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Uma vontade imensa de acertar

Primeiro a justiça histórica: “Como Nossos Pais”, na versão de Elis Regina, é um hit da indústria cultural brasileira. Tanto quanto “O Que é, O Que é”, de Gonzaguinha, que aparece vezenquando nas novas comédias – a exemplo de Muita Calma Nessa Hora (2010). “O Que é, O Que é” sinaliza a fé, a esperança, o amor, ou mesmo o fim iminente de uma sessão de karaokê. Já “Como Nossos Pais” é um estado de graça. Várias estrofes sobre o generation gap, o dream is over. temas que o compositor Belchior adorava. Mas convém lembrar que Belchior também avisou que nem tudo é divino, nem tudo é maravilhoso. Pegava no pé de Caetano Veloso. E assim foi dessacralizando o status quo, dessacralizando a si mesmo, curtindo a missão que seguiu até o fim da vida.

Como Nossos Pais, o filme, traz uma moça de 38 anos de idade em 2017: Rosa (Maria Ribeiro). Caberá a ela dessacralizar o pai artista (Homero, Jorge Mautner) e a mãe socióloga (Clarice, Clarisse Abujamra). Assim como a própria diretora Laís Bodansky teve que fazer com o pai, Jorge Bodansky, diretor do icônico Iracema – Uma Transa Amazônica (1974). Todos precisamos ultrapassar as medusas do pai e da mãe, se quisermos ter alguma chance na vida. Sobretudo no universo da criação.

Rosa é a mulher-esposa-mãe-tradutora, um amálgama de contradições que, ufa!, precisa de um descanso. Nem sempre é possível bancar a heroína de plantão. E o grande diferencial de Como Nossos Pais está em que a luta contra a mãe é a coisa mais certa a fazer. Clarice revela, do nada, que Rosa foi fruto de um adultério. A mãe não dá pelota para a dor que causa, obviamente, na filha. É preciso odiar Clarice.

Pouco depois, o roteiro de Bodansky e Luiz Bolognesi dá um novo duplo-twist-carpado: quando Rosa acha que pode odiar mamã, livre, leve e solta – aquele ódio bonito, aquele ódio moleque, que a deixaria no papel de coitada perante a grande vilã Clarice –, surge a notícia de que a mãe está com câncer terminal. Há um câncer de pâncreas entre as duas. O ódio precisa ser redefinido.

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Se o filme aprofundasse o mal-estar dessa convivência entre Rosa e Clarice, provavelmente teríamos um clássico (não é o caso). Porque mães e pais são figuras intocáveis. No romance O Ventre (1958), Carlos Heitor Cony provocou escândalo ao contar a história de José, o homem que descobre ser “bastardo”, filho da progenitora adúltera e de um sujeito que lhe causava até certa repugnância. José é iracundo, pestilento, sórdido. Rosa não. É hipster. Resolve seu lance com Clarice enquanto conversa com o amante (Pedro, Felipe Rocha) no supermercado, perto das gôndolas de vinho.

Para retratar com veracidade o conflito, Como Nossos Pais teria que abrir mão da premissa de abraçar o mundo; de lidar com mil temas ao mesmo tempo. O filme pretende carregar a tese da mulher moderna. Homens rodando como satélites, entregando-se à demagogia – o marido de Rosa (Dado, Paulo Vilhena) quer salvar a Amazônia, mas é frágil como um mosquito – ou à falta de eixo – Pedro sabe o dialeto da conquista, mas se borra diante da possibilidade de abandonar a esposa. Com essa vastidão de propósitos, é natural que o filme se perca. E aí ficamos no marasmo.

Ficamos com diálogos constrangedores, do tipo “um escritório de Nova Iorque entrou em contato com a gente, dizendo que vai entrar com a gente nos tribunais internacionais, a favor das causas ianomâmis”. Ou que as crianças têm que aproveitar o ócio, “exercitando o músculo do desejo”. Clarice conheceu o pai biológico de Rosa (Roberto, Herson Capri) em um congresso de sociologia realizado, claro, em Cuba – porque, ao que parece, não haveria outra meca para a esquerda nos anos 1960 e 70.

Enquanto Homero encarna um clown adorável, pelo menos Clarice é tabagista. E nos pontos altos do filme voltaremos sempre à mãe cruel, que é a bússola da narrativa. Pena que Clarice toque “Como Nossos Pais” no piano, em uma transição bastante previsível. Pena ainda maior que a música surja apoteótica mais à frente, como a muleta que o filme não precisaria. Faltou dessacralizar a música. Aliás, esta é uma boa hora para o apelo sincero: por favor, evitemos “Como Nossos Pais”, a canção, por um saudável hiato de uns cinquenta anos. Até que as mulheres e os homens do futuro possam novamente se assombrar com a beleza da coisa toda. De mãos dadas, no topo de uma colina.

Noves fora, Clarice e Homero são mais interessantes do que Rosa e o irmão (José Carlos, Cazé Peçanha). São mais transgressores do que os filhos. Mais curiosos que o insosso Dado. A ponto de Rosa ser estranhamente conservadora ao flagrar a meia-irmã Caru (Antonia Baudouin) sarrando uma namorada – aliás, o lesbianismo teen é uma poderosa válvula de escape: os hormônios imperam.

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Parece exótico que Rosa se espante, quase como uma senhora de cabelo acaju, completando cartelas no bingo. A mensagem subliminar é a de tornar Caru uma porta-voz da abertura de consciência para Rosa – antes já havia sido Pedro, entre as gôndolas. As filhas – chatas como todas as crianças mimadas – também abrem os olhos de Rosa. É um ser confuso, mas que a todo tempo é vendido como alguém que evolui. Que está no caminho para a liberdade, para o conhecimento.

Na recente comédia Doidas e Santas (2017), a protagonista é terapeuta de casais. Rosa e Dado também frequentam sessões, charlando sobre o vazio entre os dois. É uma tendência atual, para retratar mulheres brasileiras. A “terapia de casal” virou a nova “terapia em grupo”, velho mico das décadas de 1970 e 80, quando sujeitos bizarros expunham fetiches por calcinhas pretas na mesma sessão em que senhoras manifestavam saudades do filho que morava em Pindamonhangaba, ao mesmo tempo que alguém tentava curar sua vontade de comer baratas. Tudo sob o olhar complacente do analista.

Na “terapia de casal” o incômodo no relacionamento é mascarado pelo (de novo ele) desejo de liberdade. Como Nossos Pais segue esse caminho, mas em versão intelectualizada. Isto porque, no cinema brasileiro contemporâneo, a palavra substitui a ação. Esta é a origem do desconforto que vai parar na tela. Há sempre um bom mocismo, uma vontade imensa de acertar. Por essas e outras que Clarice é o destaque. Existe algo mais desconfortável do que a mãe fria, que defende mentiras e trapaças? Pena que (novamente a palavra) as frases sociologicamente corretas de Clarice traiam o seu encanto divesco.

Laís Bodansky reinovou o percurso dos seus principais filmes anteriores, Bicho de Sete Cabeças (2001) e As Melhores Coisas do Mundo (2010). Em Bicho, a câmera se mantinha nervosa e buscava o desconforto de um manicômio, além das brigas do jovem (Neto, Rodrigo Santoro) com o pai. As Melhores Coisas do Mundo era cheio das amizades de adolescentes, entre eles Mano (Francisco Miguez). Como Nossos Pais não consegue a mesma solidez existencial de Bicho…, nem a leveza de As Melhores Coisas…. Ao mirar o estado de coisas em que vivemos, o filme passa longe da coragem de Neto ou do frescor de Mano. Rosa descreve as agruras da mulher moderna, não há dúvida. Mas sua perplexidade é adocicada, sem as trevas que vêm a reboque. Aquelas que não se curam com frases de autoajuda.


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