Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert (Brasil, 2015)

setembro 18, 2015 em Andrea Ormond, Cinema brasileiro, Em Cartaz

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Ideias perigosas
por Andrea Ormond

Mães e filhas sempre dão pano pra manga, Joan e Christina Crawford que o digam. Mas Que Horas Ela Volta? é obra que nos permite diversas interpretações, criativas e poderosas, de sua história e das questões que propõe. Assim, me parecem não só burrice, mas um desperdício de tempo, todas as leituras sob a ótica de “ricos X pobres” que vem recebendo. Ora, a luta de classes em Que Horas Ela Volta? é a questão menos importante. E, fosse apenas isso, não teríamos o grande filme que cresce a cada revisão. A diretora e roteirista Anna Muylaert, sempre muito feliz na construção de personagens, aqui dialoga com Freud, Nietzsche, Nelson Rodrigues, o diabo a quatro. Principalmente com este último, ao operar ideias perigosas que vão contra o senso comum das sociochanchadas e afins.

Antes de qualquer coisa, deve ter sido difícil a escolha de Regina Casé para o papel da empregada Val. O problema de se assistir a um filme com Regina Casé me parece ser assistir ao filme apesar de Regina Casé. Não me entendam mal: Casé não é ruim, mas se inscreve naquela categoria de interpretação em que pessoa-figura pública-personagem cada vez mais parecem a mesma coisa. Era o caso de Robin Williams, que sempre interpretou Robin Williams, ou do argentino Ricardo Darín, com seu olhar de cachorro molhado. Ano passado vi Darín no teatro, em Buenos Aires, e tive vontade de lhe soprar aos ouvidos: “Seja menos Darín! Seja outro!”. Para Casé, igualmente. Seja outra; alguém distante de suas idiossincrasias e eterna zona de conforto. Cabe ao bom diretor, ao amigo sincero ou ao espectador de saco cheio um esforço hercúleo para, fazendo as vezes de psicanalista, retirar o ator dessa fidelidade canina a si mesmo.

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Não sei o que Anna Muylaert conversou com Regina Casé, mas deu certo. Val é uma doméstica, daquelas à moda antiga, que dormem no emprego – no caso, uma bela casa no Morumbi. Teria morrido de pasmo ou doença, servente na casa dos patrões, não fosse a chegada da filha Jéssica (Camila Márdila) para fazer vestibular em São Paulo. Na falta de outro lar, de outro domicílio, ela abriga a garota junto a si, no quartinho onde vive. Aos poucos, Jéssica, que tem a mesma idade de Fabinho (Michel Joelsas), o filho dos patrões, vai ganhando espaço dentro da casa, como elemento externo que desestabiliza a todos.

Devemos proteger os fortes contra os fracos, diz a máxima nietzscheana. Val é passiva, sem agressividade, cordata em demasia. A filha que chega, ao contrário da mãe, não aceita o status quo. Quem aos 17, 18 anos, aceita? A patroa de Val (Karine Teles) acaba querendo ver Jéssica pelas costas. Sente que o marido e o filho a desejam, e não retribui a Val a lisonja de tratar sua cria como a fiel guardiã trata Fabinho. Val, por sua vez, largou a filha durante dez anos no Nordeste, nas mãos de terceiros, e minimizou a culpa crescente dando amor incondicional ao menino. O que ela não percebe (como não percebem todos os neuróticos) é que seu mecanismo não pode ser correspondido. Val é tratada com educação, também com frieza. Mesmo para Fabinho, seu porto seguro de afeto, ela é apenas conveniente. Uma espécie de figura de avó, a quem certas crianças amam, sublimando a dor e a delícia de uma real maternagem.

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A filha que ela recebe não compactua com isso. E cai de paraquedas em um ambiente pra lá de viciado. E Muylaert delira: a patroa parece saída de um episódio de Mulheres Ricas, uma espécie de Val Marchiori que não dá tesão; enquanto Jéssica é agressiva e esperta. Interessante que os esgares da patroa, até sua prosódia, lembrem pouco o “dinheiro antigo” de certa sociedade paulistana. Assemelha-se às nouveau riches cariocas, estilo Barra da Tijuca, daquelas que pensam mais em dinheiro do que propriamente o possuem. Por essa explosão de alienação só conseguimos sentir receio. Talvez porque ela seja não uma burguesona de verdade, mas arquétipo fantasmagórico, estandarte de uma nação.

O personagem misterioso do “núcleo rico” acaba sendo o marido, Dr. José Carlos (Lourenço Mutarelli). Sobre ele queremos saber mais, entender melhor. Bizarro que o sujeito também não tenha ares, nem postura de bacana. Apreciando Mutarelli de Matarazzo, eu o imaginei ali em frente ao Center 3, vendendo badulaques, ou fazendo uns rolos com LPs na São João. De fato, Dr. Carlos é um artista em crise, que enxerga na menina alguma possibilidade de recomeço. Não vivesse bebendo guaraná, ensimesmado e abusado como escada da maldade “mulheres ricas” da esposa, poderia ser uma espécie de trickster, papel que sutilmente é cumprido por Jéssica.

Confesso que passei o filme torcendo para Jéssica fazer algo de relevante, agir como uma Giselle rediviva e comer a família inteira (inclusive a patroa matrona), porém age como mocinha típica, expulsa da casa debaixo de chuva (só fica faltando um guarda-chuva cor-de-rosa) e ainda assim aprovadíssima com 68 pontos no vestibular. Fabinho, reprovado, afunda em ligeira depressão. Ser rico não garante boa colocação na Fuvest, pelo menos da tela pra dentro. Porém, não ouçam minhas taras: é lógico que Jéssica passe e não trepe com ninguém daquela casa infeliz. Ela é a fortaleza, que nada pede e tudo conquista por seu próprio esforço. O que parece uma escolha politicamente correta, na verdade é uma demonstração quase didática de meritocracia. Os mimados, os fracassados, os vacilantes, ficarão para trás, mais dia, menos dia. A garota é tinhosa e, em uma vinheta de amor e reparação, quer levar a mãe consigo, para longe.

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Voltemos a Dr. Carlos, que figura, meu Deus! No seu solipsismo, no seu niilismo solitário, é ele quem enxerga – sob a égide do poder ultrajovem, como diria outro Carlos, o Drummond de Andrade – uma última esperança. Quando diz que levará Jéssica para “onde ela quiser” está pedindo, na verdade, para ser guiado por ela. É homem típico do século XXI, que na ausência de sentido (os homens atuais perdem o sentido quando, acuados por culpas, abdicam de sua potência), aceita prestar-se a um papel quase feminino. Curioso é que afirme ser o provedor da casa, através de uma herança paterna. O que lhe concederia autoridade moral, no entanto, parece deprimi-lo ainda mais. Dr. Carlos, no seu banzo rentista, não é fraco (fracos são a esposa e o filho, que o exploram). Lembra aqueles personagens dos filmes de Xavier de Oliveira, um vampiro ao contrário, um vampiro que é sugado. A esposa que manda, a empregada que obedece, para José Carlos são, no fundo, todas ridículas. Menos Jéssica. Provável que ele goste também do filho, mas é um “pai mental”, como no brilhante conto de João Carlos Marinho, sobre uma figura paterna macambúzia e ausente.

A solução para a permanência do conluio doentio seria, portanto, frustrar Jéssica, castrá-la. Até a própria mãe, que não conhece outra existência senão a de servir e culpar-se, tenta isso. Percebam que Val é a principal interdição aos sonhos da filha, quando almeja que a filha seja sua continuidade. Os patrões, o Morumbi, a questão social e industrial, a cachorrinha Meg, viram, aos poucos, gatilhos desse embate melancólico. A última ideia perigosa resta insidiosa no final, que promete uma existência virtuosa para as duas. Só que existências virtuosas não são garantidas por desejo. Uma briga em cinco minutos é bem mais crível que o desemprego eufórico. Olhando Val e Jéssica na mesa da nova casa, traçando planos onipotentes, confesso que me perguntei o que fariam quando as primeiras contas chegassem. Os créditos se encarregam de desfazer essa angústia repentina. E resta a certeza de que Jéssica conseguiu, ou conseguirá, romper com o ciclo que as estigmatizava diante de pessoas inúteis, menos capazes que elas. Uma leitura derradeira possível é que a filha, sendo “good enough mother”, no sentido winnicottiano de “proteger” Val (e Dr. Carlos, Fabinho) daquilo que não compreendiam, até de nomear aquilo que eles não compreendiam, cobra e resgata seu papel de filha e sua necessidade de proteção.

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Que Horas Ela Volta? enseja algumas comparações com o recente La Nana, filme chileno de 2009 sobre o mesmo tema. Tratam-se de casos distintos: La Nana fala de uma mulher com personalidade esquizoide, borderline. A psique de Val é saudável, seu conflito é antes expiação que grave patologia. Na comparação, Que Horas Ela Volta? me parece melhor pensado e construído. Não chega a ser um 7 X 1, que nos redima de humilhações, como Jéssica redime Val. No filme chileno, a empregada doméstica é liberta do empastelamento por uma colega serelepe. Acontece que La Nana é frio, rígido, íntimo. Que Horas Ela Volta? é veemente.

Quando utilizo a expressão “veemente”, me arrisco a alimentar mais ideias perigosas. Esqueça o leitor, portanto, da chatice de lições moralistas disfarçadas de inteligência, tão comuns hoje em dia. Anna Muylaert apenas soube pensar uma história em que “o justo” – outra ideia perigosíssima! – não se manifesta por decreto ou patrulhamento, como querem tantas feministas de Facebook. A noção de alguma justiça para aquelas mulheres, ainda que tardia e falha, cresce por mérito e vontade. “Não sou inteligente, sou curiosa!”, diz Jéssica em um de seus deliciosos momentos. Talvez por isso, Que Horas Ela Volta? esteja incomodando tanto. Mulheres curiosas são uma forma irritante de subversão.

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