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Dizem que sou louco

Uma ideia razoavelmente comum desde que o cinema se consolidou em sua vertente de arte narrativa é que os conceitos e a prática psicanalítica não apenas seriam aplicados muito bem como ferramenta crítica de análise de obras como de fato seriam ferramentas importantes para a escritura e construção de personagens na ficção. É verdade que essa relação entre arte narrativa e psicanálise está bem longe de começar com o cinema – afinal não é nenhum acaso que alguns dos conceitos fundamentais para a mesma venham da tragédia grega, fonte da arte narrativa por excelência. Mas podemos entender como isso se radicaliza na aproximação com o cinema, uma vez que ambos (cinema e psicanálise) são na prática crianças do século XX e “cresceram juntas”, por assim dizer. Nesse processo de influência comum, é natural que o passo seguinte fosse se considerar o ambiente do consultório psicanalítico e da prática da terapia como um tema profundamente cinematográfico (nesse sentido, algo similar acontece com os tribunais e narrativas de julgamento – e não sem semelhanças nas razões para tal, já que em ambos os casos são ambientes onde se procura revelar uma “verdade escondida nos atos humanos”). Pois dois filmes exibidos em Cannes nos últimos dias nos ajudaram a lembrar como essa aproximação a princípio natural é na verdade coalhada de armadilhas para a construção ficcional.

Entre os dois, o novo filme de François Ozon, L’Amant Double, certamente é o que lida mais direta e fundamentalmente com essa questão – de fato, não apenas o consultório (visto aqui como um espaço, digamos, expandido) é o berço de toda a trama, como de fato a narrativa do filme está totalmente baseada em conceitos psicanalíticos. É claro que Ozon sempre foi um cineasta “do jogo”, para quem a ficção cinematográfica é antes de tudo uma arena para a manipulação às claras de personagens e ferramentas de construção (seja no sentido do uso do equipamento cinematográfico, seja no sentido das armadilhas e arabescos de suas tramas). Nesse sentido, a utilização do arsenal de pistas falsas e construções enganosas de identidade que o espaço do consultório psicanalítico permite é algo quase natural como tabuleiro onde pode movimentar suas peças. E há algo de efetivamente prazeroso em acompanhar a forma como ele se esbalda em não só multiplicar praticamente a cada cena as possibilidades de exploração desse jogo, como principalmente na forma pouco sisuda com que ele faz isso – não apenas no sentido de que ele faz a narrativa rir de si mesma, como na maneira de explorar formas bem “baixas” da arte narrativa (o pornô soft, o melodrama de crime passional, etc).

L'Amant Double (2017), François Ozon
L’Amant Double (2017), François Ozon

Só que também não é algo novo na obra de Ozon que ela encontre o limite para o prazer da fruição desses seus jogos justamente na sua própria hiperconsciência em explorá-lo – algo como a cobra que morde o próprio rabo, e se envenena ao fazê-lo. Porque se seria absolutamente tolo analisar os filmes de Ozon por qualquer conceito de “verdade” externo a eles, é impossível não perceber que a maior parte deles esgota bastante rápido o arsenal de reviravoltas e de desmascaramentos que propõem, nos restando acompanhar na maior parte das vezes personagens francamente desinteressantes, pois percebemos neles a arbitrariedade e o vazio da sua construção – o que, no caso desse filme específico, é um dos riscos inerentes a fazer de seus personagens pouco mais do que arquétipos para conceitos psicanalíticos. Principalmente, são poucos os atores que conseguem fazer desse jogo de construção e desconstrução algo realmente profícuo, e nesse filme Marina Vacht, que era justamente uma das forças principais em fazer de Jovem e Bela um dos melhores filmes recentes de Ozon, acaba mostrando que não segura esse tipo de papel. L’Amant Double termina no escaninho dos brinquedos elaborados de Ozon que a gente se cansa antes de terminar de jogar.

Essa sensação mais geral de um certo enfado é mais ou menos a mesma que temos ao final de La Cordillera, embora por motivos bem diferentes. Nesse seu novo filme, fica bem claro que Santiago Mitre busca dar um passo à frente nas suas ambições como cineasta, seja pelo escopo mesmo da produção, seja por seu tema e objeto (que uma das primeiras cenas aconteça na sala de trabalho do Presidente da Argentina já diz muito). O filme começa com essa pegada de um olhar “secreto” sobre os bastidores do poder político, na sua maior encarnação, a Presidência da República. No entanto, na medida em que evolui, o filme vai mudando de foco, e cada vez mais dedica sua narrativa a tentar traçar, por um caminho um pouco peculiar (um caso de escândalo político no seio da família que resulta na necessidade de realizar sessões de psicanálise e hipnose com a filha do Presidente), um desenho do que seria o caráter formativo da psique de um homem público de alto poder político na atualidade.

Não é sem interesse esse desafio, de uma ambição quase insana, a que se dedicam Mitre e seu roteirista (o também cineasta de carreira respeitável, Mariano Llinás). No entanto, a decisão um tanto melodramática de fazer com que tudo se passe em “tempo forte” (a possibilidade do escândalo, a filha traumatizada e totalmente instável, tudo isso durante a realização de uma conferência de presidentes latino-americanos para lançar um programa conjunto de petróleo do continente) torna o que poderia ser um exercício revelador de somar o retrato íntimo do homem no Poder com uma radiografia das entranhas do jogo político numa série de improváveis e pouco críveis cenas, nos dois lados. Nem as cenas da psicanálise da filha e seu efeito no pai nem as cenas do encontro dos Presidentes funcionam – tudo parece forçado, mal resolvido, encenado de maneira burocrática para atingir os objetivos do roteiro.

La Cordillera (2017), Santiago Mitre
La Cordillera (2017), Santiago Mitre

Nesse sentido, é revelador o fato de que o filme pareça sentir a necessidade de propor um all-star das estrelas do cinema latino recente (não apenas os presidentes são Ricardo Darín, Paulina Garcia e Daniel Jimenez Cacho, como o psicanalista/hipnotizador é o onipresente Alfredo Castro), explicitando assim que a decisão de aumentar a aposta em termos de gasto financeiro e escopo narrativo ajuda certamente a explicar uma série de outras escolhas (da ordem do narrativo e da estética), inflando o filme como proposta ao mesmo tempo em que o esvazia da possibilidade de fugir da armadilha montada para si mesmo. Curiosamente, ao contrário dos já citados “Presidentes” argentino, chileno e mexicano, o Presidente brasileiro, que é uma das figuras-chave no quebra-cabeça montado por Mitre na parte mais estritamente macropolítica do filme, não é interpretado por nenhum ator conhecido brasileiro. Muito pelo contrário: quem o interpreta é uma figura bastante pontual da TV e do teatro, o ator Leonardo Franco. É uma decisão realmente estranha na comparação com os outros, a qual pode ter se dado por vários motivos (e inclusive, provavelmente, pela soma deles) – mas que, como resultado, não deixa de entrever entendimentos reveladores sobre a relação brasileira com seus “hermanos”.

Mas para além dessa escolha em si, dentro do atual panorama político nacional, é quase hilário ver o Presidente brasileiro retratado como alguém que busca se fortalecer como a grande liderança latino-americana, com aspirações de ser um líder mundial relevante, e que quer enfrentar os interesses norte-americanos como maneira de impor uma agenda própria. Velhos tempos que não voltam mais, eu diria, o que dá ao filme, que aspira uma contemporaneidade total, um ar de filme de época – ao menos, no Brasil.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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