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Luz interior

Em uma primeira visão, Deixe a Luz do Sol Entrar pode parecer um corpo estranho dentro do conjunto da obra de Claire Denis, uma das diretoras fundamentais para o cinema produzido na virada dos anos 1990 para o novo milênio. Ele não tem o mesmo acorde enigmático, a sobressaliente pujança estética e a estranheza narrativa de um O Intruso; nem a energia latente ou o trabalho sobre a superfície da imagem de Bom Trabalho ou Sexta-feira à Noite; nem mesmo o olhar sério, objetificante e em crise na lida com a alteridade de seus filmes que se passam na África. Seu mais recente longa-metragem opera em uma chave muito diferente, escapando ao coerente e minucioso radicalismo artístico que a tornou uma figura tantas vezes menos conhecida no seu país de origem (e quiçá, no mundo) do que o seu talento mereceu. Aqui, há um flerte em muitos níveis com a produção mais oficial do cinema de arte francês, por um lado, e com o cinema de gênero, por outro. E aceitar este dado é a chave tanto para acessar a obra como para não cairmos no equívoco de atribuir o filme a uma suposta decadência do trabalho de Denis.

O que a diretora faz é pegar a recorrente trama do filme romântico – a procura pela alma gêmea – e moldá-la ao seu singular trabalho de misè-en-scene, introjetando aí com tamanha perfeição suas próprias angústias, dúvidas e visão de mundo, de modo que o filme rapidamente deixa de ser reconhecível como um filme de gênero. Deixe a Luz do Sol Entrar é em princípio sobre Isabelle (Juliette Binoche), mulher de meia idade recentemente saída de um relacionamento com o agora ex-marido, passando por muitos encontros com homens que a decepcionam, agem de forma estúpida, ou simplesmente não satisfazem os seu desejos. O espectro de pretendentes vai de um bancário casado e grosseiro a um ator de teatro confuso, passando por um desconhecido com quem dançou em um bar e até mesmo as recaídas com o ex-marido. Fatalmente, a esperança condicionada é traída pela realidade e a protagonista volta, com a sensação de incompletude, à sua procura.

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O que interessa da equação básica é menos a narrativa de desencontros e mais a melancolia de sua protagonista, que reflete uma condição várias vezes espelhadas em outros dos longas-metragens da diretora francesa: a permanência no entre-lugar do sentido. O cinema de Denis é pautado pela mutabilidade deste e o esforço de observar o momento exato em que as coisas se reposicionam, como o gato doméstico colocado no saco de lixo sob a lacônica justificativa “morreu, vou jogar fora” em 35 Doses de Rum, a explosão libidinal faminta da esposa aprisionada em Desejo e Obsessão, ou ainda a insurgência negra de Minha Terra, África antes de seu apaziguamento. Sua força esteve sempre no trabalho de tornar presente esta transição e a energia imperturbável despendida por ele. No universo de Denis, tudo é amorfo e em perene estado de transformação, visão magistralmente ilustrada nos contraplanos de Isabelle Hupert e o descasque dos grãos de café em Minha Terra, África. A protagonista de Deixe a Luz do Sol Entrar padece da fé mais inadequada possível para sobreviver neste mundo onde nada se assenta; a crença básica que justifica o filme romântico: a de um amor eterno, que signifique estabilidade. Se o cinema de Denis é fundamentalmente sobre a dialética entre a expectativa de quem vê e a instabilidade do sentido das coisas – se ele tem a tendência a se aproximar de figuras em crise, as expectativas recorrentemente frustradas de Isabelle desmontam o que justificaria a comédia-romântica francesa contemporânea, gênero ao qual o filme, apenas em sua superfície, adere.

Esteticamente, estamos distantes da característica fisicalidade do plano em vários de seus trabalhos anteriores, da investigação de ruídos, matérias e tensões latentes, presentes até mesmo em Sexta-feira à Noite, filme que, no âmbito da trama, guarda semelhanças com este. O que salta aos olhos aqui é a dramaturgia de Binoche, perpassado um mood de melancolia, desencontro e quase letargia que caracterizam a sua situação. Neste sentido, o close up não produz mais aquele jogo assombroso de rostos brutos, ásperos e de energia latente. Aqui, até pelo menos os derradeiros instantes, Denis adere incondicionalmente à sua protagonista, sem ironias, observando-a com um olhar até certo ponto humanista, feito bem singular, considerando o seu passado cinematográfico. Contra a redução do físico à matéria impulsiva que pautaram o seu trabalho de encenação anterior, Deixe a Luz Entrar propõe uma espécie de retorno (ou passo adiante) à impregnação do corpo de vida, ou seja, à crença na mise-en-scène como método de revelação de um estado de espírito (e no início do longa-metragem, rapidamente notamos do que se trata: a incapacidade do gozo físico resolver o drama). Os primeiros planos de Binoche, em excelente atuação, servem mais para revelar o seu estado de espírito, ou para usar a expressão griffithiana, sua “luz interior” (termo do título original em francês, Un Beau Soleil Interieur).

Mas este é o máximo de flerte com o classicismo cinematográfico que Denis se permite. A narrativa ondula muito e indefinidamente, organizando-se mais de forma crônica ou episódica, construindo-se através de um uso singular da elipse cinematográfica. De uma sequência de amor, passamos a uma conversa casual e amena sobre como a mesma relação não deu certo. Um novo amor surge logo depois já se consumando, sem necessariamente ter de passar por uma preparação ou um movimento de luto. Ficamos apenas com os momentos de plenitude e desilusão. O luto é constante e dita a tônica do filme. Como é típico do filão do cinema de arte francês que o filme se aproxima, os personagens falam muito. Porém, suas palavras não explicam quase nada. Como ironiza o ator (Nicolas Duvauchelle) que tem um caso com ela a certa altura, “é muito ruim ter de falar, melhor ficar em silêncio”.

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No fundo, este embate entre a visão de mundo de Denis e a ordenação clássica do gênero romântico, que figura com recorrência no cinema comercial francês, produzem uma obra ímpar e singela sobre a impossibilidade de se fixar; e a tristeza inevitável que advêm desta situação. Daí a grande ironia da aparição icônica de Gerard Depardieu como místico que lê o futuro já nos derradeiros instantes do filme, inclusive, invadindo os créditos finais. A previsão do destino romântico da protagonista é o momento que o filme encontra sua síntese, mas é também o seu momento mais galhofa. Depois do luto, toda decepção passada se torna irrisória. Repetidas vezes, o místico narra a ela suas próximas peripécias amorosas e, a cada vez, também a incapacidade dela conseguir encontrar sua alma gêmea. É como se Denis enfim se descolasse da melancolia de sua protagonista e olhasse, a uma certa distância, os seus giros com uma boa dose de humor. Se na dinâmica do filme romântico, a concretização do amor representa o gesto de fé que é exigido do espectador para pactuar com a verdade das imagens que se passam na tela, Claire Denis realizou um belo filme que coloca a idealização como fruto da decepção, e paradoxalmente desmonta o gênero ao mesmo tempo em que se constitui como um dos seus mais estranhos exemplares.


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