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As cidades onde vivo, temo e enlouqueço

.49º Festival de Brasília.

Três filmes no Festival de Brasília 2016 – o curta-metragem Estado Itinerante , de Ana Carolina Soares, e os longas A Cidade onde Envelheço, de Marília Rocha, e Elon não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr. – têm Belo Horizonte como ambientação, menos na geografia da cidade como ponto de partida do que nos espaços urbanos a servir de moldura para deslocamentos ou prisões, trajetórias erráticas ou desvios de caminho. São, antes de tudo, filmes sobre como o enquadramento desvela ou omite o espaço ao redor e o quanto a escolha de mostrar a paisagem – natural ou construída – da cidade são princípios estéticos a cada trabalho. A Belo Horizonte destes filmes aparece, em cada um, universal e familiar, sempre remodelada a apreensões distintas. A alegria aberta ao mundo e ao afeto, a prisão no espaço público, o enclausuramento físico e mental em looping: o conjunto dos filmes, se visto como linha de encaminhamento, é uma espécie de trânsito do céu para o inferno, da aurora ao crepúsculo, do início dos tempos ao apocalipse.

A Cidade onde Envelheço, de Marília Rocha, carrega, desde o título, o olhar para o futuro, para alguma perspectiva, talvez até o vislumbre otimista de uma vida possivelmente serena, em que reconhecer e aceitar o espaço onde se habita é essencial para o entendimento das boas novas do porvir. O filme tateia o apartamento onde mora Francisca (Francisca Manuel) a partir da chegada de Teresa (Elizabete Francisco), em consonância com os périplos pela cidade e os encontros que acontecem no corpo a corpo com a urbe. As amigas portuguesas fazem de Belo Horizonte um novo lar, na busca por melhores condições de vida e trabalho. Elas representam o movimento típico de imigração como escape das crises financeiras globais, aqui apresentado sem maiores contornos políticos que não o conhecimento prévio de que Portugal está numa berlinda socioeconômica que empurra as pessoas para o exílio.

O filme de Marília nega a intriga e a tautologia em prol de movimentos que tentam imitar o fluxo da vida tal como vivenciada pelo indivíduo fora da tela. Jacques Rancière já escreveu que uma das contradições do cinema quando visto como “arte realista” é a de que a presença das pessoas no mundo não se desenvolve por intrigas previamente apresentadas, reviravoltas, desenvolvimento de dramas ou desfechos rocambolescos, tal um filme de pegada mais clássica e convencional: “A vida não conhece histórias. Não conhece ações orientadas para fins, mas somente situações abertas em todas as direções. Ela não conhece progressões dramáticas, mas um movimento longo, contínuo, feito de uma infinidade de micromovimentos”. Sob esse aspecto, a cidade no filme representa simultaneidade de situações, acúmulo de desafios e obstáculos do dia-a-dia, impossibilidade de se dar fecho ao que é ofertado pelas aventuras do cotidiano. Marília Rocha não faz exatamente o que se chamaria “filme realista” (nem esta é sua intenção), e sim um filme repleto das somas de experiências de duas garotas estrangeiras se ajeitando ao novo mundo. Francisca é mais veterana, tem trabalho remunerado e relações estabelecidas; Teresa é recém-chegada, prefere flanar sem rumo nem compromisso pelas ruas do centro e pelas baladas de rock, num misto de familiaridade crescente com o novo ambiente e recusa a realmente se inserir e fazer parte dele (pois isso a desconectará de sua terra natal).

A surpresa vem com a inversão de relações: Francisca, a estabelecida, revela o desejo de retornar a Portugal; Teresa, a flâneuse, deve aceitar o destino autoimposto e substituir a amiga. O lance de roteiro – talvez o maior (senão o único) acontecimento de envergadura do filme, que quase o leva a resoluções incompatíveis com a coesão percebida num sentido amplo – faz o filme se expandir, pois passa a haver uma transferência de herança afetiva entre as amigas. As cenas dentro do apartamento, recheadas da beleza da frugalidade e do cuidado da fotografia (a cargo de Ivo Lopes Araújo) em capturar gestos mínimos, movimentos amplos e olhares das atrizes, dão liga à percepção de sermos levados pela dança daqueles corpos e de suas interações, tal como por vezes acontece em filmes de Claire Denis ou Hou Hsiao-Hsien. Na rua, a caminhada pela multidão da metrópole é estimulada pela boa relação criada principalmente por Teresa com aqueles com quem se encontra. Ao filme jamais interessam encontros de conflito, apenas de empatia.

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A Cidade Onde Envelheço (2016), Marília Rocha

A característica de A Cidade onde Envelheço de deixar ver somente fragmentos de beleza é, ao mesmo tempo, um trunfo e uma armadilha. A habilidade de Marília Rocha em efetivamente dar corpo e vida a Teresa e Francisca é o que há de mais intenso no filme. Há de fato a sensação de se viver com aquelas garotas, de compartilhar os instantes, de poder estar na próxima esquina onde elas irão passar, de morar um pouquinho dentro do filme. Por outro lado, o excesso de sentimentos primaveris e a ausência de embates, seja com o próximo ou com o mundo e suas contradições e dificuldades, carrega o filme a uma agradável e oportuna zona de conforto de duração limitada. A “bolha” de A Cidade onde Envelheço contrasta com o filme anterior de Marília Rocha, A Falta que me Faz (2009), no qual o dia-a-dia de um pequeno grupo de garotas na Serra do Espinhaço, região rural de Minas Gerais, apresentava-se cheio de ruídos e contradições nos embates íntimos das meninas com as exigências sociais impostas a elas.

A Falta que me Faz também se relacionava intensamente com o espaço habitado pelas quatro garotas documentadas, e ele afetava diretamente a estética do que se via. Em texto aqui na Cinética, em 2009, Francis Vogner dos Reis apontou o que emergia dessa relação entre os corpos e a natureza: “É o fascínio pela própria integridade das coisas e, assim como em Stromboli, de Roberto Rossellini, o filme nos dá a ver a rusticidade da pedra, dos corpos, do céu. Não há retórica sobre a beleza, a beleza existe pela evidência das coisas que nos são dadas a ver. É uma beleza imanente”. Ao levar a câmera para a cidade grande, o cinema de Marília Rocha deixou em hibernação, lá na natureza da serra mineira, as pressões e os embates com o ambiente, com as tradições, com a família e com as convenções socioculturais. É inevitável que, neste processo, haja uma perda (política, especialmente). O que antes era tensionado agora não afeta a mais ninguém. O estrangeirismo de Teresa e Francisca em A Cidade onde Envelheço é um estrangeirismo de nação, jamais de inadequação (como era o das garotas de A Falta que me Faz, tão presença intrínseca à terra quanto deslocadas dentro de suas intimidades).

Em Estado Itinerante, ambientado na mesma Belo Horizonte do filme de Marília, o conflito vai aparecer fora do espaço solar de A Cidade onde Envelheço. Sai-se do centro e se vai à periferia (o bairro Boa Vista), onde está Vivi (Lira Ribas), a protagonista. Trocadora/cobradora de ônibus com pouco tempo de serviço, ela passa os dias indo e vindo nas linhas da cidade e as noites tentando não ser agredida pelo marido. O filme de Ana Carolina Soares tem uma escolha proposital e propositiva: a inexistência de ambientes privados. Toda a movimentação de Vivi se dá nas ruas, nos ônibus, nos bares, nos descansos do ponto final da linha. A ela não é permitido o conforto do lar, o quarto da pensão ou a sala de alguma amiga. Tudo é mostrado diante dos olhos do espectador e de quem mais ocupar o espaço por onde Vivi circula.

Tal como Teresa e Francisca de A Cidade onde Envelheço, a Vivi de Estado Itinerante está sujeita a encontros, porém alguns deles apenas lhe aumentam o fardo da sobrevivência e o temor da violência. Ela certamente tem dúvidas sobre envelhecer na cidade onde mora. Ana Carolina acompanha a personagem num despojamento dos bate-papos tal qual as operárias de Carlos Reichenbach em Garotas do ABC (2003) e Falsa Loura (2007) – ainda que sem o estranhamento destas nas interpretações propositadamente desarranjadas, pois, em Estado Itinerante, o registro é o da ficção de viés naturalista – e pequenos instantes de suspensão que colocam o corpo de Vivi em constante perigo.

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Estado Itinerante (2016), Ana Carolina Soares

Os prédios vistos ao fundo nos planos mais abertos são como grades da prisão pública a que a moça está submetida. Filmar o momento mais íntimo e catártico de Vivi (a dança alucinada ao som de “Don’t Cry”, dos Guns N’Roses) com a câmera muito próxima ao corpo da atriz acaba por ser uma operação de libertação às avessas: a moça só consegue se movimentar sem amarras quando é aprisionada no plano, sem se expor aos perigos de quadros abertos que a comprimem em espaços de onde ela quer escapar. O prazer do espaço, em Estado Itinerante, não existe. Quanto mais amplo o plano, maior a ameaça.

A delimitação do quadro é também elemento de articulação em Elon não Acredita na Morte. No filme de Ricardo Alves Jr., há a adesão total e irrestrita, durante toda a projeção, ao personagem central, Elon Rabin, em busca da esposa desaparecida. A ameaça está menos no mundo (como em Estado Itinerante) do que no próprio corpo do protagonista, espécie de intruso malvisto em qualquer ambiente por onde circula. O espaço, aqui, é hostil, feio e mal-iluminado, sempre uma barreira à individualidade de Elon. Suas intenções parecem nobres (achar a mulher), mas as reações a ele tendem à raiva e à resignação. A intriga (aqui temos um filme de intriga desde a premissa, de fato um filme de pura ação) parece ter se iniciado antes do primeiro plano, ainda antes da existência do filme enquanto articulação. Ricardo Alves Jr. filma o fragmento de um enredo maior, sobre o qual não são apresentadas informações extra-fílmicas. O que se deve saber a respeito do que acontece ou aconteceu está dentro de sua duração. Tremor (2013), curta-metragem que antecede a Elon não Acredita na Morte, era o preâmbulo da saga do mesmo personagem, condensada em 10 minutos de andanças por corredores claustrofóbicos de repartições públicas. O longa faz o curioso movimento de expandir as buscas de Elon sem expandir qualquer pano de fundo que lhe dê mais empatia ou consistência. A opacidade do curta anterior se mantém; Elon segue como personagem-enigma, habitando um mundo, por sua vez, enigma para o qual somos apenas convidados a entrar, quase nunca a compreender.

Os espaços opressores por onde Elon circula se caracterizam pelas escolhas de enquadramento, num trabalho de coautoria com o fotógrafo Matheus Rocha. O planos são fechados nas bordas e abertos na perspectiva, permitindo que, na maioria das vezes, a profundidade de campo seja convocada à encenação. Elon caminha para frente, sempre para frente (e para baixo, no incessante descer de escadas que já era o princípio estético de Tremor). A câmera a acompanhá-lo pelas costas dá a perspectiva somente do que está adiante dele, impossibilitando o recuo e o andar para trás, como se os lugares por onde Elon transita se implodissem a cada passo para frente, restando somente seu corpo e seus gestos, “cujos limites assaltam sem cessar a carne pulsante da realidade”, como nas palavras de Jacques Rivette ao escrever sobre A Tortura do Silêncio, 1953, de Hitchcock. A ficção do filme é ampliada pelo senso de urgência da mise-en-scène, que não se furta de explicitar procedimentos muito rigorosos e encontra na presença perturbadora de Rômulo Braga, no papel de Elon, um de seus maiores trunfos.

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O périplo de Elon se dá na mesma Belo Horizonte de A Cidade onde Envelheço e Estado Itinerante, mas apenas enquanto espaço geográfico previamente reconhecido. Na tela, são ambientes completamente díspares, tanto na abordagem visual quanto nos sentidos de afetação à ação de cada filme. A luminosidade urbana de A Cidade onde Envelheço exclui o medo e o confronto; o público e o privado se conjugam como riscos iminentes em Estado Itinerante; a internalização das angústias se projeta como imagens de perturbação em Elon não Acredita na Morte. O filme de Ricardo Alves Jr. habita universos similares aos de Franz Kafka (O Processo e O Castelo vêm à mente com regularidade) e se configura uma releitura da saga de Orfeu, que tenta resgatar a mulher amada dos confins do inferno e não consegue. Os motivos e as ações são outros, mas o efeito é o mesmo: na materialidade da perda, Orfeu e Elon recusam a dor da verdade e criam, para si, estratégias que debelem ou adiem a tragédia.

O enclausuramento, tanto no enquadramento quanto nos espaços de circulação de Elon, estavam nos filmes anteriores de Ricardo Alves Jr. – Material Bruto (2006), Convite para Jantar com o Camarada Stálin (2007), Permanências (2011) e Tremor – todos construídos em articulações que sufocavam os corpos no rigor do quadro e na melancolia do abandono. Mas algo muda em Elon não Acredita na Morte. Agora o isolamento de antes se abre aos encontros (poderíamos chamar também de obstáculos), que ampliam a sensação de que não há saída. A cada reação agressiva ou indiferente das pessoas com quem Elon encontra, fica a impressão de que ele interagiu com essa mesma pessoa, do mesmo jeito, há minutos, horas, talvez dias antes. O eterno retorno, aqui, é menos físico do que afetivo ou mental; as idas e vindas de Elon não têm fim e não deverão acabar nunca, mesmo após o filme se concluir na convicção do “não” adiantada no título.

É um filme em moto perpetuo, reenergizado pelo próprio ir e vir dentro dos mesmos movimentos. Diferente de um O Cavalo de Turim (Béla Tarr, 2011) – no qual a repetição das ações era apreendida e sentida na relação direta e coincidente entre o tempo da projeção e o tempo do espectador que observa sentado na plateia –, em Elon não Acredita na Morte a repetição é de finalidade e o filme é a ação da repetição, como se, ao aparecerem os créditos finais (aqui em movimento descendente, de cima para baixo), a via-crúcis de Elon fosse imediatamente se reiniciar. O filme em si é como o demônio nietzschiano a avisar a Elon: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência”.

A analogia com o demônio imaginário de Nietzsche configura Elon como protagonista de uma cidade que o repele, radicalmente diferente da urbe acolhedora de A Cidade onde Envelheço. Elon é muito mais estrangeiro na sua Belo Horizonte do que as portuguesas Teresa e Francisca, e seus perigos estão mais na ordem do pesadelo e do delírio do que a realidade brutal da violência urbana e doméstica de Estado Itinerante. Nos três, o encontro com o outro na paisagem urbana contemporânea é o ponto deflagrador da ação e do movimento, partindo do quase conto de fadas (Marília Rocha), passando pelo realismo social (Ana Carolina Soares) e chegando à indefinição do registro (Ricardo Alves Jr). Os caminhos apontados por cada filme dizem muito das experiências possíveis nesse aglomerado de prédios e gentes e salas e portas e corredores e ruas.


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