Sinfonia da Necrópole, de Juliana Rojas (Brasil, 2014)

julho 26, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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Sobre cantar e morrer
Marcelo Miranda (colaboração especial)

Em suas reflexões sobre distanciamento e teatro épico, Bertold Brecht defendeu a ideia de que “o desconhecido desenvolve-se somente a partir do conhecido”. A premissa é calcada na noção de que, para florescer o novo, é preciso conhecer o antigo, retorcê-lo e entregar de volta aquilo pelo que não se espera, ainda que permaneça reconhecível. Em Sinfonia da Necrópole, a diretora Juliana Rojas parte de elementos facilmente apreendidos pelo espectador – essencialmente, o ambiente do trabalho e a presença em potencial de um romance entre dois colegas – e já dali inicia um caminho de inquietações constantes com suas escolhas, ao localizar a ação do filme num cemitério de São Paulo. Os personagens são coveiros e agentes funerários, os coadjuvantes são um padre especializado na extrema-unção, um senhor que aguarda ansioso a morte e uma vendedora de flores. Todos convivem numa harmonia pautada por pequenas relações de afeto, inclusive do patrão com os empregados, tema caro a Rojas e seu parceiro, Marco Dutra, realizadores de Trabalhar Cansa (2011).No longa-metragem anterior, o choque social era provocado pela pressão do emprego; em Sinfonia da Necrópole, permanece a noção do trabalho formalizado como ponto de tensão (a imagem da capa azulada da carteira de trabalho segue um ícone identificável a projetos de Rojas e Dutra), porém essa mesma noção é também elevada à categoria de “desconhecido” pela forma como a diretora a insere dentro de uma construção de peculiaridades crescentes.

A impureza de Sinfonia da Necrópole (para ficarmos na defesa de André Bazin à mistura de linguagens e formas das outras artes dentro da mecânica do cinema) vai mais longe por se tratar essencialmente de um filme musical – ou, antes disso, ritmado pelo uso constante e pontual de músicas que substituem alguns diálogos entre personagens. Rojas equilibra o devaneio da cantoria com a concretude da realidade espacial do filme, ao sempre puxar as canções a partir de elementos vislumbráveis na cena – a pá e os tijolos dos coveiros, a sala de caixões, as gotas da chuva no parabrisa do carro, os barulhos misteriosos de uma noite no cemitério, os ossos de um defunto em avançado estado de putrefação. A evidência da pós-produção de que os atores dublaram a si mesmos nas cenas de canto fortalece a relação do filme com o “teatro épico” de Brecht, ao explicitar as fontes secundárias daquilo a que assistimos e lidar com a consciência do público de estar vinculado a uma fantasia modelada tal como apresentada na tela, sem a ambição totalizante de se esgotar numa ilusão já impossível de parecer bem-sucedida. Sinfonia da Necrópole tem por princípio estar no mundo, para só assim retirar-se dele e criar o seu próprio.

Fruto do coletivo Filmes do Caixote, o filme de Rojas faz diálogo direto com outro trabalho do grupo, o longa de estreia de Caetano Gotardo, O Que se Move, no qual a música cantada pelas personagens mantinha relação de proximidade e distanciamento com as três narrativas em cena. Ali havia um dispositivo muito claro de concluir cada entrecho com uma canção, servindo de pontuação melancólica sobre os sentimentos que as afligiam. Sinfonia da Necrópole tem outro tipo de liberdade, na medida em que Rojas entrelaça a música ao relato puro e simples, sem pontuações ou marcações, num fluxo de cenas que auxiliam a narrativa a caminhar adiante. Buscando mais elementos em outro título da Filmes do Caixote, Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra, chega-se a uma trinca de filmes na qual a música tem presença expressiva como há muito não se via no cinema brasileiro. Se o filme de Dutra não se configura nem se aproxima do gênero musical, ele tem no ritmo e na composição de notas (a canção misteriosa escrita pela mãe do protagonista e cantarolada por Marat Descartes e Sandy no ritual final) o provável elemento mais perturbador dentro de outra chave – no caso, o horror.

A relação com os gêneros cinematográficos, inclusive, vem sendo constante para Dutra, Rojas e Gotardo, no que Sinfonia da Necrópole acaba por ser um degrau ainda mais avançado. Pois se temos a peculiaridade de ele se apresentar como “um musical num cemitério”, na prática não é isso (ou não é apenas isso); se ele se vincula, em vários momentos, aos códigos da comédia de situações e de interações entre um grupo de personagens fazendo graça com humor oral e físico, também não é exatamente isso; ao fim, numa conclusão que poderia vinculá-lo ao romance (ou à comédia romântica), o sobrenatural se ensaia, aproximando o relato ao horror tão característico dos curtas de Rojas (a se destacar outro trabalho solo anterior seu, o curta O Duplo, de 2012) e uma piscadela bastante simpática a José Mojica Marins (afora coveiros como personagens, há a cena de um inseto que ameaça entrar na boca de alguém que remete aos bichos peçonhentos usados por Zé do Caixão na busca pela mulher perfeita). Desse curto-circuito delicioso, no qual o trabalho dos atores é peça fundamental para que se crie um universo de regras próprias e permita ao público aderir sem cerimônias enquanto se distancia a cada novo lance dos delírios do enredo, Sinfonia da Necrópole surge como o simulacro de uma gama infinita e complexa de elementos, cujos pontos principais são a leveza em lidar com as questões que o filme coloca a si mesmo (sendo o microcosmo representativo da especulação imobiliária, assunto em voga atualmente em várias frentes de criação no Brasil) e o prazer de fazer disso tudo uma rara experimentação de pesquisa e encantamento. Em apenas 80 minutos, o filme consegue a proeza de arquitetar e fazer interagir todos os seus elementos como se eles sempre estivessem por ali, aguardando que alguém fosse lá e os tornasse tangíveis.

A Juliana Rojas e seu elenco pouco importam noções como naturalismo, verossimilhança ou realismo – de interpretação, de montagem, de narrativa, de relato. Um rapaz com uma moça, em pleno exercício de ofício dentro de um rabecão do IML, pode cantar o amor em meio a back-projections de uma São Paulo que existe apenas no plano virtual. A impureza baziniana está não só na relação direta do filme com outras artes (especialmente a música, claro), mas no descompromisso com qualquer coisa que possa limitar seus movimentos. A cada vez que parece se aproximar do básico e do apreensível mais tradicional, Sinfonia da Necrópole faz humor consigo mesmo e dobra-se por outro caminho, sem por isso deixar de ser simples e objetivo, naquele tipo de clareza pautada pela segurança da cineasta em lidar com o material que tem em mãos.

Rojas fez, em 2012, uma versão deste filme em média-metragem, para a TV Cultura, intitulada Ópera do Cemitério, mas é como se o trabalho que apenas aparentava existir ali só desabrochasse de fato agora. Com jeito discreto e insuspeito, o longa se impõe como um tipo de realização que impele o espectador a se imiscuir nas imagens, sons e músicas – enfim, a participar da festa com o mesmo gosto com que alguns mortos se levantam da tumba para assombrarem o protagonista através do canto e da dança. O desfecho, apesar de tons melancólicos, é o mais otimista dentre os longas da Filmes do Caixote, aquele que mais possibilidades permite a seus personagens – talvez por a empolgação que se sente pulsar da tela tenha efetivamente contaminado as criações ficcionais de Juliana Rojas e não houvesse saída a não ser se render ao teor celebratório de vida que emana de cada imagem.

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