National Gallery, de Frederick Wiseman (Reino Unido, 2014)

maio 20, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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O entre-campo do olhar
por Pablo Gonçalo

Em National Gallery, como de costume, a câmera de Frederick Wiseman permanece lacônica. Quase não grifa, salienta muito pouco e quer captar algo que está ali, dentro do plano, mas que não é evidente. Afinado com as pinturas da célebre galeria, em Londres, esse algo demanda um tempo precioso, um tanto secreto, para ser percebido e apreciado. Com paciência, o diretor norte-americano não quer exatamente mostrar as pinturas ou os quadros que lá estão, mas conduzir o olhar dos espectadores para um âmbito intermediário, transitório, fronteiriço.

A National Gallery guarda 2300 quadros, todos minuciosamente valorizados, com trabalhos de coleção, compra, curadoria e especialistas que atravessam décadas. Lá estão quadros de Ucello, Botticceli, Da Vinci, Ticiano, Veronese, Rembrandt, entre tantas outras raridades dos principais pintores ocidentais. Os quadros estão condensados em poucas salas, cuidadosamente pensadas, calculadas e estudadas, ofertando uma fluída narrativa do visível ao desfrute dos visitantes. Há um tremendo orgulho de todos os funcionários, sem exceção, que por ali passam, trabalham e visitam, e esse orgulho, bem inglês, gera, no argumento e na montagem, um delay, uma lentidão para criar brechas entre o olhar que a instituição projeta para fora, como discurso, e passar um olhar intruso, quase invasivo, sugerido com sutileza, que a própria instituição, envolta no cotidiano do ofício, não tem condições de perceber.

Nesse ritmo de desatenção e desfoque, a primeira hora do filme parece um institucional comum e bem feito, mas estranho nas mãos de Wiseman. No entanto, o que seria um museu? Essa é a pergunta que inquieta Wiseman. Afinal, existem no mínimo uma meia dúzia de instituições similares à National Gallery nos Estados Unidos e na Europa, com qualidade e finalidades similares. Assim, a pergunta amplia-se: qual fenômeno ocorre dentro, entre, antes, durante e depois de uma interação com o universo das pinturas? Desde os primeiros planos do filme, Wiseman dá certas pistas. Pela montagem, bem precisa e presente nesse filme, ele mostra menos os quadros do que o ato de olhá-los. Vê-se as pinturas, rapidamente, mas na sequência, no campo dentro do campo de visão, vê-se o espectador, olhando, analisando, interagindo. Em seguida, no terceiro plano, após o contracampo, surgem detalhes do quadro: uma mão, um olhar, um objeto e, nesses encadeamentos, tenta-se olhar o que o observador observa, numa dinâmica que, sutilmente, passa do registro à especulação. Aqui deve-se salientar a forte presença do contracampo em National Gallery, algo realmente raro nos filmes de Wiseman, que comumente prima por tomadas diretas, contínuas, com poucos cortes. Contudo, não é exatamente o contracampo que Wiseman quer realçar, mas o instante em que o olhar fabrica-se, entre a imagem presente no quadro, viva, e a imagem observada, no instante da sua percepção. Talvez seja aqui, nesse hiato, entre o quadro e sua projeção subjetiva, que Wiseman tenta, por sua audácia e pela pintura, restituir o instante cinematográfico.

Curiosamente, essa sensibilização do olhar é acompanhada por uma forte verborragia e por diversos ofícios, intermediários, que estão fora do campo, distantes do quadro, longe das pinturas, mas virtualmente presentes, pelos arredores, pelas beiradas, nas forças que convergem para os enquadramentos institucionais do quadro. Assim, Wiseman acompanha os guias de grupos de visitantes – adultos e crianças – detalhes e aspectos históricos dos quadros; as entrevistas dos curadores; os dilemas dos restauradores; as discussões sobre orçamento; os projetos educacionais (como a bela sequência em que filma uma aula de pintura para cegos); os estudos de modelos vivos; e os debates e decisões sobre as formas de montagem e de apresentação das obras. Ao alinhar e justapor a observação desses profissionais, o filme enfatiza as formas como as palavras levam às imagens, ou, no caminho inverso, nas comoções vindas da pintura que suscitam expressões verbais. Delicadamente, o diretor capta as relações de afeto que circundam a imagem, ou, se quisermos, os instantes de afecção inerentes ao ato de ver, perceber e se sensibilizar com pinturas.

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Wiseman transita entre a antecâmera – os bastidores dos profissionais do museu – e o ressurgimento da imagem, nos olhos do público. Seu foco nesses peritos revela um duplo movimento: há, de um lado, o estudo e o resguardo de uma tradição, como se fosse necessário conservar e burilar a pintura na sua área original; do outro, o instante com o público revela uma interação com a imagem que sempre sugere incessantes afetos, emoções e projeções. Em determinado momento, durante a sua palestra para um grupo de visitantes, uma guia diz que, todo dia, durante o seu trabalho, descobre – ou inventa? – um aspecto novo naquelas pinturas. Num contraste, percebe-se o dilema vivido pelos restauradores: eles sabem que os traços originais das pinturas, nos seus detalhes mais invisíveis, já estão perdidos, corroídos pelos séculos, e que até mesmo a manutenção desses aspectos primitivos passam por intervenções e atualizações. Inevitável, nessa brecha, nesse entrementes, não resvalar nas dinâmicas de sobrevivência das imagens, teorizadas por Aby Warburg. Como um duplo vetor – de arquivo e atualização – as pinturas seriam nunca exatamente as mesmas, mas, mutáveis, camaleônicas, sempre ambivalentes, ambíguas, sugerindo uma espiral infinita de outras afecções possíveis.

No entanto, todas as teorias de Warburg, assim como as interpretações de Didi-Huberman sobre esse historiador da arte, já são bem difundidas no campo museológico e nos debates mais contemporâneos sobre estética. A força de um documentário como National Gallery não está em filmar e constatar esses pólos, mas em transitar, com notável elegância, entre seus movimentos. Wiseman não capta somente a sobrevivência das imagens ou sua atualização, mas os limiares que são transpostos nos instantes em que se forma um olhar. Sua câmera busca captar os milésimos de segundo entre o campo e o contracampo, entre a imagem, física, que está lá, e a imagem mental, que é produzida. Não é mero acaso, nessa toada, que a última pintura que o filme mostra seja um dos auto-retratos de Rembrandt, cujos olhos nos olham, frente a frente, como se diante de um espelho oculto, fantasmático, que transforma o olhar do objeto no olhar do sujeito. Como fênix, como as cinzas das horas e o rio de Heráclito, a imagem continua lá, pétrea; mas ela – e nós, observadores – já não são somos mais os mesmos.

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