aberturatiradentes2019-header

“E vocês aí sentados, olhando, por que não gritam?”

Abertura da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Uma banda militar toca na área interna da Cine-Tenda. As pessoas entreolham-se, estranhando a presença daquele som, que tanto ama a força (principalmente, o uso dela sobre todxs xs corpos que não seguem a normatividade que, essa mesma força, impõe). As portas abrem, rapidamente, a sala encontra-se lotada. As luzes apagam-se e começa a exibição de um vídeo: “Ato 1…”, iniciando a performance audiovisual que aborda o tema central deste ano, “Corpos Adiante”. Surge um corpo, no palco. O corpo de uma mulher negra, o corpo inteiro coberto de um brilho metálico, que dança, movimenta-se em relação com as palavras expostas no vídeo. Entra a voz da poeta/slammer Nívea Sabino, cujo corpo adentra o palco falando e performando palavras sobre a imagem de determinados corpos, os olhares sobre eles, os espaços impostos a eles, sobre as palavras que buscam apreender e limitar esses corpos. E o corpo-brilho, que já encontrava-se no palco, da dançarina/performer Elisa Nunes, debate-se, agita-se ainda mais do que antes, dança erguendo e reagindo a cada palavra pronunciada. O Corpo responde, recusa, afronta e sustenta-se sobre as Palavras, propondo outras como “resistência”, “ancestralidade” e “liberdade”.

No segundo ato, surge a atriz e culinarista Zora Santos e, em seguida, a atriz Gláucia Vandeveld. Zora lê um caderno vermelho, dizendo sobre a arte, sobre os corpos que dedicam-se a ela, que resistem junto a ela. Gláucia complementa a fala dela iniciando a apresentação da Mostra deste ano. Agora, é o vídeo que acompanha as palavras. Logo após, são apresentados os apoiadores do projeto. Sobem ao palco algumas integrantes da Universo Produção e os representantes de patrocinadores para a entrega de estatuetas de agradecimento. Em seguida passam o microfone para o homem branco engravatado, representante da Secretaria de Cultura de Minas Gerais, que começa a berrar suas palavras com grande imposição. Sobem outras figuras de poder e falam que estão juntos com a gente, mas (sempre um “mas”) que o novo governo (justamente aquele responsável por extinguir o Ministério da Cultura) pode representar a mudança e não podemos nos fechar ao “novo” que está por vir. Os Corpos, da platéia, reagem com gritos de “Lula Livre” e “Ele Não, ele nunca”, e a vaiar aquele discurso mascarado de novo e de mito quando, na verdade, não passa de um governo composto de carnes velhas, secas e podres que, famintas e sedentas, sugam e agridem com o maior fervor todxs aquelxs que não representam seus ideias. No entanto, as vozes, juntas, abafam todo o discurso impositor. E a união dessas vozes pode representar um outro gesto de política, para que os Corpos possam existir no mesmo espaço. Zora retoma o microfone. Diz algumas palavras sobre a arte, e o que acontece quando ela está sobre ameaça (como agora). E, pouco antes do terceiro ato, repete e sussurrar: “Tem coisas que existem para a gente conviver com elas”.

Ato 3: a atriz Rejane Faria fala sobre os Corpos. Suas palavras servem quase como um comentário sobre o vídeo que começa a ser exibido, composto de recortes de imagens dos Corpos presentes nos filmes da edição deste ano. Os Corpos visíveis, invisíveis, censurados, ignorados, assassinados e assassináveis, rejeitados, apropriados, estereotipados… “E vocês aí sentados, olhando, por que não gritam? (…) Quais corpos são vistos e como o são?”, pergunta, para dizer em seguida: “Como preparar esses corpos para o futuro que já aconteceu, e que acontece?”. O vídeo para, por alguns segundos, na imagem dos olhos de Grace Passô, atriz homenageada desta edição e em seguida vemos algumas entrevistas com ela.

Sobem Grace e sua mãe no palco para receberem a homenagem da Mostra. Grace agradece, e começa a dizer sobre arte e sua relação com ela:

“Eu sou um agradecimento.

(…)

A arte amplia aquilo que poderíamos ver, aquilo que nos é permitido ver. E me interesso em expandir aquilo que eu posso significar… O que que é um corpo?

Um corpo não pode ter limite.

Arte é o chão existencial e a Arte brasileira precisa entender a potência dos corpos de todos.

Arte é isso, esse coletivo aqui. E isso é lindo. (…) O homem não precisa só comer e dormir!”,

diz a mãe de Grace emocionada, ao pegar o microfone.

“O homem não precisa só comer e dormir. E um país sem arte é um país morto.”, complementa Grace.

Os Corpos envolvidos pela potência das palavras, daqueles Corpos, da Arte que ali resiste e reside, aplaudem e explodem em um momento de cativante epifania. E nesse embalo começa a pré-estréia mundial do filme Vaga Carne, de Grace Passô – estreia no cinema como diretora – e Ricardo Alves Jr. Tela preta. Uma voz. E toda potência do mundo. Assim começa Vaga Carne, filme capaz de unir (converter em potência) a diferença entre cinema e teatro – o sentimento e dimensão do corpo -, ao criar uma atmosfera sonora e cinematográfica tão intensa e carnal, ao ponto de, também, transformar os corpos-espectadores sentados nas cadeiras em Corpos, de alguma forma, ativos. Arrebatando, de forma magistral, a abertura da Mostra de Tiradentes que, quase como um retrato do Brasil em 2019 (que já aconteceu, que acontece e que está por acontecer), passa por essa performance dividindo o palco entre forças diferentes: uma atuação diretamente relacionada e embebedada de poder que opta pelo gesto de “amar a força” (palavras de Grace durante o debate do dia 19), armar a população, e impor o discurso – onde as palavras sufocam; e uma outra forma de atuar, performar e existir formada de potência que escolhe ser força, uma outra força que transforma as Palavras em movimento e construção, assim como, todxs xs Corpos. Agora, somente nos resta a pergunta: E vocês aí sentados, olhando, por que não gritam?


Leia também: