alusão. Poucas vezes um final abrupto de um fábula gritou tão alto.


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