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O cômico e o sério

A interpretação mais rápida que um filme como Bingo – o Rei das Manhãs, de Daniel Rezende, pode requisitar é a de ser visto como mais uma comédia dramática ingênua e despretensiosa, o que muito da recepção do filme fez até agora. Neste sentido, comentaríamos a excelência de atuação ou da montagem, o trabalho de luz, o percurso dramático, a capacidade de criar situações engraçadas, etc., para falar em sua “eficácia”, sem com isto nos obrigar a pensar mais sobre nada do que está em jogo ali. Se decidirmos, por outro lado, nos lançar à tarefa de extrair as consequências naturais de sua narrativa e o que ela representa enquanto discurso da forma mais rasteira possível, um olhar bem imediato sobre a trama nos confirmaria rapidamente a pouca autocrítica que o longa-metragem de Daniel Rezende tem em relação aos fenômenos que nos mostra. A jornada do comediante genial de sucesso que decai por conta das drogas e encontra no seio da igreja evangélica a redenção poderia muito facilmente ser lida a partir da verve moralizante – e, neste sentido, o filme poderia ser peremptoriamente condenado por suas escolhas reacionárias e acríticas. Em ambos os casos, o filme estaria “resolvido” com certa agilidade, mas o texto não explicaria muitas outras coisas, como, por exemplo, a razão pela qual ele é tão bem sucedido no cômico e tão mal sucedido na seriedade.

Bingo – O Rei das Manhãs não é uma comédia ingênua e nem uma defesa da crença no evangelismo como redenção para as drogas. É sobre a ideia de popular “cá de casa”; o drama do artista brasileiro na lida com seu público. Na primeira parte do filme, principalmente, esta opção temática é bem evidente. As primeiras imagens televisivas, mais do que contextualizar uma época, procuram evidenciar a discussão sobre o meio audiovisual e o seu lugar em nosso imaginário. Augusto Mendes (Vladimir Brichta) é um ator que tem um baita talento para o cômico sacana, as piadas repletas de conotação sexual, provavelmente herdadas de sua experiência na pornochanchada, remetendo alguns aspectos do gênero na origem da televisão oitentista. Quando recebe a chance de um papel bem secundário em uma novela da TV Mundial (em referência à TV Globo), estende a sua fala contra a indicação do diretor e faz uma piada sobre “as curvas da secretária” de um empresário, arrancando risadas da equipe e do elenco. Mais adiante, fará um teste e ganhará a vaga do palhaço infantil Bingo, versão brasileira de uma franquia norte-americana. A performance que lhe garantirá a vaga será uma piada sobre “enfiar um nabo na bunda” do diretor, um norte-americano que não entende uma palavra de português, mas que se encanta com as risadas da equipe técnica à sua volta.

Em um primeiro momento, Bingo resgata toda uma tradição cômica nacional, baseada em dois evidentes fatores: por um lado, no uso da sexualidade que desmonta o puritanismo, aqui representado por Lúcia (Leandra Leal); por outro, no pastiche do modelo, na desconstrução do estrangeirismo, e na percepção de que não adianta se importar as lógicas de fora sem adaptá-las à nossa estranha realidade – temas que estão presentes em um Carnaval Atlântida (1952), bem como em tantas outras chanchadas das décadas de 1940 e 1950. Nas palavras de Augusto/Bingo para o gringo, em um inglês aportuguesado ou um português “ingleisado” que remete a Berlim na Batucada (1944), “o Brasil não é para principiantes”, evocando à bangu o Roberto Schwarz de “as ideias fora do lugar”.

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A trama seguirá muito bem no terreno do cômico, âmbito que o filme domina com uma certa espontaneidade e que traz uma força particular, em muito graças à dinâmica da dupla Vladimir Brichta e Augusto Madeira, que, com toda perversidade das piadas, ainda consegue de algum modo fazer aquilo tudo soar vivo. Reiterando o tema do popular, o que marcará a evolução do protagonista será justamente a disputa pela audiência, encontrando sua forma de ascensão em artifícios que revelam um certo espectro do gosto do público brasileiro – a interatividade nas ligações para o palhaço, a sexualidade escancarada, mesmo em um programa infantil, na descoberta de Gretchen, e sobretudo o ímpeto de “chutar a bunda da figura de poder”, ou seja, de fazer chacota do colonizador, que aprenderá no circo. Quando chega ao primeiro lugar de audiência, Bingo dá um aperto de mão com o gringo, marcando assim uma harmonização ou confluência entre os papéis do desenvolvido e do subdesenvolvido, que encontra seu lugar no mundo e a sua forma de adaptação, fenômeno igualmente típico das nossas chanchadas. Em Carnaval Atlântida, o faxineiro Grande Otelo embebeda o intelectual interpretado por Oscarito que roteiriza um filme sobre Helena de Tróia e o conduz à conclusão que o melhor a se fazer é uma comédia musical popular. Lado a lado, no fim das contas, estão o faxineiro, o roteirista-intelectual, e o produtor Cecílio B. De Milho, a sisuda figura de poder, rindo da peça musical abrasileirada e felizes pela popularidade porvir.

Mas Bingo – O Rei das Manhãs deveria ter permanecido no terreno do cômico. O problema começa quando resolve fazer drama. É aí que fica clara a absoluta falta de vocação do filme para emocionar. O mesmo Brichta, que vinha conduzindo muito bem a figura do palhaço, passa a ter uma atuação mecânica; seu filho, Gabriel (Cauã Martins), repete o mesmo rosto morto de desânimo durante todo o filme; e, na impossibilidade de extrair da mise-en-scène uma força dramática, o diretor apela para travelling ins rumo à sua inexpressão praticamente toda vez que ele está em cena. Não é o único recurso técnico forçado goela abaixo para tentar criar a ambiência que a encenação não consegue: quando Augusto sangra do nariz por ter cheirado cocaína, o diretor sente a necessidade de fazer um contra-plongèe total, para deixar a gota de sangue cair sobre a câmera, mergulhando assim não em um maneirismo exatamente, mas no cinema publicitário típico de um Cidade de Deus (montado justamente por Daniel Rezende) nos anos 1990 – ou, se quisermos procurar um referencial mais contemporâneo e igualmente consagrado que se leve a sério, e traveste o puro mau gosto em virtuosismo, A Grande Beleza (2013).

O mesmo ocorre quando Augusto retorna ao set de filmagem, após um período de ausência, e vê que outro Bingo foi contratado; na incapacidade do drama se instaurar e transcorrer com naturalidade, o filme apela para os efeitos sonoros e um giro em 90 graus da câmera para observar sua saída “entortada” do cenário. Ou ainda, na forçada situação em que, após adormecer com um copo de uísque na mão, o filho rouba o copo para bebê-lo; a escolha é colocar o corpo adormecido do pai em primeiro plano e relegar o gesto de bebedeira do filho ao fundo desfocado, em um evidente e racional esforço de nos dizer, sem o menor rastro de ambiguidade, que o pai não presta atenção ao filho. O ápice desta mudança de registro acontece quando Augusto soca a televisão e machuca os pulsos com os cacos de vidro: a câmera decola janela afora, gira em torno dos prédios ao redor, procurando, pela mera técnica, criar uma sensação (apaziguada, literal) de vertigem, e termina entrando pela janela do hospital em sequência, tentando com o malabarismo suprir as falhas grotescas de encenação.

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O mais irônico é que Bingo – O Rei das Manhãs apresenta um correlativo narrativo para esta sua mudança de registro: Augusto Mendes não quer o anonimato do palhaço. Quer os holofotes da novela das oito, talvez movido pelos sonhos carcomidos de sua mãe. Ou seja, não quer o cômico, quer o drama. Isto termina por se tornar uma espécie de obsessão wellesiana que irá lhe afundar. Muito mais que o uso de drogas – que, dado o peso que têm na história real que retrata, o filme praticamente opta por não dar relevo – é esta sede pelo reconhecimento como ator sério que o levará à ruína, ao abandono do filho e ao mergulho no niilismo, para, depois, enfim, conduzi-lo à redenção nas apresentações na igreja. Do mesmo modo, é preciso ficar claro que o evangelismo aqui não representa o reduto da moralidade (muito longe disto, a única menção a Jesus no longa-metragem vem em uma cena pública de sexo que o protagonista imagina), mas uma extensão deste espaço do popular que antes pertencia à pornochanchada e à televisão, e agora, move-se para outras direções. É uma pulsão audiovisual que não se redireciona à internet, ou ao VOD, mas ao fenômeno pentecostal brasileiro, curiosamente exposto num sentido diametralmente oposto pela mesma Leandra Leal em Éden (2013), de Bruno Safadi, filme que enxergará o culto como um espaço aterrorizante.

Deste modo, Bingo – O Rei das Manhãs se enfraquece na mesma medida em que seu protagonista procura crescer, torna-se sério e enfadonho junto do ator que se esforça para ser visto com seriedade. Funciona muito bem enquanto aposta no humor de traços tipicamente nacionais – ou seja: escrachado, impudico, brincalhão, multiforme, grotesco, uma doideira – mas perde o nosso interesse com a mesma agilidade quando almeja a seriedade, o rigor e o suposto virtuosismo. Watson Macedo e José Carlos Burle, dois dos nossos grandes diretores de filmes carnavalescos, juravam ódio justamente ao gênero no qual eram mais bem-sucedidos, possivelmente graças ao mau olhar da crítica. O que Bingo – O Rei das Manhãs talvez sem querer nos revele é que essa nossa longínqua herança cômica-nacional ainda é muito, mas muito mais interessante para se pensar o popular do que essa herança mais recente, supostamente austera, mas no fundo, publicitária e de um mau gosto tremendo, à qual o longa-metragem no final das contas se filia.


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