vazante

A fita branca

As mãos que escrevem este texto estão contaminadas por uma angústia que um filme como Vazante suscita. Se o filme escolhe falar de um episódio de 1821, sobre a terra encharcada de sangue da Minas Gerais colonial, esse sangue reversamente bombeia, como que por vontade própria, através dessas mãos que também não lhe pertencem, mas que aqui encontram morada, ou melhor: escoamento. Nessa torrente pontual, pedem passagem também conversas de corredor, memórias de um debate, e um contraste que me provocou uma imprevisível surpresa aos olhos entre duas formas muito distintas de receber o retorno ao cinema de Daniela Thomas.

Faz sentido descrever que há pouco, no festival, no debate sobre o filme durante o Festival de Brasilia, houve uma explicitação de uma cisão de modos de pensar entre grande parte da plateia, especialmente negras e negros, e, do outro lado, a diretora do filme e alguns jornalistas. Assumindo a voz do filme identificada a si mesma, rimando uma posição individual com a perspectiva do filme, Daniela Thomas atestava o limite de sua narrativa como se ela estivesse condenada a manter sua atenção ao redor da jovem sinhá. Além disso, reiterou que este não seria um filme militante, supondo que haveria um lugar fora da intervenção politica onde o filme viria a atuar. Entretanto, a conversa coletiva se tornou justamente uma pequena performance anticolonial, na medida em que a politica parece ter aparecido ali mesmo, pois consiste numa alteração sobre quem e como se fala. Talvez a posição a partir da qual tentei intervir junto a outras pessoas lá possa ser resumida na forma da compreensão do colonianismo como algo que contagia tudo – desde a formação de equipe, coproduções, foco narrativo, decupagem, e tudo mais. O arranjo colonial consiste em certos tipos de alinhamento, dos quais o que resulta afinal é somente manutenção do status quo. O pequeno teatro que se fez num auditório de hotel de luxo em Brasília parece ter tido o efeito de quebrar uma certa impressão que a presença do filme se localizaria num lugar reservado e seguro, inclusive para uma boa parte dos críticos e jornalistas. Entretanto, o jogo de performances e argumentos fez ver a cisões que nos fundam e nos antecedem. Em relação a elas, não há possibilidade de desresponsabilização. Os parágrafos que seguem têm também a marca desse vivido.

Essa tal angústia poderia ser descrita como uma interrogação crescente diante de uma espécie de estrutura de acúmulos que os blocos – separados por blacks (!) – vão lentamente constituindo, diante de nossos olhos, dos eventos em torno do tropeiro Antonio, vivido por Adriano Carvalho. Esses blocos, esculpidos com a assinatura técnica desse que é provavelmente um dos grandes diretores de fotografia em atividade hoje no mundo, Inti Briones, se constituem em uma espiral ao redor de uma propriedade colonial isolada na mata mineira. Por aproximadamente duas horas, observamos homens e mulheres de idades variadas, cuja principal distinção se dá pela cor de pele. Isso decide as moradias, os trabalhos, os afetos, e o direito à vida e à morte. Da primeira cena, com uma fila de homens acorrentados pelo pescoço, tratados como mercadoria, até a última, onde duas pessoas negras são assassinadas a sangue frio, fica evidente que o que funda esse vai-e-vem é um “defeito de cor”.

Digo vai-e-vem porque o filme deliberadamente impõe uma espécie de ritmo ralentado. Não só da duração dos planos ele é constituído, mas também de um certo apetite em mostrar uma farta variação de partes dessa lavoura arcaica cuja imensidão de tons de cinza parece-me afinal resultar sufocante, porque estéril. Os bois, as patas, o alpendre, os bordados, as portas, o contraluz, a profundidade de campo, a pedra, a mata, os negros, as negras, os cavalos, as cruzes penduradas nas paredes: Vazante se obceca por constituir essa enfeitada visita guiada à colônia (talvez próxima à que se pode fazer no Vale do Paraíba, no estado do Rio de Janeiro, ainda hoje – procurem saber: é muito real!). Especialmente na sua primeira metade, é notável uma intensa paixão digressiva nessa ornada câmara de horrores que nos funda – uma obstinada paixão por mostrar.

Na seção seguinte, o filme arma uma estrutura simples que coloca sob suspeita seu zanzar anterior. A pré-adolescente Beatriz (Luana Nastas), obrigada a casar com o protagonista, parece se interessar por um menino de sua idade, Virgílio (Vinícius dos Anjos), filho de escravos, que circula pela senzala. Antonio estupra cotidianamente – como era de praxe, e em alguma medida ainda o é – a mãe de Virgílio, Feliciana (Jai Batista). Como era de se esperar, é pelos entornos desse quadrado que se interessa a segunda metade do filme. A cor da pele da criança que não é gerada por estupro, a concebida pelos dois jovens em questão, dispara o assassinato de Virgílio e Feliciana, realizado por um Antônio sob cólera, no segmento que encerra o filme.

À medida em que a narrativa caminha então para esse jogo das imbricações de afeto, sexo e poder, e entre a casa grande e a senzala, todo o universo além desse núcleo, em especial os personagens negros, africanos, brasileiros, o forro Jeremias, resultam peças à disposição de um jogo que na verdade se interessa pouco por elas. As sugestões de insurgências são encarnadas em especial por um personagem negro, não por acaso sem nome, e sem direito à legenda (ele não fala outro idioma, mas “dialeto”, línguas de “segunda classe” eternamente relegadas ao silenciamento). A cena na qual parte dos escravizados realiza uma pequena fuga, assim como a entrada promissora de Fabrício Boliveira como Jeremias, parecem quadros na parede da casa grande ornando cuidadoso afresco, pois não alteram em nada a finalidade da ilustração geral. A angústia, que descrevi no início, talvez seja por essa presença de um denso verniz que adereça esse tour exploitation sobre a própria exploração fundadora do país.

Um verniz, porque não se desloca o campo de relações discursivas ao redor desses fenômenos, funcionando como uma espécie de atualização solene da perversa posição da impotente consciência branca. Denúncia, constatação, essa Bela forma de dizer “eu sei”, são afinal o eufemismo de uma adesão ao projeto colonial pelos modos de ver. Não se toma à toa a responsabilidade política de atuar sobre o jogo de ficções que funda o racismo e o colonialismo, nem mesmo sobre a decupagem que deixa para sempre no além do fora de campo um mergulho na subjetividade desses que são a força que até hoje sustenta com suas mãos e sangue o edifício colonial.

A angústia que move essas outras mãos agora é a do desvelar desse tour de force técnico que não é nada além de uma colaboração premiada. Porque o filme bem nos lembra, com precisão: a escravidão é uma empreitada comercial, monetária, que se dá pela sujeição subjetiva e corporal. É demasiado eloqüente que se trate de uma coprodução com Portugal, pois é notável que essa superpotência colonial menos que engatinha em relação à sua responsabilidade histórica, plástica, subjetiva e econômica frente ao holocausto colonial. Foi muito bonito, no debate no Festival de Brasília, o ato falho de Daniela Thomas, que descreveu uma “coprodução branca”, provavelmente em vez de “portuguesa”. A presença da Globo Filmes ratifica a evidência do colaboracionismo desta empreitada. Não por acaso, enquanto escrevo, leio numa manchete do site deste mesmo grupo empresarial que o filme “denuncia a escravidão” – enfim: atualiza-se a maneira de manter tudo como sempre esteve, fazendo de um suposto “ousar mostrar” a falsa solução, chamando pra si a autoridade que finge agir sobre a questão.

Em 2017, uma certa voz ficcional – que, em filmes como o anterior Linha de Passe (2007), parecia buscar um certo olhar que desejava furtar-se de fazer escolhas estético-políticas, sob a forma de um “exposição equilibrada” – torna-se agora intolerável, não porque vivemos exatamente tempos histéricos, mas porque as assimetrias evidenciadas exigem tomadas de posição. Não se trata de uma obrigação de pontos de vista estanques, mas de intervenções que alterem os jogos históricos das ficções. Se aqui o tom é o do barroco-rural em mil latitudes de cinza, é notável um investimento perspectivo, que guarda imensos laços com as estruturas de poder e sujeição das imagens e dos corpos. Vazante, em sua denúncia consciente, a partir de sua histórica marquise moral, reproduz a espiral do mesmo, que mantém tudo como está. A plasticidade das imagens, assim como o minucioso desenho de sons naturais do grande artista do som português Vasco Pimentel, funcionam como vetor esterelizante de um joguete dramático primário, que nem mesmo se arrisca a explorar a dimensão da interseção entre sexo e poder no ambiente colonial, onde ainda há muito o que se trabalhar e produzir novas relações de sentido. A cena em que a sinhá branca come o mingau dos meninos negros (obviamente sem nome, fala, ou plano individualizado) é a evidência de um desejo de produção de empatia que heroiciza a boa e velha impotência consciente branca.

As duas formas de recepção que cito no início do texto são essa, de um certo encantamento pela ourivesaria técnica, do preto e branco, de um suposto ritmo não convencional, uma solenidade que se produz pela aparência, e que revela, pela sua obsessão, um desejo de auto-importância, e, dado o universo narrado, de auto-indulgência e proteção moral; e uma forma que leva em consideração que a atualização da colonização do olhar se dá de maneiras insidiosas. Mesmo uma possível leitura sob o prisma dos signos de gênero se torna muito frágil, na medida em que Feliciana, a personagem que mais transita pelo universo do filme, que contém em si uma enormidade de vetores a explorar, nunca é transformada em um objeto de exploração ativa pelo filme. Ela é a história do Brasil, essa história de uma indefinição permanente, de um não-pertencer, que Jai Baptista consegue fazer ver por uma sutileza de corpo, de olhar, na construção dessa mulher que sempre nos parece dar a impressão de que alguma coisa não vai bem – alguma coisa resiste, porque não se conforma – de uma insubordinação latente. É nos seus olhos que parece residir o germe da descolonização, dessa vontade de destruir toda a armadilha colonial. É somente a partir dessa chave, de uma ampla não-reconciliação, que uma revisão da insistência do escravismo pode se dar. O sangue está posto e o jogo está só por começar.


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