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3% e o triunfo do individualismo

As palavras do sociólogo francês Alain Ehrenberg expressam muito bem as potencialidades e os dilemas de 3%, a série brasileira distópica da Netflix, criada por Pedro Aguilera: “nós vivenciamos um fenômeno duplo: uma universalização crescente, mas que continua sendo abstrata (a globalização) e uma individualização igualmente crescente, mas que pode ser sentida de forma bem concreta. Podemos combater em conjunto um chefe ou uma classe adversária, mas como fazer isso frente à globalização?”

Se na primeira temporada a trama era centrada nas competições desenvolvidas pelo Processo, que define a minoria selecionada a ter ascensão social, na segunda a narrativa se volta para a relação entre os dois mundos, o Maralto e o Continente, isto é, entre a minoria abastada e a maioria excluída. Ao longo de dez episódios, acompanhamos a saga de personagens dispostos a combater essa relação de desigualdade. Mas será que dessa representação social estamos diante da velha luta entre opressores e oprimidos? E ainda, em tempos de “uma individualização crescente”, podemos mesmo “combater em conjunto um chefe ou uma classe adversária”?

O fenômeno duplo apontado por Ehrenberg não deve ser visto dissociado: universalização e individualização são parte de um mesmo processo. O universal é uma abstração desterritorializada, o individuo universal não tem laços de território (e, portanto, não tem laços de classe, nem de tradição, nem, no limite, de família). O laço afetivo passa a ser justamente esse laço abstrato da universalidade. E é justamente nessa abstração que emerge a força da individualidade, enquanto busca e afirmação de identidade. Que forças coletivas são possíveis nesse contexto desterritorializado? Na era da utopia globalizada, o culto às individualidades se transforma em seu principal motor ideológico. 3% é uma série que não apenas se insere enquanto produto bem acabado desta realidade como também enxerga o mundo desta maneira, revela que essas individualidades pujantes são máscaras da padronização quase total operada pelo capitalismo contemporâneo.

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3% é um fenômeno coletivo transnacional, tem o mérito de ser um dos hits internacionais da Netflix com relação a obras não faladas em inglês. A série contém a dramaturgia bem sucedida (e bem construída) que fornece elementos de identificação dentro do que podemos chamar de uma cultura ocidental globalizada (a tal cultura “universal”), e ao mesmo tempo de traços locais, as ditas coisas nossas, mas que no fundo poderiam ser de qualquer lugar. Esse caminho duplo opera em uma lógica antropofágica invertida, pois se na antropofagia modernista devorávamos o que vem de fora num processo de territorialização do outro, aqui vomitamos essa mistura em algo que pelo contrário possa ser transformado em “coisas outras”, em um produto global descorporificado. As sagas distópicas funcionam muito bem nesse sentido. Elas em geral tratam de conceitos ou de questões estruturais das sociedades contemporâneas que podem dialogar com uma multiplicidade de culturas ao redor do planeta. Em 3%, o roteiro precisamente costurado em multiplot, suas amarrações instigantes entre episódios típicos da experiência maratonesca de consumo atual, sua construção espacial que lhe dá uma diegese convincente, a montagem ágil em prol da narrativa constroem a sensação de que estamos vendo algo que poderia ter sido produzido em qualquer lugar. Há um esforço de produção tremendo nesse alcance que a série conquistou, chegando a colocar em xeque para um espectador mais otimista a tal incapacidade criativa de copiar, uma das vulgatas de Paulo Emílio Salles Gomes. Todavia, em meio a essa modelagem de produto global, só aqui o Itaquerão poderia se transformar em espaço para o famigerado processo; só aqui o Inhotim poderia ser o “paraíso terrestre” do Maralto; só aqui uma festividade poderia ser representada (e interpretada) de forma carnavalesca por Liniker e o bloco Ilu Obá de Min; só aqui uma canção de Cartola poderia servir de leitmotif, só aqui a coloração de pele do repertório humano na tela poderia ser tão plural. Mas isso significa que estamos falando das coisas nossas? Ainda que haja processos de identificação e questões com as quais possamos nos relacionar enquanto comunidade nacional, não se trata de uma afirmação que se sustente. Ela não poderia porque essa é a sina dos produtos culturais globalizados; eles operam em uma lógica de desterritorialização. Ainda que partam de culturas diversas, ao cabo são todos reconhecíveis dentro de um mesmo padrão. Inseridos na cadeia produtiva e de consumo hoje, somos tão semelhantes entre si que precisamos a todo tempo afirmar nossa individualidade. A padronização do consumo em escala global só é possível a partir dessa dialética cuja síntese é negativa (no sentido de subtração), ela gera espectros de cultura. Espectros porque não são uma coisa nem outra. Entrar nesse panteão global é justamente a façanha de 3%.

Todavia, essa façanha não incide apenas no fenômeno de inserção. As dinâmicas internas de sua narrativa revelam o triunfo do individualismo contemporâneo, bem como sua outra face: o ocultamento e/ou esvaziamento do potencial de forças coletivas. Toda distopia está necessariamente falando de uma organização social, de uma coletividade portanto. No universo da série, apenas 3% das pessoas podem ascender a uma vida de privilégios se passar no processo que visa encontrar os melhores, os merecedores (dentro de uma lógica difusa que as tarefas do processo exigem como habilidades). Trata-se do mito da meritocracia, do triunfo do indivíduo sobre os seus pares. O mais instigante no caso específico da série é que ele se transforma na base fundamental de sua organização social. Ele é tão lapidado que todos os selecionados a viver no Maralto precisam ser esterilizados, em um rompimento do laço primordial de coletividade, isto é, o de parentesco. Uma de suas melhores alegorias consiste no labirinto de espelhos forjado por Michele (Bianca Comparato) no primeiro episódio e reutilizado no último em um dos momentos climáticos (servindo, portanto, como moldura alegórica da narrativa). Obrigada a desenvolver uma prova para o Processo, Michele cria um labirinto de espelhos que se movem e alteram o percurso a todo o tempo. Situada nas tensões entre fazer parte da Causa ou aderir à ideologia do Maralto, Michele olha para si, tenta definir-se a partir de seus muitos reflexos, de seus fragmentos possíveis. E, não por acaso, a última cena no labirinto consiste na cisão resoluta entre mãe e filho que vivem nos polos distintos deste mundo. Maralto é a utopia realizada daqueles que merecem, não há laços (nem de riqueza, nem de sangue, nem de território) que constituam suas relações sociais. No cold open da série, ao aportarem na ilha que será colonizada em breve, o trio fundador propõe um brinde: ao Maralto ou a nós? A nós indivíduos, é claro.

Para compreender a lógica meritocrática que opera no Maralto, podemos também nos deter na gênese desse universo e no elemento central que define sua supremacia: a tecnologia. A já citada cena inicial retrata um trio de corpos molhados e bonitos chegando à praia. Em meio a carícias, como num passe de mágica, eles abrem um baú de onde saem centenas de drones que vão mapear (e colonizar tecnologicamente) a ilha. É curiosa essa representação divinizada da tecnologia, apimentada com uma ideia de amor livre, fetiche das liberdades individuais contemporâneas. Trata-se de uma cena de cosmogonia, mas no lugar do casal de origem do antigo testamento, temos um trio sexualizado; no lugar da maçã, essa caixa de drones. Ao contrário dessa representação, a inovação é fruto da vida em sociedade. São as condições materiais, bem como as necessidades humanas (ou do capital) que geram inovação, que ocorrem em um processo de “evolução combinatória” (segundo expressão de W. Brian Arthur) de diferentes saberes que respondem a diferentes situações-problemas. A versão divinizada da tecnologia inverte essa lógica, oculta as questões históricas específicas de sua formação, individualiza (ou mitifica) um processo que ocorre de forma coletiva, cria uma espécie de fetichismo da tecnologia. Essa representação do tecnológico em sua forma-mercadora é tão enraizada que o desfecho da narrativa vai justamente consistir em uma troca proposta por Michele aos representantes do Maralto: ela devolve as informações roubadas que permitem a manutenção do Processo em troca de nada menos que a tecnologia monopolizada pela ilha. Em uma sociedade de seres humanos atomizados, a tecnologia não poderia deixar de ser fetichizada.

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Essa inversão também revela uma ausência: o processo real de produção dessa sociedade, isto é, o conjunto complexo de relações entre natureza, trabalho e organização social. Como diria Marx, onde está “a produção material da vida em si mesma” desse universo? Porque é justamente dessas relações que serão geradas as inovações, que por sua vez serão controladas por elites, constituindo assim processos reais de dominação social. No universo de 3% não vemos isso. A exclusão entre os privilegiados e os despossuídos não se dá por uma exploração continuada e necessária de um sobre o outro, mas sim de um mal de origem, de formação do Maralto. Para quebrar os vínculos com seus financiadores, os criadores do Maralto provocam a ruína (e a cratera) do continente onde vivem os habitantes. A ilha e a cratera enquanto formas complementares são representativas apenas nessa tragédia de origem. A ilha independe do continente na perpetuação de suas bases materiais e econômicas. O vínculo persiste apenas enquanto contigenciamento demográfico, que por sua vez, faz-se necessário apenas pela perpetuação de uma ideologia individualista expressa na esterilidade dos merecedores. Essa ideologia é uma escolha, não uma necessidade material. Em última instância, trata-se de um vínculo gerado apenas pela superestrutura, não pela base. Nesse mundo esvaziado de relações materiais de formação, a representação humana resulta em um enxame de indivíduos; entre eles, heróis desconectados de forças coletivas, aparentes revolucionários que ao cabo se revelam commodities de individualismo.

Os heróis da saga se opõem a essa arquitetura de exclusão e vão tentar de diferentes formas acabar com esse sistema. Contudo, a priori suas motivações e interesses são pessoais e individuais. Michele quer reencontrar seu irmão; Joana (Vaneza Oliveira) quer superar o sentimento de culpa; Rafael (Rodolfo Valente) é um revolucionário wannabe que roubou a oportunidade de seu irmão, age por vaidade; Fernando (Michel Gomes), desiludido com o amor e com a vida, não quer nada; Ezequiel (João Miguel) era da Causa, mas sentia-se bom demais para agir coletivamente, decide então fazer as coisas do seu jeito (aliás todos só querem fazer as coisas do seu jeito!). A ideia de transformação social opera em uma lógica de jogo, onde há estratégias restritas definidas no tabuleiro: terrorismo, sabotagem, destruir o sistema por dentro etc. São cartas individuais que cada um joga e eventualmente tenta convencer/forçar outros a participarem da mesma. Ou seja, a posteriori, a execução das ações dos contestadores do sistema também se realizam individualizadas. As representações de coletividade são esvaziadas, fantasmáticas. Do lado do poder vigente, há o Conselho (não sabemos se são eleitos, vitalícios ou sorteados) que pouco faz. Não entendemos sua representatividade, sua força coletiva. Normalmente são ludibriados pelas personagens dos vilões com seus interesses próprios. Servem como uma instância superior que eventualmente pode mudar os rumos da trama. Do lado rebelde, temos a Causa, que, até a chegada dos nossos heróis, parece constituída apenas por duas pessoas, – líderes de um grupo também esvaziado, que pouco dialoga entre si e com o restante dos excluídos – e alguns figurantes. A Causa rapidamente vai virar apenas um nome, um vestuário de uma série de personagens que supostamente está lutando pelo bem comum.

Em suma, na distopia do mundo regido pela meritocracia, até mesmo aqueles que querem transformá-lo estão submetidos à ideologia do individualismo. Até seus heróis são apenas indivíduos com motivações pessoais específicas agindo conforme suas próprias convicções. Curiosamente a única representação de força coletiva surge no final da segunda temporada, porém como potencial tragédia. Temerosos pela possibilidade de não haver o processo, os candidatos se transformam em um bloco revoltado prestes a ser massacrado (me lembra as imagens de consumidores desesperados para comprar o novo iPhone). A força coletiva só é possível pelo desespero em manter o motor do sistema girando; ela é estúpida, frontalmente oposta à inteligência individual dos sagazes: o massacre só é impedido pelo mérito de Michele, que trai seus amigos (que pelo menos agiam via um consenso coletivo de luta) e promove o desenlace esperançoso sozinha. Ela é mais esperta que todos e por isso merece o protagonismo. Sua façanha é reviver o mito da Eva inclusiva do trio fundador que fora assassinada no passado. E tal como o trio fundador do Maralto, de forma novamente divinizada, ela obtém a tecnologia em sua forma-mercadoria, convida seu parceiro Fernando para criarem juntos um novo mundo que seja bacana para todo mundo. O final esperançoso (tanto em roteiro, quanto em direção, basta assistir ao último plano que até insinua um Fora Temer no cenário) vem de cima e não tem participação popular e coletiva. O que esse final nos coloca é que o problema do mundo não está na ideia da meritocracia, na exploração de classe, no esfacelamento das forças coletivas, na atomização de seres humanos em consumidores padronizados. O problema reside em uma questão moral: o casal fundador era mal, ele matou a terceira integrante, destruiu o continente e usou a tecnologia como forma de exclusão. Já Michele é boa (apesar de suas atitudes questionáveis ao longo da saga), ela usa sua esperteza para adquirir a tecnologia para o bem, ela convida seu amigo a participar, ela sonha com um mundo mais inclusivo. Se por um lado temos o paradoxo do mérito individual combatendo a sociedade meritocrática, por outro, a divinização da individualidade secular é uma representação bem precisa dos nossos tempos.


Angelo Ravazi é produtor e diretor. Estudou Cinema e TV na ECA-USP e fundou a produtora Massa Real em 2007.

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