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No meio do caminho

Em uma entrevista de 2012 publicada no livro El Otro Cine de Eduardo Coutinho, o diretor de Moscou diz que a obra em questão “é um filme que deu errado, mas eu considero ao mesmo tempo que tem um mistério interessante”. Essa caracterização de Moscou como um fracasso acompanha o filme desde seu lançamento, assim como, em diversos artigos, as palavras-chaves “incompletude” ou “inacabamento” ou sua dificuldade se comparada à aparente frontalidade de sentidos de seus filmes ao longo dos anos 2000. Passada quase uma década, rever Moscou é uma experiência de descoberta, reconfiguração e deleite com um filme que se desvela central na obra do mais importante cineasta brasileiro deste século.

De início, Moscou parece estar em continuidade com o filme anterior de Coutinho, Jogo de cena, na metodologia austera já conhecida do cineasta (sua “camisa de força”), além de compartilhar com este o teatro como o espaço onde se concentra o filme. Já com alguns minutos de projeção, uma cena de reunião com a presença de Eduardo Coutinho explicita o jogo de cena: durante três semanas, os atores do Grupo Galpão realizarão um processo de ensaio da peça As Três Irmãs, de Anton Tchekhov, sob a batuta de um diretor convidado, no caso o ator e diretor Enrique Diaz. Ficam claras, portanto, as semelhanças com a obra pregressa de Coutinho: a concentração em um único espaço, a imersão temporal no universo humano retratado, a premência do instante do encontro, do momento da filmagem, em sua inteireza.

Contudo, um universo infinitesimal particulariza Moscou, já que o filme orbita por uma peça que não será encenada, personagens que se manifestam por um texto que não lhes pertence, um diretor de cena outro que não o próprio Coutinho, num espaço indeterminado que tanto pode ser um teatro independente na capital mineira quanto uma residência da aristocracia russa no final do século XIX. Se o ponto de partida parece conhecido, o percurso atravessa o imprevisto: uma peça que “a gente sabe que não dá pra fazer” em três semanas, como afirma Enrique Diaz na cena da reunião já citada, cujo objetivo não é a apresentação pública, mas “tentar montar fragmentos dessa peça”. Portanto, a narrativa do fracasso do processo de Moscou não vai além de uma expectativa mal-ajambrada por uma continuação de Jogo de Cena, quando, no fundo, todo o cinema de Eduardo Coutinho parece convergir para este filme: Moscou é um convite a uma casa inquietante, na qual já estivemos hospedados, mas precisamos sempre conhecê-la de novo.

A concentração espacial do cinema de Coutinho vai aqui se reconfigurando no uso imaginativo da encenação. O cineasta confessara em um de seus raros textos que decidira fazer documentários para não ter que escolher onde colocar a câmera. Optando sempre por delimitações espaciais rígidas, Coutinho cria uma impressão de espontaneidade no encontro que muita vezes leva a esquecer que, se ele “não escolhe” para onde apontar a lente, é o espaço que se reconfigura de acordo com a filmagem. Tanto o recorte espacial de Edifício Master quanto o de O Fim e o Princípio são como um galpão em que se troca o cenário de acordo com a cena, a personagem, o momento. Em Moscou essa ideia é potencializada pela natureza do espaço escolhido: um galpão de ensaios, repleto de objetos esparsos, cômodos vazios, paredes pintadas de cinza ou preto sólidos. Um campo de possibilidades que se pode brincar, reconfigurar, ressignificar. Se é possível não escolher onde pôr a câmera, seu salto no espaço permite ao lugar da filmagem tanto ser um camarim quanto o quarto de três irmãs russas da província, uma sala de estar ou um tablado de ensaio, a mesa de jantar ou de reunião de leitura, o porão onde uma trupe empilha seus objetos de cena não utilizados ou o cantinho afetivo de uma personagem solitária. Pela colagem minimalista de elementos, Coutinho cria cosmos em espaços que podem ser tanto algo quanto seu contrário. Se seu cinema é o do encontro, Moscou ressalta não ser apenas entre cineasta e personagem, mas também das personagens com seus próprios mundos manifestos em seu entorno.

Essa abordagem espacial a ressaltar cada ambiente como um novo mundo se desvelando para a câmera reforça o caráter fragmentário e a potência do instante do cinema de Coutinho. A cada novo filme, a montagem – em sua maioria realizada pela parceira de longa data, Jordana Berg – organizava as entrevistas como acordes de uma sinfonia, badalando por repetições, variações e associações desveladas aos poucos, e que reconfiguravam cada parte e o todo. As repetições são o mote dos efeitos mais explosivos de Jogo de Cena, onde a persistência do cenário, a modulação minimalista dos ritmos das entrevistas e o mesmo texto/história sendo interpretado por atrizes são repentinamente implodidas pelo retorno de memórias e narrativas, como uma espécie de possessão demoníaca de corpos (e Jogo de Cena é, antes de tudo, um filme de exorcismo). Em Moscou, as repetições, variações e associações não são apenas efeitos de cena ou estrutura de montagem, mas os mecanismos de transformação do texto teatral em cena. Os diálogos repetidos por atores diferentes, os momentos de leitura que serão depois colocados em cena, as confissões de anseios e memórias dos atores quando dos exercícios de encenação constituem uma dança entre a potência do instante e o acúmulo do todo. Moscou está povoado por fragmentos: objetos imprevistos, deslocados de seu uso corriqueiro, figurinos despropositados ao padrão naturalista, gestos isolados, memórias deslocadas no tempo e espaço, referências pontuais ao imaginário popular e à cultura de massa frente a um texto localizado no final do século XIX, a presença constante da fotografia como índice temporal. Logo no início, um dos atores do Galpão, olhando para a câmera como quem dá um depoimento típico dos filmes de Coutinho, diz: “Esta não é uma foto minha. É uma foto de Moscou.” Essa presença do fragmento – e a fotografia como o fragmento por excelência, um recorte de espaço e tempo concentrado – posiciona Moscou como o auge de uma obra cinematográfica a ser repensada neste novo século. Pois Eduardo Coutinho tem sido tomado por boa parte da crítica e dos estudos cinematográficos nas universidades como um cineasta da escuta, da atenção na palavra do outro. Mas Moscou leva a repensar toda a construção simbólica desse cinema, na medida em que deixa claro o quanto Coutinho é um cineasta da cena, da concentração do mundo em momentos de interação, do confronto – talvez mais que o encontro – de tempos, ideias e referenciais diferentes num mesmo espaço, o do plano, pensado para a câmera e a visão enquadrada da realidade. Um cinema do instante decisivo.

Nesse sentido, Moscou é um experimento no qual as memórias, as particularidades, os anseios e as preocupações que os atores do Galpão projetam nas personagens de Tchekhov revelam as pequenas fortunas escondidas em cada uma daquelas pessoas, mas também faz o laço entre o tempo do dramaturgo russo e o de Coutinho, duas épocas de intensas mudanças no mundo e na arte: a virada para uma modernidade que transformou o modo de vida e a percepção da humanidade lá no final do século XIX; e o nosso tempo, de modificações tecnológicas cada vez mais rápidas, que mudam as relações dos seres com seus espaços e o tempo do mundo que habitam. A Moscou tão proferida pelas personagens no texto não é um lugar nem uma memória, muito menos um refúgio impossível (como o é para as personagens de As Três Irmãs). Moscou pode ser um bairro distante, Diamantina ou um imaginário. Moscou é um campo de possibilidades, uma poética imprevista para lidar com um mundo de incertezas, ainda em configuração. Moscou não começa e nem termina com Moscou. Essa poética coutiniana nega explicações, dimensões analíticas ou certezas, não se deixa assentar, numa toada inquietante entre a frontalidade pueril das águas de março bossanovista e a afronta esfíngica do meio do caminho drummondiano. É pau, é pedra, uma pedra no meio do caminho.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Moscou (2009), de Eduardo Coutinho, dia 12 de Julho, no IMS Rio, às 19h30, e 19 de Julho, no IMS Paulista, às 20h. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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