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A vida deles

A realização de um documentário sobre uma cidade pequena americana parece um passo natural dentro da trajetória de Frederik Wiseman, que, desde o início dos anos 1960, tem se dedicado a observar uma determinada instituição dos Estados Unidos contemporâneo, um filme depois do outro, seja a escola, o hospital, a universidade, o departamento de polícia, o zoológico ou biblioteca. Monrovia é uma cidade do Meio Oeste de cerca de 1400 habitantes, localizada no estado de Indiana. Pertencente ao distrito de Morgan, que em 2016 elegeu com 76% dos votos Donald Trump presidente do país, a cidade parece ocupar facilmente um certo topos discursivo comum a respeito da conjuntura política atual dos Estados Unidos: a pequena cidade rural de maioria republicana, onde uma classe trabalhadora branca conservadora tornou-se a base para a ascensão do bufão fascista ao poder. Monrovia, Indiana não deixa de satisfazer as nossas expectativas a respeito da cidade, inventariando certos motivos que atribuímos a população representada: a religiosidade conservadora, o patriotismo das bandeiras hasteadas, o gosto pelas armas de fogo e, sobretudo, a ansiedade diante de um futuro onde a homogeneidade social da comunidade talvez não esteja mais garantida. O filme, contudo, interroga Monrovia a partir de um horizonte de preocupações mais largo, onde os desdobramentos políticos mais recentes se diluem no tempo mais lento e contínuo das instituições e ritos sociais. A postura de Wiseman é a de uma observação movida menos pelo sentido de urgência e mais por uma atenção analítica e paciente, mas que não perde de vista o presente.

A pergunta profundamente atual sobre que formas de vida são produzidas em lugares como Monrovia se transforma em um filme sobre como uma pequena comunidade governa a si mesma. O filme apresenta as instituições que organizam a vida na cidade, uma depois da outra, quase exaustivamente: plantação de milho, escola, igreja, assembleia comunitária, bar, restaurante, barbearia, salão de beleza, loja de trator, loja de licores, loja de armas e assim por diante. A escolha de mostrar, logo no início, as fazendas de pecuária, com as vacas e os bois enclausurados, marcados e identificados pela numeração pregada nas suas orelhas, sugere um olhar particularmente atento às formas em que a vida se torna objeto de regulação, a governabilidade ao mesmo tempo da população e do indivíduo. A vida dos animais reduzida a seu substrato biológico e a seu rendimento econômico é sucedida pela cena onde um grupo de pessoas se reúnem numa mesa em recinto fechado para discutir a condução de suas vidas pela partilha do ensinamento religioso, com o direito à palavra sendo passado de um a um. Adivinhamos tratar-se de um grupo de encontro para discutir com um orientador espiritual assuntos de natureza teológica. Um participante toma a palavra e fala que a existência na Terra é uma vida de tribulação, em que Deus nos põe à prova o tempo todo. A gestão biológica e econômica da vida apresentada no início se desdobra agora em gestão espiritual, pela qual os homens daquela pequena comunidade pretendem governar suas vidas: o filme de Wiseman está particularmente atento às formas de administração dos corpos e das almas, dando especial importância aos ritos pelos quais se regulam as relações entre a vida e morte, tempo e eternidade, como nas cenas dos cultos na igreja, do casamento, do funeral e do enterro.

A atenção de Wiseman ao modo de existência dos ritos se mostra particularmente aguda na cena de condecoração de cinquenta anos de um membro local da Maçonaria, na loja maçônica da cidade. Um grupo de homens brancos de terceira idade se reúnem em uma saleta com decoração e indumentária maçônica tradicional. Um mestre conduz a cerimônia lendo um texto tropegamente, como se empostasse uma solenidade protocolar um tom um tanto acima da situação, mas não dominasse de fato a liturgia, todo aparatado de signos maçônicos que mais parecem as sobras de outros tempos e lugares, que sobreviveram ao seu significado social. O discurso é sobre a vida em Deus de um verdadeiro maçom. A gravidade do rito se contrastava com a ausência de testemunhas no momento: uma cerimônia enfadonha realizada numa sala vazia apenas para meia dúzia de homens velhos, cansados. A longa duração que o filme oferece à cena atesta o seu caráter paradigmático dentro do filme: um ritual cujo sentido histórico enfraquecido parece, na verdade, importar muito pouco, porque ainda assim vemos a função social do rito ser cumprida – a instituição de uma comunidade entre as pessoas, os tempos, a vida e a morte. A cena na loja maçônica funciona como um caso onde a dinâmica social do rito aparece esvaziada de sentido para o espectador e, portanto, exibida em sua teatralidade.

As cenas do casamento, do enterro e do funeral retomam certos motivos da cena da Maçonaria. A cerimônia do casamento performa para a sociedade a construção de uma instituição que pertence à eternidade, antes que ao tempo. O noivo coloca sobre a mesa, no púlpito, uma cruz branca, que se torna o receptáculo de uma cruz menor, que é depositada pela noiva cuidadosamente no seu interior. O pastor nos lembra que a mulher foi feita “de uma parte do homem”, como se assistíssemos na cerimônia a sua devolução: a cruz do noivo, feita de linhas retas, firmes, se contrasta com a cruz da noiva, feita de linhas curvas, enroscando-se, formando padrões decorativos, graciosos. O encaixe representa a harmonia de posições de gênero hierarquicamente demarcadas. Uma cantora negra acompanha com sua voz a cerimônia, onde todos os participantes são brancos. Um abraço íntimo coletivo entre os familiares no púlpito encena embaraçosamente a continuidade da instituição familiar, passada de geração em geração. A sequência do funeral também encena a prestação de contas entre o tempo e a eternidade. O pastor ocupa o papel de regulador das relações entre os vivos e os mortos. A sua mensagem de consolo é a reativação da promessa do paraíso, lembrando os vivos que não deveria haver motivos para lamentação. O ente querido que partiu nunca esteve melhor como agora. Uma pequena narrativa da recepção do morto por Deus nos céus nos mostra, contudo, um mundo dos mortos imaginado ao modo do mundo dos vivos. O pastor fala que um banquete espera o recém-chegado, logo depois da porta, como se o paraíso fosse apenas a repetição desse mundo e Deus aguardasse os salvos numa casinha, como as que existem nas ruas de Monrovia, uma do lado da outra.

A estrutura de Monrovia, Indiana não se organiza, contudo, em torno de ritos privilegiados. O filme se constitui, em grande medida, como uma série sucessiva de instituições que não apresenta uma progressão particularmente marcada, onde as diferenças de ênfase e importância dadas pelo filme são, na verdade, bastante discretas e pontuais. A impressão geral é que a ordem das cenas importa muito pouco, como se a despeito da importância social de cada instituição na vida comunidade, o filme dedicasse igual atenção a cada uma delas. A experiência de se assistir ao filme é a de acompanhar os ritos da cidade pacientemente um depois do outro, como se as distinções entre o importante e o desprezível de repente se perdessem de vista. Uma cena aparentemente banal pode se revelar profundamente marcante, como quando assistimos a uma venda de colchões num estande montado na cidade. O vendedor seduzia um casal de clientes para uma marca de colchão impermeável, quando resolve mostrar um frasco de vidro, contendo um líquido amarelo translúcido. O líquido no frasco, comenta, seria o quanto um ser humano adulto transpira em uma noite normal de sono. A cena remete a várias outras no filme em que uma certa consciência do corpo é encenada pelos personagens, como na dos os exercícios físicos na academia, dos cortes de cabelo nos salões, das refeições no restaurante e das conversas no bar sobre a saúde da família. Uma cidade, o filme parece insinuar, é um sistema de sistemas, onde uma população e seus pequenos hábitos biológicos são governados.

Um lugar em particular, no entanto, retorna várias vezes ao centro do filme: a assembleia comunitária. As razões para o seu retorno são, na verdade, bastante evidentes. A assembleia não é apenas uma instituição central para o governo da vida comunitária, mas ela é a instituição pela qual a cidade se constitui propriamente enquanto comunidade governável. As sequências de discussão entre os membros da assembleia são também a oportunidade que o filme tem para mostrar que a administração da vida daquela cidadezinha não é um terreno pacificado: trata-se do momento em que a cidade se revela a partir dos seus dilemas: os seus futuros possíveis. O principal deles diz respeito à dicotomia entre o crescimento econômico e a conservação de suas formas de vida. A gestão de Monrovia não é muito diferente às de tantas outras cidades maiores, onde o debate do bem comum encontra-se capturado pela racionalidade neoliberal, pela qual cidade é pensada antes de tudo como empresa. Para uma cidade de 1.400 habitantes, o crescimento econômico exige necessariamente um crescimento demográfico. O imperativo do crescimento se confronta com a ansiedade com a abertura social da comunidade. Uma moradora não se cansa de lembrar que o último empreendimento imobiliário de grande porte da cidade significou aumento da criminalidade. Monrovia, comenta, é uma cidade de “pessoas de bem”, como se temesse profundamente a perda da homogeneidade social da cidade que poderia vir com o crescimento. Entre os imperativos da desregulação neoliberal e a reação conservadora, Wiseman talvez tenha mostrado um fragmento eloquente do presente.


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