Fruitvale Station, de Ryan Coogler (EUA, 2013)

outubro 21, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

fruitvalestation

Realidade e abstração
por Pedro Henrique Ferreira

Em uma crítica publicada na revista Forbes, Kyle Smith acusa o novato Ryan Coogler de ter “manipulado os fatos” para tornar a história verídica de Oscar Grant, retratada em Fruitvale Station, um panegírico em defesa dos direitos humanos. De acordo com Smith, o crime real é mais fruto do acaso do que do preconceito contra os negros. A acusação se baseia, por um lado, em fatores estéticos – o diretor Coogler teria pintado um halo em torno do bandidinho protagonista – e, por outro, no gesto de marketing do produtor Harvey Weinstein, que teria previsto o lançamento do longa-metragem próximo à data do julgamento do crime real, justamente com a intenção de mobilizar os ativistas em função do caso.

A polêmica posta por Smith se segura em alguns argumentos estéticos sólidos (os letreiros ao final do vídeo; as imagens iniciais, filmadas em celular, que serviram como prova contra o policial infrator – ambas corroboram com sua perspectiva). Mas, ao mesmo tempo em que insiste na falta de veracidade, isto é, cobra da ficção que se atrele a fatos verídicos, o redator parece não querer separar a natureza das duas coisas – o que de fato aconteceu em Novembro de 2009, na estação de trem, e aquilo que resultou do gesto da ficcionalização, a forma como este passado incognoscível, não-reconstituível, ganha uma forma cinematográfica. Precisamente por isto, não nota que o que acontece entre os letreiros finais e as imagens de celular na abertura versa sobre uma outra coisa que não o racismo. É justamente o que está neste interstício, muito mais do que os clamores finais, que torna Fruitvale Station uma obra realmente mobilizadora.

O recuo inicial de 24 horas é um gatilho para apresentar um protótipo: um negro que vive no subúrbio de uma cidade urbana dos EUA, entre o emprego honesto em um supermercado e o tráfico de drogas, com sua vida pacata familiar e as farras com amigos e mulheres. Não há, no longa-metragem, um conflito. Há somente a espera. Trata-se de construir o cotidiano e o mundo familiar de uma figura, tornando-a um representante de um povo e sua cultura. É por isto que há tanta ênfase nos encontros familiares, na forma como o personagem se relaciona com os demais, e como, juntos, constroem um modo de vida. Daí se explica a importância dada a uma sequência onde as mulheres da família preparam o jantar, ou a um slow motion do pai a brincar com a filha, ou ainda a uma dança de um grupo de amigos com pessoas desconhecidas em um metrô lotado, onde acabam, por uma falha mecânica do trem, tendo de comemorar a passagem de ano.

Não há quaisquer menções no longa-metragem a nenhum conflito que se apresente sob a forma do preconceito racial. Se Oscar Grant insisea em educar sua filha de acordo com modelos negros, isto acontece pura e simplesmente por uma escolha cultural, um ensejo de fazer eternizar as formas de vida do seu povo. Assim, quando chegamos ao momento em que o policial prende as figuras que estavam brigando, não vemos nenhuma tensão disparada por racismo. O que enxergamos é um gesto de abuso de autoridade em uma situação limite, um impasse criado não pelo negro que desafia o branco, mas por uma figura que pertence a uma realidade que reage à truculência policial, à autoridade arbitrariamente imposta sobre ela, que pouco faz para compreender ou se ajustar, que passa ao largo dos dramas que aquele homem e vários outros homens vivenciam cotidianamente. Cria-se um impasse, que se torna exponencial no desenrolar da cena, e o tiro é o resultado caótico deste impasse. Ou seja, o que se põe em xeque é a eficácia da autoridade policial em uma realidade que não condiz com ela, que a ultrapassa amplamente e sobre a qual ela quer se impor, muito mais do que o simples preconceito racial.

Desta forma, Fruitvale Station levanta a bandeira dos direitos humanos sobretudo contra a arbitrariedade dos atos de autoridade, contra a inadequação do gesto de controle ao ambiente e situação em que se instalam. Em uma verve muito mais semelhante aos filmes de subúrbio de Spike Lee, é a vida urbana, o cotidiano do negro americano e sua sobrevivência contra o racionalismo da ação policial que estão em jogo. Quando Oscar Grant morre, temos a impressão de que o que se vai não é somente um homem de bem escondido por trás de um ex-presidiário, ou tampouco mais um negro vítima do preconceito… é toda uma cultura que fenece vítima de uma repressão sem nomes, em uma sociedade que a relega à submissão, à figura da ordem, ainda que esta figura não tenha absolutamente nada o que fazer ali senão mostrar a sua face. É desta maneira que a morte dramática de Oscar Grant adquire as conotações do martírio de um herói nacional-popular, isto é, do povo real contra a nação abstrata, da realidade efetiva contra a lei da ordem.

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