Sinfonia da Necrópole, de Juliana Rojas (Brasil, 2014)

setembro 1, 2016 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Amor à morte
por Andrea Ormond

Sinfonia da Necrópole provocaria risadas involuntárias no espectador, bastando um detalhe: que as músicas fossem ruins. O que conquista de imediato, portanto, é que as canções apresentadas são ótimas. Em um musical passado quase todo dentro de um cemitério, eis que ouvimos coisas lindas. Perdoem a digressão, mas sinto ali toda uma gama de influências de grupos brasileiros dos anos 1970 como A Barca do Sol, Jaime Além e Nair Cândia, Guilherme Lamounier. Então o que poderia soar humorístico, sinistro ou despropositado, termina virando lirismo. A cena do carro, na chuva, é das mais plangentes que o cinema brasileiro produziu nos últimos tempos.

Quase tudo no filme segue essa reversão de expectativas. A preparação para sustos vai sendo substituída por encantamento. E estranheza. Jaqueline (Luciana Paes), gestora da reforma no cemitério, por alguns ângulos é feia e pouco atraente. Por outros é quase uma sex symbol. Sente um prazer neurótico-obsessivo na catalogação dos túmulos. E, no refluxo freudiano, um gozo histérico na dominação mistress que exerce sobre Deodato (Eduardo Gomes, ator com nome de Brigadeiro). Já Deodato, coveiro-protagonista, é alguém que se situa alijado do ambiente de trabalho. Na verdade, o cemitério para ele significa um tormento, pois não consegue elucubrar que a morte não será reclamante de nada e os mortos não sofrem. Enxergando nos defuntos uma espécie de sentido que já perderam, Deodato vira estorvo ao pragmatismo pachorrento dos outros funcionários.

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Notem que a diretora Juliana Rojas opera com segurança a história e os personagens, pois guarda na manga um trunfo ímpar: conhece (e manipula) referências da cinematografia nacional – paulista, em particular – evitando o velho mal de querer reinventar a roda, ou inspirar-se acriticamente em modelos estrangeiros. O amor por São Paulo, em Sinfonia da Necrópole, não está apenas na óbvia alusão à Sinfonia da Metrópole de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny – que, por sua vez, era alusão a um documentário sobre Berlim… Um olhar treinado perceberá, nos filmes de Juliana (e de Marco Dutra, que dessa vez assina apenas as canções), liberdades discretas com o chamado neon-realismo, as profundezas khourianas, a irreverência de José Antonio Garcia. Trabalhar Cansa era obra de quem perdeu noites de sono vendo Cordélia, Cordélia, Uma Mulher Para Sábado, Cidade Oculta e tutti quanti.

São Paulo está presente até mesmo na letra da música em que o diretor do cemitério comunica a expansão do número de jazigos. O espúrio dança na corda bamba: uma canção para explicar a expansão do número de jazigos (?). Mais louca é a associação crescente entre a atração física de Deodato por Jaqueline e a mórbida tarefa que executam. Nekromantik (1987), do diretor alemão Jörg Buttgereit, já misturava esqueletos in natura com romance e tesão, só que para estômagos fortes. Sinfonia pode ser visto por crianças; e certa fofura excessiva, em meio à profanação do campo santo, é outra excentricidade da história. Se em Quando Eu Era Vivo, Dutra profanava a “ingenuidade” de Sandy Leah, podemos dizer que em Sinfonia Juliana encheu de um aspecto lúdico aquele bozó que desgraçou com a vida de três gerações do elenco de Poltergeist.

Curioso que 2016 trouxe aos cinemas outro musical “diferente”, também ambientado em São Paulo e também com Luciana Paes no elenco: Amor em Sampa, de Carlos Alberto Riccelli, uma comédia romântica com resultado bem mais aterrorizante que Sinfonia. O erro começa pelo título: chamar São Paulo de “Sampa” é como chamar Belo Horizonte de “Belô”, coisa do Tio Sukita. Ou de carioca, tirando onda na ponte aérea. Apesar de bem-intencionado, Amor Em Sampa ganha ares de vergonha alheia não só por colecionar lugares comuns, mas justamente por se basear em números musicais constrangedores.

Falando no Tio Sukita, os mais velhos, que sofreram o século XX, devem se lembrar de Reginaldo, da novela De Corpo e Alma, vivido pelo eterno amigo do Romário, o peixe Eri Johnson. O rapaz, um gótico suburbano, nutria paixão não-correspondida por Yasmin (Daniela Perez). Não, não estou sugerindo com Poltergeist e o “Caso Daniela Perez” que o sobrenatural virá em breve se vingar da diretora de Sinfonia da Necrópole, me deixem terminar. A trama noveleira, hoje nos cafundós do passado, apresentava de modo caricatural – como sói acontecer em novelas da Globo – a onda Dark, movimento que fez relativo sucesso no Brasil do começo da década de 1980. Reginaldo, uniformizado de preto, obcecado pela morte, era também uma espécie de simbolista tardio, um Augusto dos Anjos pós-punk. Deodato, Jaqueline e Sinfonia da Necrópole são antíteses dos Reginaldos. Através da morte, cultuam a vida. Levantam, do terror, algo próximo a amor. E antes que alguém comece a cantar “Day by Day” e garotas hippies entrem pelos cantos da página, convém lembrarmos que sobra nesse amor um bocado de cinismo. A morte é cínica, inexorável e inteligente nos artifícios que enreda. Uma boa definição para o cinema de Juliana Rojas.

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