Estamos no México, e Fernanda Rivera, a protagonista do documentário Antígona, chama de maestro quem no Brasil nomearíamos como professor. Confesso uma ligeira indecisão sobre qual dos vocábulos prefiro. Maestro denota um saber como posse, é asperamente nobre, presunçoso, hierárquico, mas também transmite, nas suas rápidas sílabas, uma notável tradição. Professores seriam sujeitos a disseminar práticas, espalhar ideias, conceitos – como se fossem pares, um tanto horizontais, das descobertas dos alunos. Um pouco moderno, com pitadas mundanas. É justamente a oscilação, meio sacra, meio profana, dessa vontade de pertencimento e de diáspora que o filme de Pedro González-Rubio tão bem registra ao acompanhar as jornadas de Fernanda pelo campus, e os maestros; pela cidade e o que ela tem a ensinar. Essa obra capta raros instantes de formação – sempre pelo ponto de vista irrequieto dos estudantes, dos seus corpos a pulsar uma alegria cara à juventude.
A despeito da distância entre maestros e professores, a vida de Fernanda é bastante similar à realidade brasileira. A Universidade Autônoma do México, a Unama, com a sua arquitetura moderna, lembra diversos campi daqui. Tem algo da praça do relógio da USP. Alguns traços dos círculos da UNICAMP; vestígios das curvas de Niemeyer que adornam a UnB. Fernanda frequenta aulas de teatro e letras. Seus amigos conversam sobre Beckett, Brecht. Mas Fernanda também é uma cidadã do mundo contemporâneo e seu vocabulário, curiosamente, aproxima-a dos alunos que hoje frequentam nossas faculdades. São afins suas inquietudes políticas. Numa manifestação, elas gritam, num canto gutural, lindo, tocante, que não foi “assassinato”, mas “feminicídio”. Sim, feminicídio, e é preciso grifar essa palavra, que hoje, tão bem usada, retrata tanto o absurdo desses acontecimentos quanto a urgência de combatê-los. Nas ruas, os cartazes mostram uma estudante que morreu. Uma igual a elas. Igual às alunas daqui. Igual a tantas niñas e meninas dessa América latina.
Fernanda, desde o primeiro quadro do filme, alinhava pontes. São construções enfáticas, explícitas. Ela traz Antígona, a antiga tragédia grega, para o México dos seus dias. Justo Antígona, a filha de Édipo, que precisa enterrar seus irmãos, Etéocles e Polinice, apesar da proibição de Creonte. O documentário concentra-se nos ensaios dessa peça clássica, mas, vagarosamente, as pontes transformam-se em fios soltos, espalhados pela cidade, a comentar os encontros com pais, filhos, amigos. A peça, nesse palco-mundo, evoca uma vontade de habitar a cidade, o país, de transformar a cultura, o continente. Uma transformação política, insurgente, improvável. Enquanto rufam os tambores militares e a bandeira do México é hasteada, as garotas correm com os cabelos soltos, libertos, diante de muros pintados. Os tambores ainda rufam e a pergunta ressoa, na mesma síncope: por que Antígona? O que realmente essas estudantes tanto querem e precisam enterrar?
Ao visitar a mãe, ela canta “Duerme Negrita”, num matriarcado doce, acolhedor, sereno. Ao conversar com o pai, ele diz: o século XXI é das mulheres. Na sua época, continua, os casamentos eram conveniências. Há, hoje, possibilidades de escolhas. As mulheres estariam livres para praticarem o arbítrio do amor. Fernanda ainda hesita e lança um olhar de desconfiança ao pai, como se já soubesse disso. Essa sequência, no entanto, enlaça uma pista essencial para o filme. Ali, Fernanda está numa situação de protagonismo diante do pai. Torna-se um pouco Antígona, a enterrar o paradigma edipiano, um pouco mexicana, incomodada sobre os dizeres dos pais, os falares dos homens teorizando sobre o passado, o presente e o futuro das mulheres. Fernanda esbanja voz, corpo, espaço e autonomia suficiente para dizer mais – e a despeito do seu pai. Dispensa porta-vozes.
Das melhores peças de Sófocles, Antígona esgarça os intervalos e as tensões existentes entre os rituais fúnebres, o luto e uma malquista herança masculina. Uma herança do patriarcalismo? Curiosamente, Antígona, o documentário, não possui nenhuma atuação masculina preponderante. Nenhuma voz clássica e heteronormativa, nos veios do ‘esquerdo-macho’, esse arquétipo masculino das paisagens universitárias que tão bem singulariza uma recente cultura política da latino-americana. Nem como fantasma ele paira, e é assim que um baita filme político acontece, indiferente a esse arquétipo, que ainda forma tantos maestros, professores, atores, políticos, cineastas, escritores e críticos dessas paisagens que nos habitam. Falo do esquerdo-macho mas aponto ao patriarcado, que é, nessa leitura, a grande figura a ser enterrada na encenação de Antígona. No filme, no país, o patriarcado já atua como morto, mas seu ritual fúnebre permanece incompleto e sua herança incomoda. Ou ao contrário, ele soa vivo mas já perambulando em corpos como um fantasma. Sem sentido, ao menos naqueles fiapos utópicos que a universidade abriga. Nas ruas, nas avenidas, sua presença é maior, embora gradativamente embotada, mais embotada do que nunca.
Iniciei essas linhas atentando às palavras maestro e professor. Reparem: dois substantivos masculinos. Duas palavras também cheias de poder. Não é preciso nenhuma investigação filológica minuciosa para perceber um ranço sexista que ambos vocábulos, nas duas línguas, carregam historicamente. Numa confissão final, que a conduz a discretas lágrimas, Fernanda fala como a ética do teatro e da arte é permeada pela resistência contínua, permanente para não sucumbir à violência de um cotidiano opressor. Até mesmo os maestros e professores precisam resistir. Caso contrário, sucumbem. Nessa confissão, a resistência revela-se como uma via de mão dupla. Ora são as heranças não enterradas que persistem, ora são as cidadãs contemporâneas que precisam encontrar essa contra-mola a resistir, a persistir rumo a superação dessas heranças indesejadas, insuportáveis. Mais do que formadas, Fernanda e sua geração nos ensinam, nos dizem que passou da hora de abrir as veias do patriarcado latino-americano. Com elas, essa travessia anuncia-se tão bela quanto improvável.
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