Últimas Conversas, de Eduardo Coutinho, Jordana Berg e João Moreira Salles (Brasil, 2015)

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Fábio Andrade

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Fade out
por Fábio Andrade

Uma afirmação simples, mas silenciosamente reveladora, se dá antes mesmo de o filme começar: Últimas Conversas é o título que Eduardo Coutinho não poderia escolher, e que só faz sentido como comentário posterior a sua morte. É também um título que traz perceptível secura e objetividade descritiva, qualidades que se encaixam com a sensibilidade que o cineasta desbastou ao longo de toda a sua carreira – As Canções, Edifício Master, Um Dia na Vida, Peões etc. Este espaço entre “o que Coutinho faria” e o que “nós, que não somos Coutinho, podemos fazer” (o nós, no caso, a montadora Jordana Berg e o colaborador João Moreira Salles) é justamente onde o filme se instala, em busca não da montagem mais potente, mas da montagem justa.

De todas as conversas que podem ser tidas a partir de Últimas Conversas, nenhuma é menos adequada do que a prova dos nove dos traços estilísticos, em uma checklist que indicaria o quanto ele é ou deixa de ser um filme que Eduardo Coutinho faria. Coutinho, infelizmente, não está mais entre nós, e poucos gestos seriam tão violentos quanto aprisionar seu espírito ou legado em sua furtiva acepção de autoria. O que Jordana Berg e João Moreira Salles propõem é um jogo mais sofisticado, e ao mesmo tempo de apropriada dureza: não é possível termos um novo filme de Eduardo Coutinho (é preciso reafirmar e reafirmar o inevitável, até que se perceba a inescapabilidade do fato); o que é possível é averiguar o material que ele deixou incompleto (totalmente filmado, mas não montado) e buscar, ali, caminhos de espelhar, na forma do próprio filme, as condições que permitem que ele exista como pode existir. Novamente, o que é possível é prestar toda solidariedade à memória de Coutinho, e esse gesto só pode ser digno se não for reverente, se não passar pela simples mimetização redutora de um estilo que se esforçava de maneira sobre-humana para se anular. A despeito das curiosidades banais de fãs e jornalistas, nada seria mais desrespeitoso à memória de Eduardo Coutinho do que fazer de Últimas Conversas um filme típico de Eduardo Coutinho.

O caminho encontrado por Jordana Berg e João Moreira Salles é transformá-lo, portanto, em um filme sobre um filme de Coutinho. O “sobre”, no caso, evoca tanto o empilhamento de camadas (um filme por cima de outro filme – outro filme que não existe, de fato, mas que é permanentemente aludido nas brechas do possível) quanto o distanciamento metalinguístico: o filme de Coutinho, no caso, não pode ser obra; resta-lhe ser assunto. Essa impressão se confirma logo no prólogo, quando o rosto do cineasta toma toda a tela e explica, sem saber, as regras do jogo, como costumeiramente fazia: “não estou conseguindo, e realmente é melhor não fazer, do que fazer um filme de 70 minutos que você não acredite. (…) Vai parecer isto que você está dizendo: que, momentaneamente ou pra sempre, eu perdi a conexão que eu tinha, que eu posso ter tido ou que eu podia ter tido”. A fala é seguida de cartela que localiza o depoimento mais ou menos na metade do período de filmagem.

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No cinema de Coutinho, as regras do jogo sempre tiveram o papel fundamental de introduzir os termos da viagem e, ao mesmo tempo, direcionar a experiência do espectador. No caso de Últimas Conversas, o começo escolhido é a crise – crise que era parte razoavelmente esperada em seu processo criativo. Todo filme de Coutinho estava sempre próximo de não virar filme, e o diretor parecia ser sempre o último a acreditar que o filme tinha de fato virado. Neste caso, porém, segundo Jordana e João em entrevista a Pedro Butcher no press book que acompanha o lançamento, essa crise costumeira chegou a um estágio mais agudo, fazendo inclusive com que Jordana (a dona da voz que entrevista Coutinho no prólogo) fosse ao set de filmagem pela primeiríssima vez em seus muitos anos de trabalho conjunto. Começar pela constatação de algo extraordinário que se quebrou parece um gesto simples, mas que deixa uma pergunta aterradora: teria Coutinho levado consigo tudo que trouxe ao cinema? Seria esta impossibilidade de se conectar com o outro – de ouvi-lo, de se interessar por ele, de amá-lo como personagem – uma patologia mais ampla do cinema contemporâneo, em especial o brasileiro, que ali se despede de seu mais fundamental autor em décadas?

O justo prólogo só é justo por projetar sua sombra sobre as primeiras entrevistas, que vêm logo a seguir: Coutinho soa demasiado ansioso, interpelando e mesmo interrompendo o fluxo da fala de entrevistados por quem ele pouco parece se interessar, contrariando sua estratégia usual de, sempre que possível, nutrir o silêncio constrangedor à espera da fala desesperada (e, por isso mesmo, desmontada, menos precavida, menos auto-consciente – e, logo, mais verdadeira). Será que Coutinho de fato está mais falante? Seria isto efeito das escolhas da montagem, que optou por incluí-lo mais do que ele jamais se incluiria? Ou seria apenas reflexo de nossa crença inabalável nas palavras do diretor e, uma vez dito por ele mesmo que essa conexão não está mais lá, todo encontro passa a ser rondado por essa sugestão? Ou pior: seria a geração porvir imune à profundidade prosaica da curiosidade de Eduardo Coutinho? Seríamos, nós, também algozes deste mesmo desdém? Momentaneamente ou para sempre?

A dúvida se desfaz como cortinas que se abrem: na terceira entrevista, Coutinho pergunta a Rafaela sobre a relação que ela tem com a mãe, e uma clareira subitamente irrompe entre a fala e o rosto da entrevistada. É um momento que dura frações de segundo, mas que materializa o curto-circuito entre a fala automatizada de um mundo que se auto-ficcionaliza permanentemente e o abismo semântico onde as palavras fáceis para sempre se perderam. Por conta desse curto-circuito, aquela relação à frente e detrás da câmera (mas também entre o filme e o espectador, até aqui confiando nas regras de Coutinho e, por fim, se vendo convocado pelo filme a desconfiar) é obrigada a se reconfigurar. O coração parece travar por alguns compassos, enquanto um piscar de olhos grifa os lábios entreabertos que partem o sorriso sem graça que antecede a confissão: “não é uma relação de mãe e filha linda, que nem a gente vê em filme”.

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Importa pouco o que Rafaela pensa sobre a mãe – e Coutinho, inclusive, parece se sentir na obrigação de relativizar os sentimentos da menina (em Últimas Conversas, Coutinho é sobretudo um grande relativizador, um dialético a permanentemente complicar e expandir a lógica orgulhosamente fechada dos adolescentes com quem conversa). O que importa é esse momento de hesitação, esse fulcro dramático que tira o chão e que, pela brevidade do que é infinito, coloca tudo em risco e abre um sem número de futuros possíveis para a cena construída até aquele momento: é justamente por não ser uma relação linda, que nem a gente vê em filme, que ela produz esse momento profundamente cinematográfico, no qual expectativa e surpresa são embaralhadas, como em toda grande obra dramática.

Esse breve instante é o suficiente para quebrar o pacto que a montagem estabelece entre as palavras de Coutinho, no começo do filme, e a expectativa do espectador: está aí, irrefutavelmente, a conexão possível, a inexorabilidade do outro, a possibilidade de amar profundamente um personagem inclusive em seus enganos. Está aí, portanto, a grande contribuição de Coutinho ao cinema, e o motivo pelos quais voltamos, e voltaremos sempre, ao seus filmes, em busca do drama que a dramaturgia hoje tão raramente comporta, e que Coutinho – como Godard, como Kiarostami, como Farocki, como Benning – encontrou uma maneira extremamente peculiar e específica de narrar.

Daí por diante, o espectador é convidado a prospectar esse material quase bruto em busca dessas pequenas iluminações, essas colheres que distraidamente caem por entre as engrenagens da fala e tornam a imagem mais viva, incerta e complicada. O que existe, como em todo filme de Coutinho, é o esforço por quebrar o molde sem gorar o gesso, de atravessar as paredes da representação para poder permitir o gesto político de quem, muitas vezes sem perceber, se vê obrigado a questionar a posição que ocupa após ter sido levado a ocupar uma posição diferente (o gesto político por excelência segundo Rancière, que frequentemente cita o exemplo do trabalhador que interrompe a reforma que faz em uma casa para desinteressadamente olhar pela janela, por um instante que seja): “Spending My Time” na voz de Pâmela Luana; o longuíssimo silêncio compartilhado com Thiago Theodoro; a serenidade com que Estephane fala da relação com seu Papi; a mesma cadeira que o cineasta ocupa no princípio do filme e que reaparece vazia, por tempo suficiente para confrontar sua ausência, até que um novo personagem tome seu lugar; a direção que Coutinho dá a Amanda para que deixe a porta aberta ao sair, para que o filme assim termine…

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E é por essa mesma porta que, desrespeitando o desejo do diretor, entra Luiza, o filme porvir, que sobrevive a Últimas Conversas e ao próprio Coutinho. Há mais do que a beleza de uma coda na última entrevista; há mais do que a ternura pelo presente dado a Coutinho por sua equipe, lhe proporcionando provar o filme que se arrependeu por não ter feito; há mais do que uma criança esperta, com a graciosidade que lhe cai tão bem, e com uma linguagem ainda capaz de entortar o discurso sem esforços de poesia (“Deus é um homem que morreu” é, ao mesmo tempo, uma extraordinária fala de cinema, e uma extremamente ordinária fala de criança, dado o fascinante repertório de desconcertos que todas elas carregam sob a manga). Há mais pois, de súbito, percebe-se que aquele estúdio feito escola era parte do dispositivo de opressão que fazia com que todos aqueles adolescentes tomassem vias mais ou menos parecidas na conversa e na vida; há mais pois Luiza, assim como Coutinho, vê um estúdio como um estúdio, arrematado pela saudação à plateia, ciente de que ali se encontrou uma graça que, até o momento, estava desaparecida daquele jogo; há mais pois, em vez do gesto reverente do cineasta que aponta para a saída, ela vê a possibilidade de um último cumprimento (cumprimento de chapas, de parceiros de brincadeira), estalando-lhe um tapa nas mãos que, de tão arguto, pode carregar tudo – a relação de mãe e filha que nem a gente vê em filme; o silêncio estranho e ótimo; a canção do Roxette pelas caixinhas do celular; o tipo sanguíneo dos famosos em um programa matinal de televisão; “Como Vai Você” a capella em um teatro às escuras; Andrea Beltrão e o mais duro “puta merda” da história do cinema; um suicídio evitado por carnês de prestação ainda não pagos; a catadora que dizia que trabalhar no lixão era melhor do que em casa de família; a despedida em forma de discurso de Elizabeth Teixeira; a porta aberta e a cadeira vazia que se apresentam não como luto, mas como o convite a um lugar a ser ocupado. E um longo fade out que faz com que a voz de Coutinho continue soando, se maravilhando e se repetindo com as surpresas daquele acaso tão cuidadosamente orquestrado, afirmando que nem tudo acaba quando chega ao fim.

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