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Feitiço sem farofa

De que “negritude” se fala em Pantera Negra?

O ponto de vista de Pantera Negra é o do modelo diaspórico que, segundo consenso geral, melhor se adaptou ao capitalismo mundial e, malgrado as tentativas incansáveis de dar consistência ao termo, à Modernidade. Uma tipologia específica que, com vestimentas características, música onipresente, modelos de resistência política e, até mesmo, hábitos alimentares, não cessa de servir como referência a outras populações diaspóricas do mundo. Pode-se afirmar que o pano de fundo do filme relaciona-se a correntes de pensamento ligadas a uma perspectiva exclusivamente anglo-saxônica do problema. Em plena ressaca da América pós-Obama, a reboque do cortejo de deserdados pela eleição de Trump, o filme se encaixa no conjunto de tendências que eclodem a partir do movimento Black Lives Matter e de todo o arco da luta contra a violência policial, por direitos e representatividade. É, enfim, ao negro norte-americano, assim como a todos as populações ao redor do globo que conservam este modelo como referência, que este filme é endereçado.

É lícito perguntar se este modelo não seria estrategicamente mais interessante como exemplo do que a via de mão única do herói macho, branco e adulto que permeia a cultura dos super-heróis. Eu concordo, mas insisto: a percepção de uma assimetria entre as diferentes formações das populações negras diaspóricas na América pode fazer com que nós, brasileiros, assistamos o filme com outros olhos. Livres de uma visão da diáspora limitada a certas culturas e concentrações populacionais em detrimento de outras, podemos nos tornar solidários à luta do negro na América do Norte sem nos confundirmos com ele. Pois se é verdade que nas Américas se conserva em diversos segmentos um traço majoritário de autoconsciência da questão racial, não seria menos verdade que algumas tendências minoritárias persistam em diversos contextos, apesar da supremacia imposta pela perspectiva afro-americana.

Não sou contrário às misturas e até mesmo as mal faladas “apropriações”. Tomo como exemplo o próprio rap brasileiro, que se apropriou dos conceitos do rap norte-americano e se mostrou capaz de constituir-se como linguagem própria e potente, quase independente da referência originária. Meu problema não é manter a identidade do “nacional”, mas, diante da abundância de possibilidades, manter um certo grau de indeterminação sobre os sentidos do “ser negro”, e, ainda mais, do “ser negro” diaspórico.

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No jogo de representações proposto por Pantera Negra, a perspectiva majoritária massacra a minoritária: não há roda de batuque, pois toda música é ritual, seja de guerra ou religiosa; não há Exu, nem Elegbara (“o dono da força” na ontologia banta, presente na umbanda e na quimbanda), muito menos elementos derivados do complexo cultural jeje-nagô; os griots característicos do Mali e de Gana foram dispensados, não há nenhuma referência a quaisquer conhecimentos transmitidos por comunicação oral, a oralidade também foi interditada; assim como não há Babalaôs (“o pai do segredo”), os leitores do oráculo de Ifá foram substituídos por um sacerdote (Zuri, personagem de Forest Whitaker) que não sorri, semblante duro característico das sociedades secretas cristãs; não se percebe os traços fundamentais e as possíveis influências dos bantos na América, a partir de contribuições decisivas dos Bacongos, dos Ambundos e Ovimbundos, entre outros grupos derivados dos “bantos do centro” (na expressão de Nei Lopes em seu livro Bantos, Malês e Identidade Negra); não há a diversidade religiosa, apenas uma religiosidade unívoca e meramente alusiva, gradualmente sintetizada a uma representação abstrata da “ciência”, representada como uma força cega e brutal que domina todo o espaço-tempo do filme; não há partilha do alimento ou ritual de comunhão, todo rito de passagem é mediado pela batalha violenta e pela lógica do vencedor. Em suma, todas as atividades do filme giram em torno do binômio segurança (proteção do Estado) e conservação da pureza territorial e cultural de Wakanda. O valor da ancestralidade é medido segundo uma temporalidade rigorosamente calculada dentro da causalidade ocidental, interditando qualquer possibilidade de recuperarmos outras temporalidades afrodescendentes — como, por exemplo, aquela que nos transmite o ditado Iorubá: “Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que jogou hoje”. A própria noção de “Afrofuturismo” está comprometida pela mitificação controversa de uma África unificada, e por uma concepção corporativa e progressista da técnica. Na representação da negritude em Pantera Negra, não há espaço para a bantuidade, nem para as concentrações populacionais antilhanas e latinas. A rigor, Wakanda “tem um feitiço sem farofa”…

Diante da supressão de noções e representações mais complexas da negritude diaspórica, surpreende, então, o breve escrito de Achille Mbembe acerca do filme: “Para quem sabe ler entre as imagens, quem sabe como ouvir ritmos e caminhar com o pulso da história, o filho está lá, o manifesto, atrás de uma ou outra sequência, pairam mil sombras e mil correntes de pensamento — de Marcus Garvey a Cheikh Anta Diop, da negritude ao Afrocentrismo, do Afropolitanismo ao Afrofuturismo. Este filme, sem dúvida o primeiro de seu tipo, é antes de tudo uma façanha intelectual, que transforma em imagem e em espetáculo a grandes ideias e correntes de pensamento que acompanham nossos esforços para “sair da grande noite”.”

Embora este artigo não se destine a fazer a crítica ao opúsculo escrito por Mbembe (de quem admiro o arrojado Crítica da Razão Negra), o trecho citado repete a estratégia de Pantera Negra, revestindo de autoridade a limitação de seu recorte – uma construção por redução dos efeitos rizomáticos da diáspora. Mesmo apresentados sob a forma sedutora, nas palavras de Mbembe, de uma nova “humanidade negra”, este amálgama de “mil correntes de pensamento” não manqueja somente por interditar aspectos minoritários das expressões diaspóricas (aspectos que poderiam, por exemplo, desenraizá-las dos fundamentos e aspirações liberais presentes no Afrofuturismo e no Afropolitanismo), mas também por exaltar o exemplo das concentrações populacionais que se mantiveram em posição subalterna em relação à religião e a política do poder local. Esta faceta fica evidente quando o próprio Mbembe escreve, em 2015, sobre o Afropolitanismo: “Contudo, o centro por excelência do afropolitanismo é, nos dias de hoje, Johanesburgo, na África do Sul. Nessa metrópole forjada no ferro de uma história brutal uma figura inédita da modernidade africana está se desenvolvendo. Trata-se de uma modernidade que tem pouco a ver com o que se conhecia até agora. Ela se nutre na fonte de múltiplas heranças raciais, de uma economia vibrante, de uma democracia liberal, de uma cultura do consumo que participa diretamente dos fluxos da globalização. Aqui está se criando uma ética da tolerância suscetível de reanimar a criatividade estética e cultural africana do mesmo modo que em outra época o Harlem ou Nova Orleans o fizeram nos Estados Unidos.” (Grifo meu)

É necessário reconhecer que, desta operação, as populações diaspóricas extraíram forças para sustentar algum grau de construção comunitária, elemento importante nas formas de organização que asseguraram a sobrevivência negra nas Américas. Há, porém, que se reivindicar aqui uma gradação sutil entre suas diversas modulações, identificando aquelas que carregaram, ainda que de forma bastante modificada, substratos fragmentários de símbolos, valores e práticas não-cristianizadas e não-ocidentalizadas.

Tradição e Modernidade

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Nota-se, por exemplo, que Pantera Negra opera os sentidos da Tradição e da Modernidade sob uma estrutura conceitual severamente posicionada nos termos de uma polaridade. A vastidão da diáspora é substituída por uma visão unívoca, e aqui começa boa parte dos equívocos estratégicos do filme, pois, como afirma Appiah em Na Casa de Meu Pai: A Africa na Filosofia da Cultura, “nenhum de nós compreenderá a Modernidade enquanto não compreendermos uns aos outros”. Estamos, portanto, adentrando um território no qual a cristalização do binômio tradição-modernidade e de suas respectivas caricaturas, já não basta para edificarmos uma compreensão adequada do problema. Tampouco a aparente solução que o filme apresenta para essa questão, qual seja, a busca por reconciliações no plano de uma religiosidade esclarecida, tal como apregoou o Positivismo Cristão na virada do século passado.

Appiah observa que as práticas efetivas das religiões das ditas sociedades tradicionais introduzem nuances que desestabilizam a força lógica estável das definições: “Se a modernização é concebida, em parte, como a aceitação da ciência, temos que resolver se achamos que as provas nos obrigam a abandonar a ontologia invisível”, pontua, acrescentando que em diversos registros das religiões na África, as teorias científicas não tem força suficiente para substituir a influência das religiões tradicionais. Partindo do modelo de caracterização da reflexão crítica sobre a tradição descrita por Karl Popper, Appiah destaca similitudes entre a atitude do cientista e a do babalaô (adivinho e curandeiro iorubá), pois ambos apreciam e interpretam a tradição de modo a alterá-la conforme os resultados e consequências efetivas provocadas pelo ritual. Na ciência moderna, como na religião africana tradicional, opera-se com os critérios de explicação, previsão e controle. Para Appiah, os etnólogos confundiram os pressupostos das religiões de matriz cristã com o que de fato parece orientar os rituais religiosos tradicionais africanos: não somente os manejos ritualístico de elementos simbólicos, mas a aplicação prática dos elementos materiais no andamento do processo — a materialidade, às vezes orgânica e sangrenta, daquilo que é oferecido às entidades. Todos que professam as religiões afro-brasileiras sabem, em termos práticos, o quanto as entidades, assim como a ciência moderna, “preferem” a matéria. Os praticantes nutrem uma forte expectativa no poder do ritual e das entidades invocadas, de modo a refleti-la não apenas do ponto de vista de uma obediência irracional, mas como uma atitude tomada em vistas da resolução de um problema prático. A oferenda ritual chamada Ebó é oferecida como uma tentativa respeitosa de comunicação com as entidades, mas que persiste, sobretudo, porque parece eficaz aos praticantes. Através da comparação entre os sistemas de crença, de produção material efetiva, prática e simbólica, Appiah, seguindo por esta chave de interpretação, aproxima a religião africana tradicional não da crença religiosa cristã ocidental (“simbólica”), mas da teoria científica ocidental moderna (“material”). Isto é, há espaço em muitos desses rituais ditos “tradicionais” para uma correção “crítica”, tal como se apregoa em relação ao “espírito científico”. Por outro lado, é possível observarmos na ciência moderna e, particularmente, na ciência contemporânea, a reprodução mimética e computadorizada dos modelos científicos correntes. Os aspectos crítico-inventivos da tradição (pois é preciso usar a imaginação durante os processos) e a ciência automatizada: associações que vão de encontro ao imobilismo que exprime as concepções mais correntes de “tradição” e “modernidade”.

Apenas para ilustrar de que forma se elabora e executa esta operação, observa-se, de saída, que Pantera Negra torna invisível as nuances presentes em cada um dos processos, assim como suas particularidades e eventuais justaposições, semelhanças e diferenças. Implícita na organização social e política de Wakanda, a religião tradicional estaria relacionada à crença irracional no plano superior onde habita os anciãos, seres cujo passado venerável povoam as mentes dos habitantes. Este passado, porém, é passível de ser questionado e até mesmo superado, de forma que há espaço para uma dimensão “crítica” — como demonstra a cena em que T’Challa (Chadwick Boseman) retorna ao plano ancestral para expor, diante dos espíritos, suas discordâncias com as decisões que seu pai tomou no passado. Trata-se, porém, de uma reprovação moral — fazer o certo, corrigir o passado —, e não extra-moral — uma retificação prática (“o que fazer agora?”). A ciência, por outro lado, seria representada como uma força política e gnoseológica reacionária, compondo com os rígidos ditames da segurança, a fórmula altamente racionalizada que garante o isolamento de Wakanda. Estes modelos são reproduzidos sob a forma de uma síntese aparentemente equilibrada entre aspectos “tradicionais” e “modernos”, que, no entanto, mantém estagnada a polaridade formal. Como poderia ser diferente?

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Um exemplo particular no campo da música do Brasil pode nos auxiliar a perceber as tensões entre Tradição e Modernidade de uma outra forma, bastante diversa daquela apresentada pelo filme. Em seu célebre escrito sobre música popular no Brasil, editado em 1928, Mário de Andrade traçava um paralelo categórico sobre a arte no país que, por sorte e por engenho, as décadas seguintes viriam a desmentir. Para ele, haveria entre o estado social e o estado estético da arte uma relação de determinação: as condições políticas e sociais do país determinam uma arte “primitiva” e “interessada”. Ao utilizar o conceito de “interesse”, Mário de Andrade toma de empréstimo o vocabulário da estética de Kant para caracterizar a perspectiva social de toda arte “primitiva”, geralmente voltada para os festejos e rituais coletivos, religiosos e pagãos. Em um país em que tudo faltava às populações pobres, miseráveis e assoladas pela fome, não haveria de brotar uma música popular moderna, elaborada e sofisticada, capaz de assimilar as tendências étnicas, culturais e técnicas as mais diversas e produzir, não só um repertório robusto, como também uma indústria fonográfica e um sistema de radiodifusão majoritariamente sustentado pela inventividade da música negra. Suprema ironia: fora justamente a ausência de tudo que não deixou ao negro brasileiro outra opção se não lançar-se a mais radical das experiências. Inventar tudo aquilo que lhe faltava, criar uma atmosfera capaz de conectar-lhe com o presente, constituir um chão próprio para deixar brotar alguma autoestima. Inventaram, assim, um tempo e um espaço próprios (ou impróprios, dado aquilo que lhe era oferecido pelo branco); erigiram as paredes, as ruas, estradas e cidades por onde passam os brancos; improvisaram suas próprias moradias onde até hoje cantam seus sambas e funks, regados por bebidas que induzem ao delírio e cozinhando suas comidas e quitutes. Como afirma Mbembe, essa arte nunca fora “tradicional”, pois destinava-se a denunciar a “extraordinária fragilidade da ordem social”. Essa “vanguarda da vida”, que toma a necessidade pelas rédeas (o samba, o funk, a favela, o quilombo, o terreiro) em uma relação de continuidade/descontinuidade com a máquina despótica tecno-científica voltada para a produzir maiores zonas de conservação. Marcada desde sempre pela experimentação e por uma atividade da vanguarda mais radical do que poderiam supor os folcloristas e modernistas, interagindo inclusive com a tecnologia disponível em sua época e por uma atividade eminentemente urbana, a ação das populações negras nas Américas enraizava-se sempre na necessidade demiúrgica do negro desterritorializado.

África como Mito de Unificação

Pantera Negra constrói seu delírio totalitário a partir de um subtexto teórico e ideológico que norteia o pensamento negro, nativo e imigrante, nos Estados Unidos. A espinha dorsal é a construção do Panafricanismo de Crummell, Blyden e Du Bois, entre tantos outros teóricos exilados de sua “pátria racial”. Oscilando entre uma arma de combate e uma carta de princípios, o mito de unificação da África se consolidou no imaginário do negro norte-americano, a despeito das complexas formações inerentes não somente ao Velho Continente, como também à diáspora. Ainda é comum no contexto intelectual dos EUA percebermos a tendência a se buscar respostas para o presente com um farol retroativo nas mãos, ainda que se perceba, quando se observa outras regiões e populações, uma gama de variações dos sentidos do passado, do presente e do futuro. Voltado para esta África idealizada, o farol norte-americano, contudo, não se limita a iluminar as condições que possibilitaram a escravidão e a situação do negro nas Américas, mas também, e sobretudo, parece ocupado em produzir uma dupla asserção: os negros são, indubitavelmente, “humanos” (segundo Crummell, bastava observar a capacidade de dominar o inglês e professar a fé cristã para atestar essa verdade); que a África concentrou civilizações avançadíssimas em diversas épocas e regiões (como, por exemplo, o Reino do Congo, formado no século XIV),os negros exilados pela escravidão devendo tomá-las como inspiração e fonte de conhecimento. Fica evidente que o reducionismo à lógica do dominador alimenta o calor da polêmica e marca o nascimento do Panafricanismo, pois nem a posse da língua anglo-saxônica testemunha “Humanidade”, nem a África se resume a uma pátria ideal, a um modelo de “Terra Prometida” a inspirar os condenados da terra distribuídos por onde houve escravidão negra.

Mas foi precisamente a partir daí, deste composto mítico formador da imagem de um Alto Renascimento africano, que os norte-americanos encontraram forças para, em meio às estruturas materiais e simbólicas legadas pelos brancos e indígenas, desenvolver as mais diversas atividades: uma África concebida como um imenso território unificado pela cor da pele, alimentada por uma antiguidade que justificava e, por vezes, suprimia, todo o imaginário patológico produzido pela abundância de conflitos, desacordos e descontinuidades que marcaram sua longa história. No ilusionismo moral que Pantera Negra pretende transmitir através de Wakanda, a África existe propriamente como unidade. Esta ilusão serviu ao colonizador, mas também aos exilados de todo mundo, para produzir uma generalização por redução. De que África se fala quando usamos o adjetivo “africano”? Por que não nos sentimos obrigados a especificar qual é a “África” que está em jogo, visto que são Áfricas muito diferentes na Nigéria e no Níger, em Moçambique e no Mali, em Angola, Mauritânia, Tanzânia? Assim me parece toda vez que nos referimos a este universo enquanto unidade. São muitos os relatos que tentam explicar como o rótulo “África” pôde representar, sob a forma de uma generalização, tantos povos, culturas e épocas, tantas forças que riscaram rotas comerciais e passos de dança, entoaram canções de guerra e de saudade, fincaram seus santuários, exércitos, moradias e plantações sobre o antigo continente.

Estigmatizado ao longo do século passado por ter se transformado em arma de combate, redivivo na atualidade, o Panafricanismo assumia como horizonte a instalação de um conflito mediado entre forças antagônicas, em busca por uma solução eficaz entre perspectivas divergentes — não somente entre “raças”, mas também entre modelos históricos, políticos e culturais: pensamento mágico versus ciência, razão versus emoção, império versus república, e por aí vai.  Localizado em meio a estas dicotomias, Pantera Negra se mostra um filme binário à moda americana, isto é, que opera por uma média, por uma redução das representações adaptadas ao liberalismo. Uma visão binária que, sobretudo a partir do pós-guerra, quando se amplia a autoconsciência das populações negras, opera sempre no limite entre um “nós, negros bem-sucedidos norte-americanos” e os demais “negros” do mundo, os losers, os ressentidos, os necessitados. Decorre daí o debate que se instala entre nacionalistas e internacionalistas em Wakanda, a partir de uma pergunta ética: deveríamos mobilizar o aparato tecnológico do país para estender a mão a outros povos negros do mundo? No limite, Wakanda, convertida em referência, se torna espelho dos EUA, ao passo que os EUA se tornam o espelho do Terceiro Mundo.

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Essas questões e conversões entre o tradicional e o moderno testemunham um limite: em determinado momento, quando o Panafricanismo teve que ser resgatado por aqueles que formariam os movimentos de resistência por dentro da América triunfalista do pós-guerra, tornou-se necessário repensar o racismo fora dos EUA, isto é, a opressão racial como uma questão mais ampla. Os documentos e textos relativos a esta transição podem ser encontrados no legado do partido Panteras Negras, no qual Huey Newton identifica, para além do nacionalismo e do internacionalismo, o “intercomunalismo reacionário” – a interconexão das comunidades mundiais sob o capitalismo global – e o “intercomunalismo revolucionário” – enquanto modo de resistência para além de quaisquer formas de nacionalismo ou internacionalismo, visto que as nações já não poderiam existir independentemente dos processos econômicos imperialistas. Mas no filme, na lógica pretensamente inofensiva do “entretenimento” voltado para o público negro (identificada a expressões mais recentes como “Dear White People”, “Insecure” entre outros), percebe-se o esforço em manter as dicotomias em vistas do fortalecimento de uma condição: para que a reivindicação por “igualdade” permanecesse válida, seria necessário reivindicar valores a serem partilhados e assimilados por negros e brancos. Embora conciliatória, essa equação não comporta a participação de imigrantes, mantendo intacto o abismo entre “branco” e “negro” que o racismo científico tratou de aprofundar. Apesar da reivindicação ideologicamente afinada com o pensamento do partido Panteras Negras, a lógica desse entretenimento é a mesma da autoajuda: confunde-se a luta por afirmação, direitos e “felicidade” com a reificação de uma identidade bem-acabada, e não com uma transição experimental enquanto descolonização. Se como afirma Fanon, “a descolonização implica na criação de homens novos”, observa-se que há uma linha tênue entre tendências de conciliação com modelos culturais herdados e consolidados (mais associados aos traços de continuidade do que aos de renovação) e tendências a criar espaço para novas subjetividades e formas de vida. Isto pode ser percebido na prática de artistas como Lee Scratch Perry, que opera sempre no limite das linguagens e das técnicas para fazer um contraponto à noção de cultura “tradicional” associada à diáspora. Pois ao inventar novas formas de gravar e produzir música, Perry, entre tantos outros negros diaspóricos, fez proliferar dinâmicas descolonizatórias, isto é, um modo de transformar a vida por uma reutilização criativa do som, da técnica, do tempo e do espaço.

Diáspora e Caricatura

Na aurora do Panafricanismo, o Padre Alexander Crummell considerava o domínio da língua anglo-saxônica e o cultivo da fé cristã como uma dádiva para as populações negras. O credo para o qual Appiah chama atenção reside no uso corrente e naturalizado de categorias universais atreladas Cristianismo, como subtexto através do qual se formaria uma imagem idealizada da África. Não havia consenso entre os diversos intelectuais que postularam as bases do Panafricanismo, mas uma ideia era aceita por todos: a África como a pátria da “raça negra” e, justamente por isso, serviria como referência, como matéria-prima aos povos exilados por todo o mundo. Até mesmo Crummell considerava o inglês “uma língua superior” aos dialetos africanos por melhor expressar a “Verdade revelada”, mantendo-se seguramente embaixo deste imenso guarda-chuva categorial. Para um filósofo atento como Appiah, o nascimento do Panafricanismo é atravessado por um “racismo intrínseco”, que toma a diferença racial do ponto de vista ontológico, subsumindo as diferenças históricas e cosmológicas sob uma “África” mitificada, construída como uma categoria ampla e generosa, ainda que rarefeita.

O problema reside no fato de que, para os “exilados”, pelo menos os que tinham condições e recursos para “falar”, estavam apartados de algumas realidades profundas desta abundante “Mãe África”, pouco conhecida até mesmo para um descendente de ganenses como Du Bois. Também não conheciam devidamente as populações escravizadas que, alforriadas, se enraizavam e transformavam as cidades que já habitavam por cerca de cento e cinquenta, duzentos anos. Ainda que esses processos se constituam de forma assimétrica, não havendo como afirmar categoricamente a inexistência de uma conexão cultural com a África na formação dos Estados Unidos  —, não se justifica, contudo, a tese de que nos lá houve “abandono cultural” das raízes africanas devido ao fato de que, desde cedo, os negros se consideravam “nativos”. Observa-se nos Estados Unidos que os negros norte-americanos tiveram que se adaptar integralmente às estruturas linguísticas, cosmológicas, religiosas que já se encontrava na base protestante das populações que habitavam a América do Norte. Daí o contraexemplo: o complexo Jeje-Nagô que se forma na Bahia de Todos os Santos, encontra as populações Bantas que já se consideravam nativas. Não havendo esquecido Zambi, Dandalunda e Catendê, tampouco os usos religiosos e recreativos dos tambores, mantinham uma outra dinâmica de transmissão, influência e síntese, bastante diversa da América do Norte.

Observa-se, ainda, um parentesco tenebroso entre as formas de representação mítica da África unificada, perceptível nas manifestações culturais norte-americanas e uma utilização caricatural do continente que vai povoar o cinema norte-americano. O caso que mais me chama a atenção – e que se relaciona diretamente com Pantera Negra – é o de Eddie Murphy. Seus filmes ridicularizavam os hábitos orientais (O Rapto do Menino Dourado, Michael Ritchie, 1986) e africanos (Um Príncipe em Nova York, John Landis, 1988) da perspectiva de uma média populista do negro norte-americano: uma malandragem despojada, uma franqueza criativa na linguagem, uma forma de ver as coisas típica desta tipologia do homem negro americano. Lembremos que, ainda nos anos 1980, os filmes de Murphy alimentavam uma imagem determinada desta tipologia, trabalhando com personagens construídos a partir de uma mistura de auto ironia com orgulho comunitário. Embalada pela música do “Rei do Pop”, então universalizada por uma máquina corporativa dirigida por brancos, as expressões do orgulho negro atravessavam as demais manifestações negras, desde o Living in America (versão black do Born in USA) até o USA for Africa. No plano das representações, as indumentárias e a dança ceremoniais dos “africanos” de Wakanda não destoam nem um pouco da caricatura ofensiva de Um Príncipe em Nova York.

Um Príncipe em Nova York
                                                     Um Príncipe em Nova York (1988), John Landis
Pantera Negra (2018), Ryan Coogler
                                                               Pantera Negra (2018), Ryan Coogler
Wakanda como Quimera

Tomemos a construção visual da cidade de Wakanda. Temos muito a lamentar a ausência de qualquer menção à vida urbana e ao povo local, limitando-se o filme a descrever, em praticamente sua totalidade, os rituais, diálogos e conflitos palacianos e os campos de guerra. A representação visual e a mise-en-scène das sequências na cidade indicam alguns estereótipos com os quais o filme trabalha, que o mantém muito próximo das representações caricaturais dos filmes de Eddie Murphy. A representação visual da cidade não toma como base Nova Iorque ou Los Angeles, mas, talvez, a Jamaica, pela proximidade com a questão fundamental da língua. Já entrevemos que a solução dada pelo filme é uma espécie de Trenchtown gentrificada, comportando, de forma “sustentável”, as casas humildes e o aspecto rural da favela jamaicana.  Por outro lado, no aspecto tecnológico, as poucas e precárias adaptações (como o tosco “botoque digital”) não escondem a supremacia de uma escola visual eminentemente anglo-saxônica e hollywoodiana, na escolha dos modelos de naves espaciais e dos contornos dos Palácios, aposentos e centros de tecnologia. Como nas religiões afro-brasileiras, o campo ritual alude à cachoeira, com os representantes das diferentes nações que compõem Wakanda dançando nas bordas de uma queda d’água. Mas isso como um ritual de passagem organizado dentro de uma lógica na qual a dança está associada à guerra ou à religião. Aliás, o Panafricanismo de Pantera Negra não dança e não canta por alegria, diversão, lascívia, por festa ou comemoração pagã, como também não toca instrumentos musicais. Não requebra a cintura, sequer pronuncia os contornos rítmicos ondulantes da palavra “bunda”. Aliás, a bunda em Wakanda é um elemento inexistente, represado: a bunda não se mexe lateralmente, nem a pélvis, nem os quadris. Wakanda também interditou quaisquer dispositivos químicos embriagantes ou alucinógenos, propulsores do requebro: não se bebe nenhum tipo de aguardente em Wakanda; não se fuma nenhuma erva estupefaciente em Wakanda. À moda de uma fortaleza protestante, Wakanda interditou a farofa e o feitiço, mas também a batucada alegre e pagã, os devaneios corporais não-marciais, o delírio do corpo (a bunda, o peito, as coxas), a alegria contemplativa, corpórea, o calor da roda e do tambor. Tudo ali concorre para o fortalecimento do objetivo: conservar, proteger. Wakanda não é menos paranoica com segurança do que seu espelho, modelo e opressor, os Estados Unidos.

O consenso de que há somente “mulheres fortes” no filme pode ser relativizado se analisamos mais de perto o papel que cada uma desempenha não só na trama, mas na economia simbólica geral de Wakanda. Okoye (Danai Gurira), por exemplo, é general, representando as armas e ostentando a artificialidade de uma expressão de poucos amigos. Ramonda (Angela Bassett) é a matriarca sem matriarcado, representando os valores da Família e assegurando os procedimentos e rituais — que, em todo caso, também decorrem de uma média cultural bastante próxima da síntese céltica. Nakia (Lupita Nyong’o) é a assistente social politizada, comprometida com a diminuição da desigualdade nos países pobres da África, e espelha o tipo de ativismo oportunista, prática comum entre os membros do star system hollywoodiano. Por fim, Shuri (Letitia Wright) representa a jovialidade saltitante do ideal científico, mas sem mencionar, por exemplo, as relações entre raça e ciência no século XIX. Não seria importante nos perguntarmos em que medida a força dessas personagens não estariam associadas às representações dos valores pré-determinados pelos homens brancos e suas instituições?

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(Para quem se pergunta por que cargas d’água um filme da Marvel se deteria nesse aspecto da História, por favor, pergunte-se também porque mostrar Magneto lutando contra os nazistas em campos de concentração em X-Men — Primeira Classe (2011)? Ou a representação preconceituosa do sequestro do cientista playboy pelos “terroristas” afegãos este playboy que, segundo conta a história, pretende produzir justiça social escondido atrás de uma armadura tecnológica (Homem de Ferro, 2008)? )

No fim das contas, Wakanda é uma quimera panafricanista construída rigorosamente à luz dos valores “brancos” norte-americanos. Não quer dizer que haja consenso entre esses “brancos” e os modos como reproduzem seus mecanismos de violência e controle, mas a cor da pele é uma marca que persiste como critério no modo como este controle é produzido. Isso fica evidente por todos os lados, mas sobretudo quando nos perguntamos, ainda na sala de cinema, se Killmonger (Michael B. Jordan) não estaria vendo as coisas com mais clareza do que o filme desejaria mostrar. E que T’Challa, este príncipe sentimental e idealizado à contraluz do Príncipe de Maquiavel, corresponderia estranhamente às elites africanas do século XX, sanguinárias e entreguistas, completamente alienadas da dura realidade de seu povo. E, que por fim, assumem acriticamente os valores que, de uma forma ou de outra, constituíam a justificativa moral da escravidão. Quando retorna aos EUA para reconstituir a trajetória de seu tio, T’Challa comenta com Nakia seu desejo de construir um centro cultural no Oakland. Nada mais desprovido de propósito e sentido do que uma apologia da gentrificação em pleno Oakland, a mesma gentrificação que empurra as populações negras para longe do “waterfront”, substituindo-as por prédios imensos e lojas de celulares.

Wakanda como quimera pode ser lida em uma outra chave: como a África, não existe propriamente, é mais um mito estratégico, reiterado por intelectuais privilegiados do jet set acadêmico e administrado por um império do entretenimento que se vale das tensões do momento para disseminar a exaltação das forças da guerra, da burocracia e da ciência gerida pelo capitalismo corporativo. Uma comparação com outra unidade guerreira, Palmares, e Wakanda não se sustenta como modelo de resistência e administração da vida. Apesar de sua formação guerreira, que rechaçou mais de 30 expedições portuguesas e holandesas, Palmares se constituía como uma autêntica formação banta, cuja característica cultural era a combinação de preservação sincrética de seus hábitos, práticas e crenças, assim como uma tolerância que comportava o convívio com índios e até mesmo brancos, todos acorrendo ao Quilombo devido à fartura da sua produção — segundo Nei Lopes “nos tempos de paz, os palmarinos vinham vender o excedente de sua produção” aos povoados vizinhos. Uma unidade guerreira, porém talhada com bases éticas diversas das de Wakanda, pois não havia sequer resquício de dúvidas com relação aos benefícios da convivência e da vizinhança. Tanto a lógica existencial como a imaginação política de Palmares comportavam o convívio entre diferentes mundos.

No Brasil, Pantera Negra foi comemorado como uma vitória, e, antes mesmo de assistir ao filme, muitos colegas já antecipavam os efeitos promissores que um herói da Marvel negro seria capaz de suscitar entre crianças e adolescentes, em sua maioria, carentes de ídolos parecidos com seus amigos e familiares. Mas Wakanda é também a expressão de uma imagem que as crianças não carecem exatamente: uma necessidade de aprisionar e quantificar a força do trabalho, a potência de criação, a disposição física e sexual, a inteligência, a velocidade, o olhar, a beleza, o ritmo que em Wakanda, são represados. A Elite-Represa de Wakanda carece da segurança. Não é à toa que os Republicanos de Wakanda aceitam de bom grado a ajuda da CIA para caçar terroristas sul-africanos, pois trata-se de mais um componente na economia geral da trama a justificar uma intervenção robusta na arte de se subsumir diferenças e produzir maiorias. É de um oportunismo baixo sobre o qual somos obrigados a dizer em alto e bom som: corra!


Bernardo Oliveira é professor, pesquisador, crítico de música e cinema, produtor e curador do evento de música experimental Quintavant e do selo QTV. Publicou em dezembro de 2014 o livro Tom Zé – Estudando o Samba (Editora Cobogó).

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