In Jackson Heights, de Frederick Wiseman (EUA, 2015)

janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

* Cobertura do 53o New York Film Festival

injacksonheights2

All of this will go
por Fabio Andrade

“And darling, it’s not
Easy to spot
But all of this will go
Darling, sometimes
These things take time
But all of this will go”

All of This Will Go, Guided by Voices

Nos últimos anos, os documentários de Frederick Wiseman têm tido como ponto de partida a definição precisa de um lugar, estabelecendo limites espaciais claro que muitas vezes chegam ao título dos filmes. O resultado desse enclausuramento voluntário frequentemente gravita entre dois polos. De um lado, estão os filmes que se aproveitam dessa limitação espacial como oportunidade para esmiuçar a natureza dos procedimentos sociais e humanos que ali acontecem. O lugar passa a ser definido por essa atividade, e o trabalho de Wiseman consiste em desdobrar as muitas camadas de ação ali encenadas, para que ele possa, então, encontrar a especificidade dessa ação. O lugar, neste caso, é um dispositivo, um palco onde essa atividade floresce, e a locação age como um laboratório, permitindo que sua câmera amplie e ilumine essa mesma atividade. É o caso de La Danse (2009), Boxing Gym (2010), Crazy Horse National Gallery (2014). No extremo oposto estão os filmes que partem de uma multiplicidade de experiências humans para criar uma espécie de tapeçaria, de forma a visualizar e determinar a natureza específica deste espaço. Em vez de partir do confinamento para uma investigação em 360 graus do todo de uma atividade, é a soma de ações e relações levemente conectadas que resulta em uma imagem complexa do próprio lugar. É o caso de Em Berkeley (2013) e deste novo In Jackson Heights.

injacksonheights1

O resultado desta última estratégia é aparentemente mais próximo de uma experiência tradicional de cinema direto, na qual o espectador passa por cuidadosa infusão de paciência pela natureza pregnante dos próprios eventos, até que as peças se encaixem e um sentido global se faz ver. Aqui, Wiseman silenciosamente observa a vida cotidiana de Jackson Heights, um bairro encravado no meio do Queens, à margem imediata dos bairros mais recentemente gentrificados da cidade. A variedade das situações apresentadas parece norteada por um centro identitário verbalizado em uma reunião de um grupo LGBT que o filme mostra logo em seus primeiros minutos: “Jackson Heights é a comunidade mais diversa de todo o mundo”. Por um longo tempo, é exatamente isso que nos é oferecido. Em vez de começar com um princípio definido que será afunilado e decantado ao longo do filme, Jackson Heights se define pela expansão, humanizada por sua ampla palheta de cores, texturas, sotaques e rituais, das flores de anilina ao matadouro local. Essas fatias avulsas de vida formam uma espécie de composição, uma paisagem em colagem deste lugar e desta experiência – passando sempre longe da experiência redutora do turismo, buscando as contradições de uma autenticidade expatriada, mas não o exotismo – que, por si só, é extremamente rica e recompensadora.

injacksonheights3

Mas certo desconforto permeia todos esses diferentes episódios… uma sensação de perigo que se esparrama das bodegas às articulações políticas, dos jogos da Copa do Mundo à parada LGBT, que parece fortemente ligada à história do bairro. O filme parece alimentado por um desconforto sutil, mas crescente, que imediatamente traz à lembrança a segunda parte de outra obra-prima recente do cinema de observação: A Oeste dos Trilhos (2002), de Wang Bing. No segundo bloco de sua narrativa épica sobre Shenyang, Wang Bing passa um par de horas apenas acompanhando um grupo de adolescentes que passa a maior parte de seu tempo vagando pelo bairro. Aprendemos seus nomes, guardamos o tom de suas vozes e testemunhamos a maneira como interagem, tudo sem razão narrativa aparente. É somente depois de estarmos mais do que familiarizados àqueles personagens e à maneira como suas vidas é definida pela partilha de um mesmo espaço que o filme deixa entrar a informação de que todo aquele bairro será destruído, e que seus moradores serão removidos para as mais diferentes partes da província. Aquela relação que progressivamente aprendemos a amar está prestes a acabar, interrompida pela impiedade do processo histórico. Luto antecipado parecido plana sobre In Jackson Heights, primeiramente apresentado de forma bastante ligeira no princípio do filme, mas ganhando peso progressivo uma vez que nos foi dada a chance de passar tempo maior no bairro: o BID (Business Improvement District) está tentando passar novas leis para o zoneamento do bairro, o que por fim resultaria no fechamento de boa parte dos empreendimentos locais, forçando as pessoas que ali viviam a buscar outros cantos, quebrando as ligações estabelecida ao longo dos anos com aquele lugar e com as pessoas e espaços que ali convivem.

injacksonheights5

In Jackson Heights subitamente passa de documentário de observação a filme de suspense, na mesma medida em que o extraordinário Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080, Bruxelles, de Chantal Akerman, é também um thriller: uma espera ansiosa por uma catástrofe desconhecida mas iminente. O que transforma o filme em algo muito maior do que um simples resmungo conservador é, novamente, diretamente ligada à escolha do espaço. Primeiro, pela própria natureza múltipla de Jackson Heights, com sua trança de latinos, judeus, muçulmanos, negros, famílias tradicionais e classes do novo mundo: trata-se de um bairro fundado em variedade, e nenhuma imagem pode ser mais antitética a isso do que uma GAP ocupando um quarteirão inteiro antes casa de diversos pequenos negócios. Segundo, porque, diferente de muitas outras áreas de Nova York, Jackson Heights ainda não ter passado exatamente pelo processo de gentrificação; é o próximo da fila, decerto, e os bairros ao redor anunciam seu destinam em letras garrafais, mas o sentimento de “ainda não” é suficiente para desmontar o romantismo reacionário (meio que justo) em nome de um ativismo de fato.

injacksonheights4

As muitas reuniões que o filme registra de todas as minorias que se esforçam para superar sua trêmula fraqueza via organização comunitária são não apenas outra representação da natureza multiforme da própria comunidade, mas também um chamado maiúsculo às fundações da democracia representativa e da constituição de qualquer nação moderna (a despeito de inclinações políticas muitas vezes antigas). Os empreendedores latinos são vistos como iguais aos representantes oficiais, que são vistos como iguais ao prefeito De Blasio, como se a reafirmar que os poderes que existem são também dependentes e responsáveis pelos fracos (todo o episódio sobre a criação de um documentação de identificação municipal – a ID NYC -, por exemplo, traz essa negociação para o primeiro plano). De terno e gravata ou de sapatos desamarrados, são todos filmados com o mesmo interesse e dignidade, como partes iguais da formação do espaço em questão. O conceito abstrato de comunidade é presentificado na prática de comunhão, de cidadania, de participação, e o bairro é reestabelecido como praça Grega: um espaço onde idéias, medos e desejos são expressos e compartilhados, como vibrações que pode e vão afetar a comunidade que os cerca.

injacksonheights6

O que está em jogo, portanto, não é apenas uma barbearia, uma clientela envelhecida, ou um autêntico bairro de Nova York; o que está em jogo é a própria democracia. E a democracia é definida, em sua fundação, como a soma de pequenas partes, assim como o filme. É justamente por serem vistas como pequenas, como algo belo e vivo o suficiente para ser amado e cultivado, que elas podem se expandir e florescer em uma soma que é maior, mais significativa e mais politicamente potente (de baixo pra cima) do que as suas partes. In Jackson Heights eletriza todas essas reflexões sem jamais anunciá-las (esta é a estratégia do inimigo, a estratégia do BID e da Gap, e Wiseman jamais partilharia seu vocabulário), por meio de um instinto observacional e sempre surpreendentemente alegórico (cada galho é um microcosmo quando filmado pela lente de Wiseman) que só faz ficar mais claro, mais paciente, mais focado, mais tocante e preciso a cada novo filme.

Share Button