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A história oficial

Já foi comentado que o drone que sobrevoa a grama verde em frente ao Congresso Nacional no princípio de O Processo ilustra com uma indubitável clareza a cisão política que existia na população brasileira no ano de 2016, pondo de um lado um grupo de manifestantes vestidos de vermelho que apoiavam o governo da presidenta Dilma Rousseff e denunciavam o golpe, e do outro lado, manifestantes vestidos de verde-e-amarelo, a favor de seu impeachment. As primeiras sequências elaboram um pouco mais profundamente esta polaridade, mergulhando na votação do Congresso através de imagens já amplamente divulgadas na mídia, variando entre os que votaram “sim” e os que votaram “não” para a instauração do processo, e também, alternando entre as celebrações de um lado e do outro. Uma das grandes imagens deste momento mostra um jovem vestido com a camisa do Brasil cerrar os punhos e comemorar junto a um pequeno grupo um voto positivo: o que está em jogo é uma construção cinematográfica que revela uma espécie de clássico Vasco e Flamengo, disputa de torcida de fanáticos para quem o que importa é ganhar o jogo, a visão da política não tão distante da visão de uma partida de futebol.

Por ora, voltemos ao drone. Com uma grande-angular, ele abarca numa só imagem as tensões latentes naquele movimento. Procura uma visão geral, organizada e desprendida. Ele não sobrevoa as áreas de tensão, mas o gramado entre elas. Observa tudo à distância, mas também, do ponto-de-vista de cima. Trata-se de um olhar, mais que frio, de onisciência. A imagem aérea do drone cinematográfico, cada vez mais utilizado, porém tornado ainda muito pouco objeto de reflexão, talvez carregue quase como uma segunda natureza este lugar superior de terceira pessoa, o olhar de Deus sobre o mundo, imperturbavelmente observando a comédia humana, o que vê mas não intervêm, e de modo impávido, organiza com uma certa neutralidade aquilo que vê. Que lança ao comum o que é por excelência da ordem do individual – o diametralmente oposto da típica imagem neorrealista que, após a panorâmica pela cidade, encontra em um zoom in o indivíduo da narrativa. É o olhar da História.

Embora não faça uma remissão direta, este sobrevoo nos recorda um outro: aquele que encerra a jornada de Capitão Nascimento em Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora É Outro (José Padilha, 2010), quando, após lhe ser revelado que, nos bastidores do tráfico de drogas do Rio de Janeiro, está em jogo uma dimensão política maior, ouvimos o off das reflexões do policial que repetem que “o sistema é foda”, despersonalizando a natureza deste sistema e concluindo que, para vencê-lo, “muito inocente ainda terá de morrer”; a câmera aérea ultrapassa o Congresso Nacional e a bandeira do Brasil hasteada atrás dele, e se eleva à altura dos céus. O que é da ordem do singular é suplantado. O importante é a ação global e messiânica, um invólucro que mais a frente justificaria uma ação como a Lava-Jato. Não obstante o fascismo implícito nesta perspectiva, ela parece antever oito anos depois onde será o palco da disputa política: no macro, e não no micro. A “inocente” citada pelo Capitão Nascimento aqui em O Processo é também a presidenta Dilma, e isto, de um modo ou de outro, este longa-metragem de Maria Augusta Ramos procura atestar, observando não a ela, mas ao processo kafkiano que a sacrifica.

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Esta imagem aérea é só uma imagem aérea, mas ela parece revelar o lugar de onde O Processo procura falar e, no fim das contas, ao que o longa-metragem de Maria Augusta Ramos se destina. O alvo não será a querela eminentemente ideológica desta votação na câmara dos deputados dos momentos iniciais, mas principalmente, as discussões internas posteriores da comissão do impeachment no Senado, onde algo de substancial do ponto-de-vista jurídico deveria emergir para além dos gritos pela família ou por Deus – o que não se prova verdade, no fim das contas. Em vários momentos, os personagens principais da narrativa – Gleise Hoffman, Lindbergh Farias e José Eduardo Cardozo – repetem que o processo já tem as cartas marcadas, que o impeachment é inevitável pois ele responde a um projeto maior de país muito mais do que a culpabilidade ou não, mas que seria importante levar a cabo todas as alternativas possíveis no âmbito jurídico como estratégia de marcação de posição. Pois todos ali sabem que, futuramente, a história os visitará para julgá-los, e que se faz necessário tomar partidos e ser agente, mesmo que derrotado, da formulação dela.

Que tais personagens que transitam no universo institucional queiram, de algum modo, angariar capital político para o futuro é compreensível, mas e quanto a O Processo? Embora faça-se como que um registro neutro e sóbrio dos acontecimentos do ponto-de-vista estético e como dispositivo de abordagem, as articulações de montagem constituem uma versão oficial desta História que, através de sua escrita, sacramenta uns e derruba outros. A forma como sobrepõe as falas umas as outras investem menos numa visão panorâmica do caso jurídico, mais comentado que esmiuçado, e mais na frequente exposição da fala dos políticos em cujo discurso o longa-metragem adere. O filme não é uma proposição de agitação política diante de um problema eminente e incontornável, e tampouco um esforço de descoberta pelo real por trás daqueles discursos todos, nem mesmo um projeto assumidamente educacional a la Grierson. É a elaboração de uma versão da história dos vencidos que se volta, com caráter de documento oficial – que vai com certificada linearidade da instauração do processo à prisão de Lula, servindo-se de cartelas para explicar o que não fica evidente nesta articulação. O Processo se coloca como o alicerce a um futuro possível, e neste sentido, não é tão diferente do rapaz que comemora o gol no inicio. Só que é outro jogo que quer ganhar: não o jogo do presente, que já parece perdido, mas o jogo da história. Uma outra geração poderá olhar para trás através dele e ver um outro lado das coisas. Isto é, se este lado não acabar, do ponto de vista histórico, por se tornar o lado oficial (o que é, no fim das contas, possível).

Mas toda História é história contemporânea, e o cinema bem ou mal atesta isto. O problema não é político, mas estético (e portanto, político). Hoffman, Farias e Cardozo acabam como figuras um tanto romantizadas, pois lhes é dado o poder de viver em carne-e-osso e com perfeita adequação a verdade deste discurso; e inclusive, com direito, diga-se de passagem, a uma calculada dose de autocrítica do projeto que encarnam, servindo mais para demonstrar sua humildade do que tornar grotescos os seus erros. Já a vilã encarnada é Janaína Paschoal, aquela para quem esta adequação entre a imagem e a fala é frequentemente posta a prova, evidente na maneira disparatada como discursa e nos seus arroubos emocionais que chegam ao ápice de colocar a Bíblia como livro maior que a Constituição, ou no momento em que manda um recado para um grupo de jovens internautas e não faz a menor ideia do que dizer. Janaína surge como uma figura atordoada naquele ambiente político, que não tem realmente nenhum lugar ali. Mas por quê mais Janaína do que Ananias ou outros com mais cacoetes políticos, que talvez saberiam jogar melhor com a própria imagem? O trio vence nas palavras; e diante de todo o material bruto que tinha em mãos, o longa-metragem certamente não opta em nenhum momento em desvelar uma certa rotura nestas coisas. Mas perde na arena do presente.

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Neste sentido, o longa-metragem de Maria Augusta Ramos acaba por se tornar, na melhor das hipóteses, um filme sobre quem sabe e quem não sabe encenar para a História. Não é à toa que os bons momentos do longa-metragem (e há um punhado generoso deles) revelam, por uma certa espontaneidade do material, uma faceta mais humana destas figuras políticas ou fazem chacota da seriedade da narrativa que filmam: uma sessão interrompida para se trocar o alarme da sala que não “faz jus à altura do processo”, a procuradora tomando Toddynho enquanto prepara o discurso do dia seguinte, ou Cardozo dizendo que vai para casa dormir e deixando sua equipe trabalhando na preparação de seu discurso. São momentos que nos aproximamos mais de um Frederick Wiseman e menos de formulações documentais canonizantes; onde o ridículo do processo político se faz evidente de maneira gritante.

Mas estes momentos acabam subsumidos por esta necessidade de deixar um testamento em forma de verdade histórica para que a justiça possa ser feita mais a frente, atestando ao que Stefan Zweig afirmou quando disse que o Brasil é o país do futuro. A macro visão acaba por sufocar estes espasmos de realidade. E a necessidade de romantizar algumas personalidades e demonizar outras com um certo maniqueísmo para se contar a narrativa política sufoca o cinema. Saímos da sala com a suave sensação de que há algo de artificial na história toda que nos foi contada, uma versão tão paradoxal e cheia de pontas abertas quanto o próprio processo kafkaniano, por que suas pessoas parecem mais inventadas que humanas. O problema não é a visão do macro ou panorâmica, e nem de forma alguma a opção de atestar o discurso de um dos lados; é a aparente sobriedade, a frieza e distância com que aborda todos os incidentes e trata o seu material, como que a evitar um drama que existe em latência, e tentar aparentar isenção. Por que a isenção lhe traria alguma forma de credibilidade na sua missão, no fundo, investindo num êxito comercial, em constituir-se como filme oficial do momento histórico. Para a História, é bem possível que este gesto de constatação da inevitabilidade da derrota – em sua distância e forma tão hirta – não sirva muito além da coletânea de imagens que faz. E a constatação do seu paralelismo com outros filmes – seu zeitgeist -, outros drones, e outros sistemas que vem nos últimos anos sendo denunciados.


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