Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra (Brasil, 2014)

janeiro 25, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Juliano Gomes

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Arqueologia da perda
por Juliano Gomes

Quando Eu Era Vivo é a história de um apartamento, a transformação de um espaço, de algo que não é, a princípio, vivo. O filme concentra a ação em um espaço específico: é ele, o apartamento, o não-vivo, o principal personagem. Marco Dutra narra esse exercício de arqueologia no apartamento onde pai e filho, homônimos, moravam com sua mãe, agora morta, e seu irmão, internado. O que observamos são os efeitos desse desenterrar.

O que fazer para ser vivo? O que é ser vivo, afinal? Sob a incisiva luz branca e geral do apartamento, o personagem do pai (Antônio Fagundes) é apresentado pelos suplementos alimentares e diversos elementos que indicam essa preocupação com a saúde, com a manutenção e busca pelo corpo que dura no tempo, que não morre. Porém, é desse embate do mundo dos vivos – isto é, dos corpos – e dos não-vivos – paredes, portas, objetos e também imagens – que o filme se alimenta. Desde o início, o contraste dessas duas situações de imagem é flagrante: a imagem VHS, que mostra crianças brincando e um livro com uma ilustração de um demônio na capa, sob uma iluminação ocre; e a sala, décadas depois, com sua luz branca, seus complementos alimentares, paredes brancas e aparelhos de ginástica. Trata-se de uma casa que parece assassinada pela assepsia, mas que guarda em sua porção recôndita essa reserva de morte, de ação do tempo. A casa é então um corpo que vai descobrir sua doença e espalhá-la em si mesma, para poder enfim reviver.

É esse o conflito de lógicas em jogo: é preciso poder morrer, permitir um lugar para o obscuro, para o que não é perpetuação indefinida. Daí a importância e o protagonismo dos objetos. A bastante expressiva direção de arte de Luana Demange revela a força dessa transição de natureza da casa-corpo e povoa com esses corpos ocos o templo no qual a casa vai se tornar – câmara de objetos inúteis, dessas imagens que, embora materiais, não são corpo, que não perecem mas quebram. São esses objetos que vão dominar o espaço e que vão abrir a possibilidade desse vivo que parecia apartado antes da volta de Júnior, o filho (Marat Descartes).

Em contraste com os objetos, os corpos: Marat Descartes, Antonio Fagundes e Sandy Leah. Júnior é o corpo em transformação, aquele que volta de fora, para quem é preciso, muito rapidamente, transformar-se em outra coisa: adoecer, enlouquecer, colapsar. Matos, o pai (Fagundes), é o corpo que quer durar, manter-se, afastar as ameaças, buscar ser são – e, afinal, é este o corpo que precisará ser modificado. É notável a construção precisa de sua caracterização, que marca essa luta que é central no filme: a pele morena artificial, assim como o cabelo, e seus movimentos pesados, que parecem buscar uma leveza, uma saúde, que não pode ser atingida. É tarde demais. O que ele busca e o que ele imprime na tela são opostos. Por sua vez, Bruna (Sandy) é o corpo da sensualidade (saúde), mas que quase realiza o projeto do desejo de inorgânico, pois a cada close de sua pele, de seus cílios irretocáveis (num belo trabalho de maquiagem de André Anastácio, deixando ver suas camadas), mais ela se aproxima dos bonecos. Bruna é quase de louça. Ela é o autômato do jogo – daí talvez seu trajeto dramático absolutamente artificial no filme, ao aderir sem resistência alguma ao movimento de Júnior e ser agente deflagradora da implosão final. Ela é a materialização (também no sentido espírita) desse “terror do branco” que é um dos eixos principais de grande parte do cinema de Marco Dutra, que não funciona por sombras, mas por superfícies lisas: louças, lençóis, azulejos. O corpo de Bruna é a ação dessa força branca, vazia por dentro, quase objeto, artificial e bela, onde a sensualidade pode existir (a música é ingrediente essencial dessa relação: ela entende essa língua); é a boneca que se move, numa manobra absolutamente bem sucedida de incorporação do lastro icônico da imagem pública de Sandy; é a única que vem de fato de fora, e pode assim refazer o papel da mulher nesse espaço ritualístico.

Trata-se de um filme de interiores, não só pelo espaço da casa preencher todo o filme, mas pelo foco na emergência de o que está guardado “dentro”. O paralelo corpo-casa se dá nessa chave pela qual é preciso procurar nos espaços escondidos essa memória, essa reserva que parecia anulada. É preciso desocultar essa parcela ocultista, que é ameaça mas que é condição de “ser vivo”. Júnior deseja seu interior; o pai quer esconder seu interior; e Bruna, moça do interior, é vazia por dentro.

Dentro dessa reserva que o filme vai desrecalcar estão as imagens VHS que Júnior vai descobrir e que vão guiá-lo em sua busca. Nessas imagens, parecem se realizar as operações de encenação mais incisivamente amedrontadoras. Não só pela mudança do registro de luz, mas pela força de distribuição dos corpos no espaço, nos quadros vivos, mas imóveis, compostos com precisão na sua imobilidade ameaçadora, e também nos movimentos de câmera, com os quais o papel das crianças é ressaltado. Em contraste com diversos momentos em que as ferramentas de “dar susto” são usadas à exaustão (principalmente com irrupção de ruídos altos quebrando silêncios), a presença das crianças na cena, especialmente do pródigo caçula, e sua ameaçadora inofensividade parecem ser as imagens que realizam de fato esse projeto do terror pelo contrário dos elementos tradicionais.

Há, nessas imagens de brincadeiras infantis, algo que não deixa vazar tanto a impressão de controle que domina todo o filme. Se Quando Eu Era Vivo é uma história da doença como veículo de afeto, não se trata de nenhuma maneira de um filme doente na sua forma. A economia, que era um tema mais evidente em Trabalhar Cansa, é o meio de propulsão narrativa aqui, na acentuação de suas elipses, e na fidelidade de foco que o filme não abandona, mas acentua. Nesse sentido, se os personagens conseguem realizar o ritual que os fará vivos novamente, pela canção e pela palavra, o filme não se deixa espelhar por este processo, refletindo esse embate entre o liso, o inumano e o doente, o louco, aquilo que se degenera. O filme não pode abandonar seus propósitos, não tem tempo nem nada a perder. E é perder que está no centro da trama, aprender a perder.

Assim como O Que se Move (2012), de Caetano Gotardo (que faz uma ponta aqui), a questão de como repreencher um espaço diante da morte é respondida por uma canção, no sentido de ressensualização possível da experiência cotidiana dilacerada. A busca dessa força de regressão (da infância ao VHS) além de ser, numa chave de espelhamento, um índice do anacronismo do projeto estético de Dutra (que parece buscar recuperar alguma coisa cuja forma não se pode perceber ao certo, mas que parece recalcada em algum lugar que quase só ele e Juliana Rojas enxergam, daí a relevância política dessa falsa nostalgia) é também a busca de uma beleza que é do domínio do informe, do pré-formado, território tradicionalmente explorado pelo cinema de terror, no qual não é clara nem mesmo a divisão entre vivos e mortos, orgânicos e inorgânicos, paredes ou peles. Nessa trajetória singular de tal projeto, Quando Eu Era Vivo é um passo importante em reafirmar que a força dessa busca é também seu perigo maior, que dentro do filme essa clareza absoluta pode se tornar desrazão, mas em suas engrenagens ela resulta numa impressão de controle que impede que esse branco se torne mesmo patologia, restringindo seu poder de afetar. O perigo e a sedução da maestria (aqui num patamar bastante acima da média do cinema dessa geração de diretores) é o esfriamento das mãos. A força cristalina de Quando Eu Era Vivo deixa ver essa dubiedade de uma construção precisa, do alcance de mecanismos racionais, e de seu revés, sua fobia pela própria cegueira e desmoronamento.

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