Futuro Junho, de Maria Augusta Ramos (Brasil, 2015)

outubro 22, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fabian Cantieri

futuroDicotomias multifacetadas
por Fabian Cantieri

Dicotomias multifacetadas

O primeiro plano de Futuro Junho é, no sentido estrito do termo, o mais grandioso da filmografia de Maria Augusta Ramos: uma vista aérea de São Paulo feita de um helicóptero. As cenas seguintes dentro da mesma sequência, do abandono dos arranhas-céu às massas em trânsito no metrô ou nas concentradas avenidas paulistanas são uma espécie de aviso prévio de um paradoxo em elipse: “Falarei dessa cidade – que é, no Brasil, o grande espelho simbólico do que vem a ser o novo mundo em formação pós-crise de 2008 –, mas, para falar dessa cidade, preciso falar das pessoas; falando das pessoas, não tenho como dar conta da cidade”. Antes deste percurso, Maria Ramos vinha depurando um estilo próprio de encenação que aqui é seguido com um pouco mais de flexibilidade: filma seus personagens em plano médio – quando dois, em plano conjunto – para sempre inseri-los dentro de um contexto do espaço, geralmente com lentes normais, sem grande-angulares, para não perturbar a encenação à frente, mas também sem muitas teleobjetivas, para ficar distante e “invisível”, o que também poderia vir a desfocar o cenário.

Pela primeira vez, não temos uma instituição específica de norte, seja o tribunal de justiça junto aos institutos penitenciários em Justiça e Juízo ou a UPP de Morro dos Prazeres. Nos filmes anteriores, as instituições serviam menos como objeto fílmico em si e mais como meios de demonstração de certas relações de poder enviesadas e disfuncionais: na primeira cena de Justiça, um rapaz em cadeira de rodas tem que explicar sua apreensão, acusado de pular um muro para arrombar uma casa, o juiz que se surpreende com o absurdo do fato dele estar ali sendo julgado, não aguenta muito tempo da explicação e diz que a defensoria vai cuidar de seu pedido de atendimento especial; em Juízo, a principal juíza do filme, independentemente do caso, se vê na obrigação, em sua função pública, de dar lição de moral em todos os menores que perpassam por lá, desumanizando-os; em Morro dos Prazeres, uma cena é circularmente repetida no filme: a revista dos policiais aos moradores da favela.

Se antes víamos reiteradamente elementos de poder exercendo domínio sobre os mais fracos, em Futuro Junho a relação que se estabelece é mais indireta. É notável perceber, num debate após sessão do Festival do Rio, a consciência de André Perfeito ao se perceber “quase vilão do filme”. Em todos os filmes há esses quase-vilões: seja a juíza linha-dura de Justiça, a principal juíza em Juízo ou alguns policiais de Morro dos Prazeres. Aqui, Perfeito adentra nesse papel pela montagem: no silêncio de seu carro – não só uma contraposição à correria do Alex Cientista, como um isolamento acústico das lutas do povo na rua –, no jantar chique com a mulher, aclimatado um plano antes pela música clássica no carro ou na ida ao concerto que contrastam com o rap do Cientista e, mais translucidamente, na montagem paralela do jogo da Copa – o “brasileiro com muito orgulho, com muito amor” que vai aos estádios torcer pelo Brasil, enquanto Alex Fernandes, por exemplo, lida com o enfrentamento policial do lado de fora.

Maria Augusta Ramos já foi acusada de maniqueísmo à época do Justiça, na crítica de Cleber Eduardo na Contracampo, mas é interessante notar que estes quase-vilões nunca são personalidades maléficas em si, mas a evidência de uma classe cultural, social e politicamente dominante. Além disso, são incorporações de um sintoma, imagens-reflexo de um sistema de pensamento bem enraizado e estabelecido no Brasil que ganharam contornos ainda mais nítidos desde junho de 2013, mais especificamente no período pré-Copa de Futuro Junho: materializa-se uma ideia sobre uma ética da corrupção – o país está afundando não só porque “políticos são corruptos”, mas porque não se margeia por dentro dos limites da lei; a função primeira do cidadão de bem é não só estar dentro desses limites circunscritos, como regular este canal de navegação. Esta aparente previdência que é, na verdade, um pré-juízo de um ethos civilizatório de raiz cristã, acaba, naturalmente, inferindo punições a quem sempre viveu à margem por falta de escolha. Em Justiça, o problema da impunidade, a lei que se faz pouco – “se prende pouco nesse país”, pensa a promotora, segundo nos relata a defensora pública Maria Ignez; em Juízo, não importam as particularidades e estórias de cada menor – se cada um estivesse na escola, respeitando os pais, sem usar drogas, ou seja, inseridos na lei, “não estariam ali” na audiência criminal, fazendo seus pais sofrerem aquela humilhação (humilhação que a juíza faz questão que incorra, antes de tudo, sobre os menores – o arrependimento pela dor do vexame); logo no começo de Morro dos Prazeres, uma moradora reclama da frequência de roubos, e o policial contesta que não há colaboração dos moradores – é função dos cidadãos de bem a vigilância conjunta, para que se puna os maus elementos com mais presteza; em Futuro Junho ouvimos a lógica da lei pela lei através do discurso desconexo do juiz ao intervir na greve dos metroviários: “A intenção do tribunal não é que funcionasse 100%, mas que funcionasse de forma normal, como se não houvesse greve naqueles horários de pico (…). Posso até discutir que a determinação de 100% ou de funcionamento normal no horário de pico seria o mesmo que negar o direito de greve, (mas) o que está em jogo é que houve uma determinação judicial.” As complexidades nascem desse fascínio mefistofélico pela constituição: “Esteja dentro da lei, mesmo que ela seja carente de sentido”.

Maria Augusta Ramos gosta de se aproximar de seus personagens, vê-los transitando por entre o espaço público e privado. Muitas vezes as sequências filmadas na intimidade do lar ou da folga do trabalho estão lá para captar conversas de opinião direta, como Maria Ignez em Justiça conversando à mesa sobre “quem tá preso é ladrão de galinha, povo mais miserável”, ou Alex Cientista falando que “vai ter que ver o jogo em casa tomando suco porque a Coca está cara e o ingresso é para os ricos”, no que seu parceiro de cartas emenda um sarcástico “Brasil, um país de todos”. São momentos mais óbvios que deixam clara a posição da diretora ao repetir um senso comum político, ocasiões menos frutíferas, por exemplo, do que as deixas de um tempo aparentemente morto, como na cena em que o líder do sindicato, após os funcionários levantarem da mesa de volta ao trabalho, atende o celular e termina a conversa dizendo que seu trabalho “é pensar no futuro dos ‘peão’”. Aqui, temos um instante de curto-circuito: uma parte do país que ascendia economicamente não cresceu politicamente – ainda se faz necessário um representante para pensar em sua classe, pois aparentemente os trabalhadores dessa mesma classe não têm autonomia própria para se organizarem, suas vozes precisam de filtros. São todos peões de um anti-Maio de 68. Nesse sentido, Alex Fernandes é a personificação de um movimento oposto – um homem que quer ser líder, mas não consegue mais impor sua vontade à classe: no microfone humano, é contrariado ao final de sua convocação, nos arredores do estádio quer intermediar o confronto com a polícia em vão e seu discurso na plenária não convence a votação pela greve.

A última frase do filme é o eco de uma multidão gritando “a luta é uma só”, respondendo à dissidência de um rapaz contrariado ali no meio da manifestação. Futuro Junho, com a montagem final, nos questiona sobre estas palavras de ordem: será mesmo uma só luta? No último plano, temos a subjetiva de um trem seguindo trilho rumo à escuridão, enquanto do outro lado do quadro vemos uma avenida repleta de carros estourando a latitude do plano. A imagem é bem sintética: um espaço dividido, com abundância e escassez de luz, caminhando para rumos opostos.

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