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Material, tenaz

Apesar do lugar de destaque que a obra de Frederick Wiseman alcançou neste século XXI – depois de mais de 50 anos de atividade e mais de quatro dezenas de filmes –, a recepção de sua obra ainda se dá em meio a bastante ruído. A fama de “cinema observacional” plasmada na imagem da “mosca na parede” da observação neutra acaba por nublar as principais armas de um dos maiores artistas de todos os tempos, não só do campo do cinema.

Enclausurar Wiseman numa postura supostamente ingênua, que acreditaria numa não intervenção no que mostra, é não só um erro conceitual, mas também uma maneira de perder o principal que o seu cinema oferece. Seu trabalho consiste justamente em conceber uma fina dramaturgia, baseada em princípios abstratos de composição, que se renova a cada objeto e situação. Entretanto, não é um jogo de decifração que se produz, mas sim pequenos lances de expectativa, de relações sutis, de variação de ritmo, que revelam não só o caráter objetivo do funcionamento de seus objetos, mas também a materialidade de suas presenças e relações.

O interesse de suas obras sempre repousa sobre a arbitrariedade conceitual (organizacional, institucional, linguística) confrontada ao caráter descontrolado da experiência vivida. Não por acaso, seu método consiste em não fazer pesquisa prévia, filmar como uma pesquisa, e depois atravessar um intenso e complexo processo de montagem, que resulta numa tapeçaria fluida e altamente densa em suas relações na estrutura do filme e no contato plano a plano.

Wiseman faz em cada um de seus filmes um cosmos de regras próprias, e linhas que o expressam em níveis variados. Se seus sistemas podem parecer eventualmente homogêneos, é porque, dentro dessa moldura de estabilidade, há outra coisa ali pulsando, numa escala menor. Em La Danse, a atenção se volta ao espaço que é sede do balé Ópera de Paris. Dentro desse espaço, varia-se principalmente entre os ensaios de dança e a sala de reuniões. Entre esses dois, sequências de menor ênfase de duração, com planos externos do prédio e da cidade, alguns trabalhadores manuais do balé, responsáveis, por exemplo, por figurinos e alimentação. As sequências do filme são, muitas vezes, como estranhos teoremas de uma matemática dinâmica. Não só vemos o conjunto de ações que convergem na realização dos espetáculos, mas também, pela maneira de enquadrar, a igualdade que guardam as ações manuais, por exemplo.

Este “institucional de luxo” (o filme foi parcialmente financiado pela própria companhia, a partir de uma proposta do próprio diretor) funciona perfeitamente para um exercício de reflexão sobre o choque entre elementos que poderíamos chamar de “clássicos” diante de materiais modernos. Logo na primeira sequência de planos curtos de espaço, podemos notar o interesse do olhar nessa tensão, presente já no espaço: paredes de pedra, cordas de sustentação, combinadas com dutos metálicos e salas espelhadas. Mais do que definir esse espaço pela relação entre o clássico e o moderno, o filme quer mostrar como isso funciona, que forma tem essa oscilação.

Não por acaso, o repertório que é mostrado nos ensaios também varia em seu registro, indo de Pina Bausch ao Quebra-Nozes, por exemplo. Presenciar o cotidiano pelas lentes e pelos ouvidos de Wiseman é perceber as microtensões desse ambiente em seus níveis variados. Um superprofissionalismo executivo dos dirigentes do Balé convive com uma estrutura altamente hierárquica, em que os mais velhos e mais poderosos estão sempre dando ordens e julgando, por exemplo. O tipo de comunicação que se dá nos ensaios, com seu veio necessariamente rítmico – dado seu ambiente –, é contrastado com a fala da diretora-executiva do grupo e sua performance peculiar de negociadora. Ao mesmo tempo que se passa horas ajeitando um movimento de pé, também se passa horas planejando orçamentos e administrando esse fino jogo de hierarquias e egos.

Esse cinema afinal tem mãos clássicas – que produzem uma imagem do mundo que se encaixa em sua apresentação mais direta – e um coração moderno, que é responsável pelas estruturas que primam pela fluidez, mas quase nunca pela linearidade, nem pela explicação fácil de sua forma. A inquietude de seu ímpeto narrativo é manter o espectador sempre alimentado de pequenas novidades: seja um movimento de câmera que muda a perspectiva no ensaio ou mesmo a descoberta, na segunda metade do filme, de que há uma criação de abelhas no prédio. A obsessão constelativa de Wiseman tem premissas éticas e estéticas, em igual peso. É preciso realmente fazer das organizações uma história, que variem de um elemento a outro, cujo resultado final só se feche quando termina a projeção.

O coração moderno desse cinema é medido pela importância que sua intervenção tem nos pesos e nas medidas, na presença de detalhes e variações de planos. Um mote do filme é a insistência com que o diretor usa na imagem o reflexo dos bailarinos deformado pela fenda entre dois espelhos – uma imagem cindida pelo relevo material da superfície reflexiva. Esse refrão visual evoca o objeto simbólico que metaforiza sua fama de cineasta “direto”, e nos reitera justamente o contrário no meio de cenas de ensaios e conversas, sem nenhum motivo aparente além de sua função metafórica.

Todos os reflexos de Wiseman sempre foram defeituosos, refratados, cindidos ao meio pelo seu enorme talento, que alia naturalidade e estranhamento de maneira extremamente pessoal. Ao mesmo tempo que transforma o comum em esfinges, usando de elipses violentas e cenas que soam arbitrárias em princípio, esse cinema trabalha complexificando inteligilibilidades, adensando formas de conhecer e a ideia mesmo de “conhecer”. Ver um filme como La Danse é ser violentamente obrigado a fazer relações entre elementos heterogêneos constantemente, entre padronizações variadas de tempo, enquadramento, mas sem nunca perder um certo interesse pela noção de todo, comunidade ou coletividade.

Seu cinema se consagra definitivamente nos anos de consolidação de uma sensibilidade neoliberal justamente pela sua extrema sensibilidade às formas da coletividade. Não só objetos coletivos, mas de estruturas que nunca convergem ao uno ou ao individual. Seu imenso catálogo é um dos mais ricos inventários sobre as coletividades ocidentais durante o século XX. Seu interesse em observar onde os sistemas produzem falhas, entretanto, é justamente bombeado por um avesso do niilismo.

Se esse cinema adquire hoje uma aura talvez inigualável entre os cineastas vivos, é porque justamente ele antecipa as cisões nos sistemas marcados pela ideia de democracia. O mundo caminha na direção oposta do ímpeto organizacional de Wiseman, então seu cinema se torna cada vez mais evidentemente disruptivo. Instituir é criar mediações, em que a vida se torna ao mesmo tempo mais racional e desvairada. Toda regra e convenção guarda uma imensa porção de loucura ou de nonsense. O projeto artístico aqui em questão se interessa justamente pelas situações em que esses dois potenciais se revelam em igual proporção variando entre um e outro. Essa é afinal sua dança, que ganha aqui um dos capítulos recentes mais graciosos.


Neste mês, a Sessão Cinética exibe La Danse – O Balé da Ópera de Paris (2009), de Frederick Wiseman. A sessão será dia 10 de Janeiro às 18h no IMS Rio e dia 17 de Janeiro às 18h30 no IMS Paulista. Após a exibição, haverá debate com os críticos da revista e convidados/as.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão em parceria com o Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

La Danse – O Balé da Ópera de Paris será exibido em DCP.

Ingressos à venda na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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