Quando Eu era Vivo, de Marco Dutra (Brasil, 2014)

fevereiro 8, 2014 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Delírios da geração Y
por Andrea Ormond

A Terra gira em torno do sol, os demônios procuram suas tocas e a gritaria sobre o cinema de horror explode no Brasil. Em janeiro de 2014, descobriram a pólvora: existe o horror nas telas do patropi. Não descobriram a essência: existe um cinema brasileiro dentro de outro e de outro e de outro. Quando Eu Era Vivo (2014), de Marco Dutra, não inaugura um gênero, nem precisa. Faz algo melhor. Dutra transgride o olhar canônico da paúra brasileira. Juntou não apenas o lado camp (Sandy Leah e Antonio Fagundes como protagonistas), mas também aprofundou um corso que abriga nomes como Walter Hugo Khouri e Carlos Hugo Christensen. O Slasher de Shock! (1984), por exemplo, passa longe do filme. Nem sinal da busca pelo “filho perfeito”, de Josefel Zanatas – há o contrário: um filhote doentio. O gênero do medo se espalha por tendências mil e o sublime na obra de Marco Dutra é vê-la adulta, sólida, no panorama contemporâneo em que o insípido se vende como potente, em que a picaretagem se vende como performance.

Quem procura o slogan do “Novíssimo Cinema Brasileiro”, deverá incluir este Quando Eu Era Vivo como momento divisor, como prova de que a geração criada pela babá eletrônica e por delírios em VHS galgou um posto. Neste sentido, Dutra e o personagem Júnior (Marat Descartes) talvez dividam preferências pessoais: os dois são membros da querida geração Y. Quando Eu Era Vivo mostra relíquias visuais, todas guardadas no “quartinho”. Aquele cômodo do apartamento em que as senhoras idosas (hoje avós, antes balzaquianas de ombreiras) estocam brindes de supermercado e tralhas em geral. No meio das tralhas, vêm os resquícios da memória.

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Trabalhar Cansa (2011), estréia de Dutra e Juliana Rojas nos longas-metragens, acompanhava um casal na idade adulta. Eram pragmáticos, pagavam as contas, criavam os filhos. Helena e Otávio quebravam a parede da loja recém-comprada e então molhavam os dedos na matéria viscosa. A poeira que subia no ar lembrava o enredo do Black Cat, de E. A. Poe (“I had walled the monster up within the tomb!”), ou até mesmo o White Dog (1982), de Samuel Fuller: um cachorro obedecia a comandos atemporais e atacava os transeuntes na rua. Em Quando Eu Era Vivo, é o humano quem atende ao chamado. Sem pragmatismo nenhum. Júnior prefere voltar à Atlantis fantasmagórica da infância. Dos cheiros, dos rituais e das cores.

Bate na porta do pai, Sênior (Antonio Fagundes). Está desempregado. Pior: chutado pela mulher e pelo filho. Começa a ter esgares esquizos, que o levam para o quartinho apetitoso. É lá que aparecem coisas como o LP de Elizângela (de dar gosto a Carlos Imperial) e um bochechudo boneco do Fofão, o mito televisivo dos anos 1980. Devo confessar que, na flor dos anos, eu própria mantinha um mesmíssimo pequerrucho e colocava-o para dormir em uma rede, à guisa de Dorival Caymmi. Marco Dutra utiliza o pobre ser inanimado em outra ambientação, muito mais terrível. Caberá ao leitor procurá-la no filme. Digamos que ela dá um toque de humor negro, além de servir de chave para a quebra mental de Júnior. É como se o mal (ou o sobrenatural) bulisse no brinquedo que certo dia foi importante para o rapaz.

Equivale a dizer: importante para a vida anterior do rapaz. O primeiro conflito de Quando Eu Era Vivo é exatamente este. A vontade de Júnior de rever o passado e a vontade de Sênior de expulsá-lo. A princípio, o roteiro de Dutra e Gabriela Amaral Almeida volta as caras para o choque natural entre pai e filho, o generation gap da literatura pós-Kinsey. Mas se em Juventude Transviada (1955) o hoje octogenário James Dean combatia um pai marmota, Júnior combate um pai quase-hipster, marombeiro e de cabelos pintados. O pai é a constatação prática da imbecilização e da higienização que varre o século XXI. Júnior o quer sujo. Luta para isso e não reconhece o pai naquele corpo domesticado. Ponto para o filme.

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Interessante que Sênior virou, ao mesmo tempo, aquele arquétipo do idoso que entope o quarto de lembranças – tentando, claro, sonegá-las dos olhos. Fala todos os clichês possíveis para isso, no melhor papel de Antonio Fagundes desde Tchau, Amor (1982), de Jean Garrett. Aliás, as vozes na TV da sala definem a filosofia senioresca. “É o que eu sempre digo: é melhor morrer com saúde”. Ora, um morto está morto, independente de desencarnar com saúde ou não. É a hora em que o riso debochado de Júnior serve de nosso riso, mas a ponte de simpatia que temos com ele logo desaparece e dá espaço ao choque (e ao arrebatamento) profundo. O processo de redenção de Júnior-Sênior bate todas as sinetas, até o amanhecer de uma cena derradeira e genial.

Na qualidade de adaptação do livro A Arte de Produzir Efeito Sem Causa, de Lourenço Mutarelli, Quando Eu Era Vivo passa obrigatoriamente pela figura do Pai – central em Mutarelli e em tantos outros seres humanos, desde a primeira fagulha do tempo, como o Raduan Nassar de Lavoura Arcaica, os irmãos Taviani de Pai Patrão ou o Moisés do Êxodo 34:1. Os nomes dos personagens fazem com que Pai e Filho sejam mutuamente referenciais. A identidade de Júnior (ou seja, o pequeno) parece ser a de repetir o velho (ou seja, o sênior). Mas Quando Eu Era Vivo não realiza uma transposição a ferro e fogo do livro. Mutarelli é apenas um ponto de partida.

Trabalhar Cansa já havia prometido um cinema com elementos glaciares, introspecção, um mal-estar khouriano. O curta As Sombras (2009) remonta um convescote visto por WHK em As Deusas (1972); Um Ramo (2004) aponta para o fantástico – e, ai de ti, professorinha, com esses galhos de árvores que se espalham pelo teu corpo branco. Agora em Quando Eu Era Vivo estamos diante de uma obra herética, com os elementos de Satanás: Júnior mastiga ovos cozidos (símbolo da alma), brinca com sal (o remédio para os maus espíritos). Miranda (Gilda Nomacce) incorpora uma manicure espírita, de lencinho no pescoço, e propõe uma oferenda macabra a Sênior. Esse aspecto caboclo do espiritismo também se fusiona ao universo gótico da mulher de vestido fechado – não direi quem é –, apontando as mãos para as cabeças de duas pessoas à sua frente. Lembram o René Magritte de Les Amants, e quem diria, habitam o mesmo filme em que bate ponto Sandy Leah.

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O cinema, incluindo os estratos menos “respeitáveis” – como o Beco da Fome e a Boca do Lixo, no Brasil – está repleto de histórias sobre cantores, vedetes, delegados de polícia, bandidos e todos os amizades que dão pinta como atores. Sandy Leah, a vestal do hit parade, recebe a ingrata missão de conviver com Sênior e Júnior no apartamento macabro – apartamento que pode ser de A Sentinela dos Malditos (clássico no subgênero das casas assombradas) ou dos anagramas de O Iluminado (referência que boa parte do público logo atribui ao longa-metragem). Em Quando Eu Era Vivo, Bruna é a inquilina de Sênior, universitária que se meteu no conflito alheio e acabou sendo tragada para ele. A existência de Bruna vem a ser melhor explicada adiante na trama, sobretudo o verdadeiro motivo de não sentir repulsa por Júnior – o que se esperaria de uma patricinha. Bruna gosta dele. Estranhamente. Com um pleno entendimento.

Em vez de profanar túmulos, profana-se a fofura de Leah. Bruna recebe Júnior nesse útero que é a casa, e estende a mão para a melancolia do rapaz. Sem pai, quem sabe tenha uma nova mãe. No espectro masculino da história, temos Júnior-Sênior e Pedro (Kiko Bertholini), o irmão mais novo da família. No espectro feminino, Bruna, Miranda, Lurdinha (Tuna Dwek, namorada de Sênior) e, além delas, a maior personagem de todas. A mulher que, ausente, faz-se presente. É dela a origem para o doce cântico de Júnior. “Minha casa é minha igreja. Minha família, meu credo”. Amém.

Quando Eu Era Vivo reativa parcerias de Trabalhar Cansa e de outros curtas do diretor: Gilda Nomacce – que, há tempos, merece um papel de protagonista –, Helena Albergaria, Marat Descartes e montagem de Juliana Rojas. Outra dupla, também formada pela ECA-USP (como Dutra e Rojas), repetia os atores-base: José Antonio Garcia e Ícaro Martins. Tudo na São Paulo dos anos 1980. Tiveram, porém, o rastro pequeno de apenas três longas-metragens e um clima pop. A graça de ser jovem para Garcia e Martins era mostrada na metralhadora de gags, nas cenas de nonchalance sexual. Dutra e Rojas vão por outro caminho: de um contato que pode parecer frio, mas é repleto de agressividade. Como o embrulho que a mãe guarda do bebê, em O Lençol Branco (2003), curta de ambos. A morte é bonita, com o seu manto de sons e consequências. Em Quando Eu Era Vivo, Marco Dutra mais uma vez inventou de beber no que é difícil. Se errasse, teríamos aqui a deprimente experiência da comédia involuntária, do circo das más atuações. Acalmem-se, porque isto não ocorre. Lá vai ele, completamente alheio à platitude dos conceitos e à bobajada crônica.

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