O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti (Brasil, 2013)

novembro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Raul Arthuso

orionospertence

Movimento dos mares
por Raul Arthuso

O Rio nos Pertence é um filme fraturado. Seja simbolicamente, pelo filme que se parte após um prólogo e personagens que trocam de nome e de idioma; seja literalmente, pela personagem de Mariana Ximenes com a perna engessada, andando com a ajuda de muletas, tudo no filme marca a ruptura e a distância que passa a existir dela.

A mais sensível das rupturas dentro da estrutura do filme é a distância marcante entre o dentro e o fora de quadro. O Rio nos Pertence usa de uma série de estratégias do cinema fantástico – um gênero amplamente decodificado – para criar certo clima de incerteza, notadamente o desenho de som e a música experimental (também um código de ruptura em relação a uma forma de organização historicamente hegemônica). A incerteza e o desconhecido trazido pelos sons fora de quadro não se tornam evidenciais ao longo do filme, pois nunca ganham o quadro. Estabelece-se, então, a relação entre a ameaça externa/desconhecida do fora de quadro e as personagens, de forma clara nos olhares de Marina (Leandra Leal), dentro da casa, para fora do quadro, para a janela, para outro cômodo ou, simplesmente, para o corredor escuro que ela não adentra e que guarda algum perigo com o qual não travaremos contato.

A ruptura imageticamente mais forte, contudo, é entre exterior e interior: a cidade que se dá a ver pela tomadas em externas do filme em oposição ao claustro dos apartamentos onde as cenas se desenrolam. As personagens, de certa forma implodindo nos apartamentos, não colam com a cidade retratada. A relação não é de interação, na medida em que os planos da cidade não localizam as ações senão de forma generalizada (isso se passa nessa cidade, nesse conjunto de imagens, nesse painel). O filme perverte o cartão postal, a forma de generalização da cidade por sua imagem particular – e é essencial falar nisso quando se trata do Rio de Janeiro, sempre de braços abertos ao capital turístico. Os planos de passagem, descolados da cidade, são a cópia-carbono do avesso do imaginário dessa cidade que remete ilusoriamente ao Rio de Janeiro, mas é apenas espectro.

Um desses planos resume a relação dos corpos com o espaço: uma ilha. Coberta pela densa vegetação, aumentando seu caráter de “pedra bruta gigante”, ela está inteiramente rodeada pelo mar, envolta numa bruma pouco usual à paisagem canônica do Rio de Janeiro. São assim metaforizadas as personagens. Há dois planos de uma efêmera comunicação entre interior e exterior: duas grandes janelas. Na cena em que aparece uma delas, coberta por jornais, o ato é de abrir o vidro, e então percebe-se a imensidão da paisagem que rodeia o universo interior onde se passa a ação; na outra, é possível ver o movimento da cidade enquanto a ação se dá num fundo que é maior – em tamanho físico, em potencial, em valor simbólico – que a ação principal. As personagens – e por conseqüência, o filme – estão ilhados nesse cenário de entorno; por outro lado, busca-se a preservação desse interior cheio de lamentação e angústia, proteção possível contra a epidemia que se dá lá fora (não entrar no corredor da ameaça, não se perder no fora de quadro).

Interessante, então, que na verdade o título, apesar da evidente referência ao primeiro longa-metragem ficcional de Jacques Rivette, faz uma inversão do que se vê na tela. São as personagens que pertencem ao Rio, não o contrário. Essa questão de pertencimento é fundamental da figuração do filme: o prólogo formula uma referência direta à expulsão do Éden, a mulher e o homem nus, após o sexo, com uma leitura da Bíblia via Haroldo de Campos transformada em monólogo; há referências à casa dos sonhos do casal na primeira parte do filme, feita em AutoCAD, residência que nunca terão; e o final fala sobre uma fuga do espaço que é seu para outros mares desconhecidos. Assim, o título que inverte a relação factual faz um balanço, por sua vez, desse pecado original de Adão e Eva, do abandono, da melancolia, da angústia, tenta adiar a tal fuga para o desconhecido, como se pudesse “virar o jogo”. O título O Rio nos Pertence é o desejo da ilha olhando o mar. E isso coloca um enorme impasse em jogo.

Pois, mais que qualquer outro filme recente, O Rio nos Pertence – por sua referência à cidade e uma certa inquietação quanto ao estado das coisas formulando uma angústia extrema das personagens diante de seu “ser-ilha” – nos tenta a leitura sob o olhar da situação social após as manifestações que tomaram as ruas nos últimos meses e que, no Rio de Janeiro, ganharam desdobramentos maiores que em outras importantes cidades do país. Isso, primeiro, é impreciso, na medida em que o filme é anterior ao contexto em questão. Em segundo lugar, não parece que filme se proponha a traçar questionamentos sociais mais amplos para além da inquietude de viver em determinado tempo e lugar.

Entretanto, O Rio nos Pertence parece um exemplo da postura corrente no cinema brasileiro recente diante da atualidade. A sensação que motiva o desejo de leitura do filme em relação ao que veio depois se dá por ser possível ver nele o estado de descontentamento e impasse possivelmente motivadores da erupção do atual momento. Marina vai progressivamente sendo excluída de diversas instâncias: primeiro do paraíso, depois dos sonhos, em seguida do amor e, por último, do “aqui-agora”, a mais efêmera forma de experiência do mundo. Ao mesmo tempo em que vai perdendo o lugar no mundo, Marina não cabe em si. E, nesse sentido, a melancolia trazida pelo filme é um reflexo justo da sensação que caminharia para a erupção de fato nas manifestações atuais. Por outro lado, parece que o filme pára por aí: o retrato, o reflexo – que, obviamente, parte da experiência individual do cineasta, buscando depois ressonâncias em outras pessoas. Não é, nesse sentido, um filme de síntese, mas de sintoma. O cinema brasileiro – e, a rigor, a arte brasileira – se contenta historicamente em ser sintoma social e, na melhor das hipóteses, reflexo do andamento das coisas. Toca-se a música conforme o baile: o cinema brasileiro tem sido o acompanhamento de luxo de uma jam session da história.

Para a pergunta, após as manifestações – e não estou certo de que a pergunta seja a certa nem a mais justa –  “onde estava o cinema brasileiro no meio do caminho?”, O Rio nos Pertence fornece um resposta exemplar: experimentando os reflexos. O reflexo tem caráter reativo e residual, nomeia tanto a reação física não-intencional à ação das coisas sobre o corpo quanto o duplo especular. Reside, então, uma sensação dúbia diante de O Rio nos Pertence, sua grande força dentro de sua fragilidade ontológica, ao ser esse reflexo inconstante e incerto da experiência urbana, colocado em tela pela metafórica imagem da ilha; mas, ao mesmo tempo, ter a poeira se assentando sobre esse reflexo, que, de alguma forma, foi enterrado pela conjuntura, deixando exposta a incapacidade do que seria sua arte de transformar o mundo, de estar à frente, ser uma forma de pensamento que atua sobre o mundo e não apenas um compêndio de posturas mediadas pelo tempo. A ilha, agora, já avançou sobre o mar.

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