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35 Doses de Rum (35 Rhums), de Claire Denis (França, 2008)
por Fábio Andrade

De pai para filha

Começamos 35 Doses de Rum embarcados sobre trilhos. Tal qual Hou Hsiao-hsien e seu Café Lumière, Claire Denis escolhe o trem para marcar seu filme-homenagem a um dos mais fundamentais nomes da história do cinema: Yasujiro Ozu. 35 Doses de Rum é uma refilmagem de Pai e Filha, obra-prima que Ozu realizou em 1949, e que – em prática que lhe era comum – ele mesmo refilmou em 1960, em cores, com o título de Outono Tardio. O trem, símbolo máximo de um espírito burguês mecanicista que levou, inclusive, à invenção do cinema, sobrevive como evidência de o que era central na obra de Ozu: a passagem do tempo. Em 35 Doses de Rum muda, porém, o ponto de vista. Enquanto Ozu costumava filmar trens em leve perspectiva – colocando a câmera ou na plataforma da estação, ou em uma das janelas dos passageiros – Claire Denis nos oferece a visão frontal a partir da cabine, como se enxergássemos com os olhos do próprio trem.

O desvio é sutil, mas essencial, pois revela o interesse maior da aproximação feita pela cineasta francesa com o cinema do mestre japonês. Pois Yasujiro Ozu inventou algo que podemos chamar de "o olhar do objeto". No livro O Anticinema de Yasujiro Ozu, o autor e cineasta Kiju Yoshida desenvolve esse conceito a partir de uma sequência de Era Uma Vez em Tóquio, onde o casal de velhos que protagoniza o filme procura um travesseiro inflável para levar na viagem. O travesseiro, porém já havia sido guardado (e esquecido) dentro da mala. É ele quem observa o casal, e é a ele que Yoshida atribui o ponto de vista da cena:

Possivelmente, os filmes de Ozu, mediante objetos como o travesseiro inflável, tomam o ponto de vista das coisas que contemplam a nós, humanos. Enquanto falam de trivialidades como faz o casal de velhos, eles delineiam de modo casual a falta de senso crítico dos homens, que, mesmo assim, continuam vivendo bem, colocando-se ao mesmo tempo no lugar dos objetos e, assim, devolvendo-nos um olhar crítico.

Em Ozu, o olhar-objeto era alcançado pela harmonia do sujeito com o mundo, que se dava na predominância do contra-plongeé – um antagonismo filosófico ao costume de se colocar a câmera no nível dos olhos humanos. Com a cena "subjetiva", Claire Denis deixa clara que sua relação com o cinema de Ozu é filosófica, e não cinéfila. Daí que sua abordagem seja a de traduzir conceitos do cinema de Yasujiro Ozu, sem nunca mimetizar (e muitas vezes colocando em crise) o marcadíssimo estilo de filmar do diretor. Pois, se Ozu é um cineasta da passagem de tempo, uma homenagem a ele precisa registrar também uma passagem de tempo para o cinema, onde seus métodos não poderiam mais ter o mesmo significado. Assim como Hou – ou Kiarostami em Five; ou Kiyoshi Kurosawa em Sonata de Tóquio - Claire Denis presta reverência a um dos cineastas mais fundamentais para o cinema contemporâneo (talvez o mais fundamental), ao mesmo tempo em que reconhece que, para captar a tranquila angústia de seu espírito, é preciso repensar toda a idiossincrática relação que ele estabeleceu entre a câmera e o mundo. É preciso fazer, de fato, o objeto enxergar.

Claire Denis parte, portanto, de um binômio bastante complexo: os mesmos procedimentos levarão a resultados diferentes, para que essa diferença nos leve, enfim, a um mesmo lugar. Riscos iguais para tempos diferentes. Enquanto Ozu usava o plano frontal para denunciar uma certa configuração espacial do cinema ocidental (as noções de eixo e da quarta parede, convencionalmente escondida atrás da câmera), sem, com isso, nunca quebrar a diegese, Claire Denis deseja a sensação inversa, onde se relacionar com a câmera (como nos créditos iniciais de Mal dos Trópicos, de Apichatpong Weerasethakul) é instaurar um estado de suspensão diegética, onde ela está sempre na iminência – mas nunca mais do que isso – de ser quebrada. Se Pai e Filha trazia o misterioso e hiper-analisado plano do vaso, aqui teremos – com o mesmo sentido – panelas elétricas de arroz. Mudam os tempos, as pessoas e as cidades. O que não muda é o pai e a filha, com sua relação de amor tão incondicional quanto incestuosa, igualmente capaz de libertar e aprisionar suas vidas.

Por essa ótica, 35 Doses de Rum é feito de inversões de polaridade dos procedimentos de Ozu. Para isso, Claire Denis quer construir, como Ozu, um universo ficcional fechado e auto-evidente (mesmo que enganador – como provam todas as páginas que ingenuamente diziam que Ozu era "o mais japonês dos cineastas japoneses"). Esse mundo é quase exclusivamente habitado por negros, que têm seus próprios rituais (em vez do saquê, o rum – assim como as crianças alemãs aparecem correndo com lanternas de papel), seus signos culturais (uma dança ao som de Commodores; um poster de Basquiat; uma ida à loja de discos para ouvir Fela Kuti – como Ozu filmava os letreiros, mais tarde luminosos, dos restaurantes) e onde uma relação com o outro (os brancos) só parece possível a partir da lógica de interação do campo-extracampo (os casamentos). Como em Ozu, essa concentração de universo não serve a um sentimento xenófobo, mas sim para construir um núcleo familiar de trama tão fechada que o acolhimento do outro – do extracampo pelo campo; de se abrir as duas portas fechadas para quem está do outro lado, mesmo que ele siga enxergando-as fechadas – é um testemunho de monumental generosidade.

Desmontado como tal, no papel, esse jogo proposto por Claire Denis pode parecer um tanto gratuito, ou não mais que referente. Mas a diretora parte de Ozu – algo que, diretamente ou não, muito do cinema contemporâneo já faz – justamente para perceber que os paradigmas mudaram. Pois, em Ozu, somente o texto podia dar conta das contingências; hoje, quem fala é o corpo. Daí que Claire Denis use esse fiapo de trama familiar para filmar, sobretudo, os corpos ocupando seus espaços – como dois homens não podem conduzir a mesma mulher, em uma mesma dança. Basta, ao filme, observar a monumental presença de Alex Descas, silenciosa a ponto de virar piada dentro do filme, mas de uma expressividade asfixiante ao comer um pedaço de pão, tomar um gole de vinho, ou mesmo soltar um peido no sofá (peido, que, inclusive, virava texto em Bom Dia, de Ozu).

Como Ozu, Claire Denis também tem um elenco com quem trabalha regularmente, e que ela sempre põe a interagir com novos corpos, e só isso – esse encontro entre corpos desconhecidos para a tela – já é suficiente enquanto ferramenta de mistério. É nesses pequenos gestos que se percebe a mudança do mundo, pois enquanto Yasujiro Ozu pensava o corpo e a câmera como agentes de um ritual que ia pré-definido – da vida para a morte – Claire Denis os percebe como potência de enorme sensualidade. Sim, o corpo vai da vida para a morte, mas dança pulsante entre essas duas pontas. O que importa, ainda, é o vácuo que existe entre o corpo e a câmera, mas esse vácuo é de outra natureza, e precisa ser expressado de uma outra forma.

A morte do corpo não significa nada – o gato morto vai pro lixo – mas a percepção da ausência entre os vivos (a esposa da personagem de Descas) é, por si, devastadora. É aí que, por caminhos tão opostos, Claire Denis se encontra com Ozu – sujeito que filmou inúmeros funerais, mas que nunca deixava que seus filmes terminassem em um deles. E que, especialmente ao final da vida, adorava encerrar seus filmes com cenas de casamentos; aproximação entre rituais que se tornava ainda mais forte por Ozu escolher, sempre, a família da noiva – aquela que, no Japão, nunca ganha um genro; sempre perde uma filha. Pois com o casamento existia a certeza de que, mesmo fora de quadro, uma vida estava a continuar. A da humanidade, à sua maneira, sempre continua. As pessoas, cada uma à sua maneira, ainda dançam, trabalham, comem, tomam o trem, fazem cinema. É esse olhar sobre a continuação – fora do quadro de vida de Ozu – que Claire Denis confronta, em um misto de homenagem e agradecimento, à maneira que o mundo nos contempla, sempre, a mudar.

Setembro de 2009

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