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Variar a vida em alto astral

Uma recente votação feita por um grupo de críticos, estudiosos e profissionais do cinema – africanos em sua maioria – no Festival de Cine Africano de Tarifa-Tangier, elegeu o primeiro longa do senegalês Djibril Diop Mambéty, Touki Bouki como o mais importante já realizado no continente. Não é raro que o filme de 1973 seja colocado como marco do cinema africano. Sua recente restauração e circulação digital em alta resolução possibilitou às novas plateias acesso ao filme, o que por décadas era bastante difícil. A cada ano que passa, as qualidades do cinema único de Mambéty expressas nesse primeiro longa pavimentam seu lugar na história da arte cinematográfica, em especial de uma filmografia “do sul”, marcada pela experiência colonial.

Neste sentido, poder ver estas imagens hoje, com suas características originais preservadas, é poder experimentar um conjunto de sensações que guarda enorme afinidade com a vivência e a subjetividade brasileira e latino-americana. A narrativa de Mambéty se coloca abertamente como uma fábula sobre a condição colonial. Sua moldura narrativa, com o abate dos bois, sua canção-tema (“Paris, Paris”), e o deslocamento como ideia motriz são apenas as maiores evidências de que se trata de um divertido, inventivo e corajoso tratado sobre o problema desta condição de subalternidade histórica.

O que tende a distinguir Mambéty de boa parte do cinema do continente é justamente sua abordagem altamente associativa, cujo trabalho de montagem se coloca como um dos mais singulares já realizados. Touki Bouki dá inúmeras amostras da força explosiva que os cortes de Mambéty produzem, como na sequência onde Mory (Magaye Niang) é capturado por um grupo de militantes ou na sugestividade na cena de sexo na costa. Há um misto de relaxamento dos ganchos ficcionais e uma manipulação dinâmica de tons e velocidades. A unidade conceitual do filme é fruto de um estilo inimitável e imprevisível que une graça, despojamento, alto teor intelectual e uma irresistível gaiatice. Entretanto, mesmo em seus momentos mais leves, a investigação de Mambety nunca perde seu foco, pois sua matéria é justamente o próprio movimento: o êxodo, o sair da zona, a sensação das motos e carros, e mesmo os últimos espasmos de um boi abatido. O que mais importa a Diop é exercitar múltiplas perspectivas, é nos fazer experimentar as situações por onde nunca imaginaríamos, e com resoluções impossíveis de prever.

A mitologia cinematográfica dos casais fora-da-lei em movimento é aqui atualizada numa chave muito particular e rica. O filme se permite muitas vezes quase esquecer os protagonistas, realizar violentas elipses, mudanças de tom e estilo, constituindo uma sensibilidade ao mesmo tempo onírica e profundamente material. Quase podemos tocar nos tecidos, na textura do chifre, nas frutas ou laços que vemos na tela. A função de inventário da vida no Senegal dos anos 1970 é essencial, e o seu ecletismo espacial e arquitetônico inspira justamente uma postura anárquica que o filme adota. Podemos estender essa característica como comum a todas ex-colônias: um ecletismo existencial (temporal, espacial, de repertórios) que fomenta uma postura análoga na construção de uma estética. Experimentar o mundo pelo sul é necessariamente viver mais de um tempo, mais de uma realidade, é conviver com ruínas, hiper modernidades, com formas de vida pré-modernas. Touki Bouki faz disso sua premissa, esse laço entre elementos aparentemente distintos, de tempos e registros diferentes.

Em um texto recente sobre o filme Zama, de Lucrecia Martel, meu colega de revista Victor Guimarães evoca uma passagem do grande José Carlos Avellar sobre um olhar específico desta posição da história colonial, no livro A Ponte Clandestina: “Neo-surrealismo: a palavra, especialmente se lida em portunhol, especialmente se vista como imagem, representa com exatidão o cinema que Glauber sonhou para a América Latina: neo-sur-realismo, neo-sul-realismo, neosurrealismo do sul”.

Djibril Diop Mambéty é, sem dúvida, um dos maiores poetas de um novo surrealismo do sul. O senegalês autodidata, em sua infelizmente pequena obra, construiu um legado de invenção e compromisso ético e estético que ainda está por ser completamente desdobrado. O cineasta compreendeu e levou a frente a ideia de que o cinema pode criar mundos pela maneira de mostrar, de organizar e desorganizar. A tarefa de um artista decolonial é contribuir para um mundo que não seja o do colonizador. Entretanto, a maneira de realizar esta tarefa não passa por didatismo ou moralismos simplistas. A elasticidade existencial da condição colonial e sua abundante ambiguidade é matéria de trabalho aqui. A profusão de signos, visuais e sonoros, faz com que o logos, a razão decifradora – arma retórica do colonizador – não possa vigorar como nível de leitura primordial. Apesar de haver um trajeto absolutamente legível no desenho narrativo, fruir Touki Bouki à procura de mensagens é perder muito do que a vivência do filme pode nos oferecer. Sua sedutora pedagogia da percepção é um convite a justamente que possamos nos perder, e sentirmos o mundo de outras maneiras e regras.

Em uma entrevista perto do fim de sua vida, o diretor afirma que “a hiena é a falsidade, é a caricatura do homem. Ela tem medo da claridade, da iluminação, como o herói de Touki Bouki. Ela é uma mentirosa, ao mesmo tempo que representa a nudez e a vergonha”. Diante da farsa que sustentou o mundo colonial – que dividia as pessoas com direito a ser, das sem direito de existir como tal, o cinema aqui faz da devolução da farsa sua arma fatal. O realismo – em sua concepção hegemônica – se baseia numa ideia de real criada pelo inimigo, com fins de controle técnico e epistêmico. A estrada que se escolhe aqui é a de fazer do fluxo cinematográfico um espaço de associações livres, pretensiosas, cômicas e envolventes. Mambéty mistura o improvável e faz com elementos paradoxais um dos mais belos poemas que a arte do cinema já produziu.

Arte marcada pela eternamente pelas divisões da colônia, o cinema tem aqui uma das mais potentes proposições de um pensamento não-branco, do sul, que é marcado pela exploração e o extrativismo voraz. Apesar dessa genocida formação, o resultado não faz imperar afetos tristes, mas sim um pessimismo vívido, que faz da arte um laboratório permanente no qual experimentarmos a vida de outras posições. Dada a infertilidade da questão de ser ou não o “melhor filme”, é seguro afirmar que Touki Bouki é uma reserva perene de energia vital, insubordinada, inventiva, desobediente, relaxada e pretensiosa que fatalmente inspira e inspirará uma arte eticamente comprometida em inventar, para não ser capturada a repetir a ideia de mundo dos colonizadores. A viagem da hiena nunca há de terminar.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe Touki Bouki, A Viagem da Hiena (1973), de Djibril Diop Mambéty, nos dias 14 de Junho, no IMS Rio, às 19h30, e 21 de Junho, no IMS Paulista, também às 19h30. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Touki Bouki será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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