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A máscara da máscara

O cinema, arte radicalmente situada – espaço, tempo, como a figuração do homem e da terra a desbravar, com suas endemias características –, foi cruelmente propício à práxis de uma ciência que soube sincretizar seus dons de observação meticulosa e mensuração heurística em um instrumento privilegiado de mapeamento holístico do real: da entomologia. Da entomologia vivissecante-jansenista de Luis Buñuel à trilogia “autopsista-institucional foucaultiana” de Stan Brakhage, como da ruse libertina de Erich von Stroheim à rusetchekoviana do degelo” de Alexei German em Meu amigo Ivan Lapshin, estivemos todos lá, sob a implacável lupa da câmera-caneta (Alexandre Astruc) que, ao cabo, se revelou um bisturi, como igualmente uma cânula e uma espátula providenciais para remover do ego humano, agora com a devida justiça representado como elemento “parcial e coextensivo ao mundo”, qualquer tipo de autocomplacência vaidosa e, enfim, revelá-lo a si mesmo (experimentemos um aprofundamento verticalmente psicanalítico da superfície-tela do cinema, atentando à dupla acepção da palavra projeção, invocada tantas vezes por Serge Daney). Mas a que si mesmo estamos nos referindo quando revemos uma pequena obra-prima como A Garota Negra? Devo dizer que se chamo de “pequena” é não apenas pela metragem média do filme, mas para enfatizar que não haverá tubo de ensaio mais adequado a um experimento entomológico do que a metragem de uma hora e a restrição “avaliação-estatística” de um grupo humano capturado no cenário equilátero da cozinha, da sala, do quarto e, num flashback esqualidamente evocativo, dos arredores endomingados de Dacar; sim, das condições de temperatura e pressão…, cujos efeitos serão sempre melhor apreendidos pelo fórceps do concentracionismo, revelador de essências: um experimento-experiência, a partir do qual Sembène vai se esforçar por criar as condições-coordenadas – os médiuns dramático e “cenarístico”, respectivamente do flashback, da voz off, do espaço camerístico dessa arena semicircular onde esbarram entre si as crianças, a patroa, o patrão e esta… para que possamos dar à “negra de…” do título uma espessura existencial, uma situação primordial anterior à social, à geográfica, ambas inferiorizadas de antemão pelo contexto narrativo de A Garota Negra.

Seu nome: é Diouana; mas bastará um nome para conhecer/desvelar/projetar-se em uma personagem? –, interroga-se Sembène. Lembremo-nos que Diouana é o nome dado (antes: interpelado pelo comando histérico da francesa) pelos patrões à moça, que permanece calada por todo o filme, reservando-se apenas à sua presença vocal o fora-de-campo da narrativa em off (volto a isso, é claro); a interrogação de Sembène, como em todo grande cinema, arte infraestruturalmente materialista, aborda-nos com este enfático ilustrativo das grandes demonstrações de geômetras e dos corpus alegoristas do século XVI: acompanha-nos ao longo do filme uma máscara multiplamente situada pela instrumentação retórica do close expedito (um close, mas também contra-campo do primeiro olhar da criada para a casa dos patrões), close “atardando-se” intrigado, plano-sequência atabalhoado-acidental da criança que segue o patrão, plano médio mais quod erat… indutivo da patroa recebendo a máscara de presente, travelling ludicamente giratório da disputa da máscara pelas duas mulheres, plano-sequência num crescendo de terror infiltrado da criança mascarada seguindo o patrão (sim, ainda uma vez: se repararem no olhar ansiosamente insistente que o homem volta para trás, verão que o atabalhoado-acidental do plano-sequência talvez ocultasse uma indizível ameaça, e…); sim, uma máscara.

Desculpem-me lembrar mais uma vez, mas dos gregos pré-socráticos a Os Negros (1959), de Jean Genet, a máscara foi menos um objeto carnavalesco para mimetizar-se entre os demais que um meio retórico (precisamente: uma mediação, cujo escafandro protetor permitiu-nos abordar profundezas sem nos queimar) para capturar a essência de uma identidade; mas esta nunca se entrincheira em via única, como ensinou-nos paradigmaticamente a persona, máscara de projeção do teatro grego; sim, da projeção. Aliás, necessária projeção, pois o mistério da identidade nunca foi tão enevoado a ponto de nos ocultar, que é o efeito de uma dupla e complementar relação com a alteridade: sem a máscara para projetar o erro de Édipo no meio da arquibancada, que dignidade poderíamos esperar do coro, lugar formal de seu julgamento? É a projeção para o outro – no caso, a plateia – que decisivamente nos converte em “si-mesmos”; ora, mas em A Garota Negra inexiste diegeticamente (dentro do filme como entidade narrativa) a voz, reveladora de persona, e a presença vocal de Diouana só nos chega refratada, alterada/alterizada pela distância da narrativa; o que concluímos então deste Eu que só se assume como narrativa, que de Benveniste a René Girard é o lugar de um esponsal impossível (mas perfeitamente experimentável/experienciável na linguagem) entre o Eu e a morte? Sim, uma máscara vazia…

O cinema clássico foi uma arte da plenitude do campo, pois trabalhou com manifestações, epifanias, hierofanias; todo o trabalho: mediações a perder de vista: ensaios com atores, urdimento de cenário e reescritura do roteiro. No entanto, deveria ocultar-se sob a evidência luminosa do plano, e, sobretudo, desaparecer completamente da cabeça da recepção, destinada unicamente a fruir fascinada dos efeitos desse vertiginoso processo; foi com os modernos – pensemos num marco: os filmes de Jean Renoir e de Roberto Rossellini nos 1940, mas também Orson Welles e Edgar Ulmer na América – que os artistas começaram mais abertamente a mobilizar o fora-de-campo, estrutura transcendental que nos permitia compreender o que se dava no campo sem nele aparecer propriamente. Cognição, memória, imaginário: foi vária a oferta de situação (novamente), pois com os modernos descobriu-se a linguagem, e, portanto, a mortalidade; pensem no exemplo mais do que conhecido da câmera que se aproxima em demasia do personagem para indicar um iminente perigo em torno. O texto off, desconectado ou não do que nos aparece em campo, foi um privilegiado meio de ativação do fora de campo, e este aqui, como em toda obra predominante de linguagem (e portanto moderna, porque os clássicos se incumbiram da presença), legitima-se como avatar inegável da Morte: ao longo do filme, o único espaço possível para Diouana habitar é a narrativa em off, e sabemos a que abismos nos destina um texto sobreposto à imagem com que não coincide; o seu corpo morto ao final é apenas a ratificação diegética daquela condenação estrutural de que a máscara inabitável é o significante mortuário. O plano final do desvelamento da máscara pelo garoto é de um didatismo a que apenas artistas poderosamente dialéticos (Büchner, Kleist, Brecht) ousaram aceder, pois nos revela um continente possível, que nenhuma persona conseguira habitar.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe A Garota Negra (1966), de Ousmane Sembène nos dias 15 de Fevereiro, no IMS Paulista, às 19h30, e 22 de Fevereiro, no IMS Rio, também às 19h30. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

A Garota Negra será exibido em DCP.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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