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Qual é a ética diante das imagens violentas e perversas?

Hotel Nacional, novembro de 2001. Estamos numa das salas de debates do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Na plateia, há cerca de trinta pessoas, entre realizadores, jornalistas e críticos frequentes no festival, como Luiz Zanin Oricchio e José Carlos Avellar. Na mesa, a mediação estava a cargo de Maria do Rosário Caetano e discutia-se quais seriam os motivos da “efervescência da cena cinematográfica pernambucana no contexto do chamado Cinema da Retomada”. Em certo momento, o cineasta Geraldo Sarno, que estava na plateia, pede a palavra e esboça um motivo. Inicia uma comparação entre as cenas culturais da Bahia e a de Pernambuco. Evoca formações históricas, exibe conhecimento dos processos coloniais, mas destaca, com ênfase, um possível motivo desse disparate: a quantidade de negros e escravos que veio a Pernambuco era significativamente menor em comparação com os negros da Bahia. Não tergiversa muito, mas insinua que ali estariam algumas razões históricas de uma cena mais diversa, em Pernambuco, em contraste com certa predominância da cultura negra na Bahia. O cineasta defendia sobretudo a diversidade cultural como vetor de dinamismo artístico. Sabe-se, ao acompanharmos sua obra, suas pesquisas e suas teses, que o argumento possui vários detalhamentos e que ele pode ser debatido com profundidade quando se contrasta as consequências da presença da cultura negra com outros locais da Bahia, com o recôncavo e o sertão, e uma dinâmica entre a capital e o restante do estado que repete uma lógica de centro e periferia. Mas será que esse argumento é realmente válido como uma tese de contraste entre os cenários baianos e pernambucanos? Curiosamente, não houve estranhamento algum. O comentário não foi muito compreendido e nem acolhido pela plateia, e seu sentido passou, por assim dizer, quase que totalmente em branco. Talvez fosse um silêncio tipicamente cordato, e bastante brasileiro, que ecoou entre as mesas de debate do Festival naquela já não tão longínqua manhã.

Escutar, escrever e reler, hoje, tal argumentação do cineasta baiano ainda gera fricções, pois ela remete, embora de forma indireta e polêmica, a algumas das teses do embranquecimento que eivaram o pior do pensamento social brasileiro e cujos resquícios, lamentavelmente, ainda ecoam por aí. No entanto, o que realmente soa dolorido é o lugar de silêncio que o acolhimento dessa proposição traduz. Mais do que a frase em si – seu teor, seu discutível racismo brando, velado e pretensamente cordial –, destaco principalmente a tácita conivência da plateia, que, como um dado de época, era esmagadoramente, senão integralmente, branca. Nenhum reclame. Nenhuma intervenção. Ninguém pegou o microfone para contrapor outro argumento. E incluo-me, direta ou indiretamente, a essa conivência, a esse “respeitoso” lugar onde o silenciamento sobre questões de raça atravessam os mais diferentes campos de debate na crítica cinematográfica e na academia. Como jovem estudante universitário que era, naquela ocasião, eu interagia com esses códigos, aprendia, compartilhava e tendia, como um ethos de classe e raça, a reproduzi-lo – embora tacitamente aprendia que intervir ali resultaria como indelicado, violento, agressivo e despropositado. Houve um respeito, talvez ao cineasta, talvez ao decoro do debate. Um estranho respeito, eu, agora, diria. E esse silêncio e essa conivência, minha e da plateia crítica, precisa, de forma urgente, assumir o proscênio do debate. Há certa perversidade nesse silêncio e nesse silenciamento. Direta ou indiretamente, e ciente de todos os riscos desse debate, é desse lugar que, hoje, também reivindica-se um falar, um dizer, um nomear, um estranhar – um reconhecimento.

Lembrei dessa ocasião ao ler a repercussão dos debates sobre Vazante, de Daniela Thomase toda a temática sobre o famigerado “lugar de fala” – que roubou a cena ao longo dos debates matutinos do Festival de Brasília de 2017, sobretudo no modo como circulou em blogs e reportagens dos principais veículos da mídia tradicional. As intervenções que ocorreram revelam um contexto e uma importante mudança histórica: felizmente, não estávamos mais numa plateia apenas com críticos, cineastas e atores brancos. Portanto, argumentos como o que eu ouvi em 2001 passariam hoje, inevitavelmente, por um saudável constrangimento. Muitos chamaram de violentas as intervenções que ocorreram. Do meu lado, percebo uma intervenção incisiva – e certamente necessária –, mas vejo-as como um fato contíguo ao violento (e “protegido”) silêncio que testemunhei no início do milênio. “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”, afirmou Bertolt Brecht, numa das suas frases mais célebres. É um pouco dessa violência que quero abordar nestas linhas e desdobrá-la nas imagens, ora explícitas, ora abreviadas, que circularam em alguns dos filmes exibidos na última edição. Mais do que uma violência em si, o que a recepção aos filmes e aos debates tornou evidente é que existem circuitos de legitimação (ou de desconsideração), externos aos filmes, sobre aquilo que se permite considerar, ou não, como violento.

Não há imagens neutras. Imagens tampouco circulam unívocas, desprovidas de ambivalências, intervalos e mesmo vértices contraditórios. Toda imagem articula potências inconciliáveis, polos, voltagens, e propicia sinergias caóticas ao longo do tempo, da história, dos corpos, e olhares que, em algum momento, afetarão. Criou-se, nesse contexto, um alarde sobre o lugar de fala, que, envolto às polêmicas, negligencia algumas perguntas basilares, tais como: quem produz as imagens? Quem as vê? Quem as comenta? E se essas são perguntas que interpelam sujeitos, são também dessas subjetividades sociais, e dos seus anseios, que estão intervindo na cena para reivindicarem um instante de fala, de questionamento, de, enfim, diálogo.  São falas que se posicionam num lugar específico – aqui, no seio da cinematografia brasileira –, e eu estranho os atores sociais ou as vozes individuais que tacham-nas como irrelevantes, como patrulhas ou restritas a irracionalidades momentâneas. Vale lembrar, também que a expressão lugar de fala não é tão nova no vocabulário da crítica cinematográfica brasileira. O  próprio Paulo Emílio Salles Gomes já a embalava para remeter à nossa situação colonial. O que a crítica poderia ter o cuidado de compreender é que existem novas demandas por outros lugares, por outras vozes, outros anseios já bem consolidados e bem distantes dos preceitos do chamado cinema de retomada.

O que dizer, então, diante de imagens que agridem ou machucam? Como lidar com elas? Como reagir? O que esperar? O que cobrar? Como criticar imagens que, por motivos diversos, flertam com retinas que a designam como insuportáveis? Justamente hoje, quando as imagens andam ariscas aos domínios hermenêuticos de outrora e ultrapassam qualquer duplicidade; hoje, imagens multiplicam-se em descontroles. São inflamáveis, imprevisíveis.

Não faltaram, no último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, imagens que gesticularam diretamente com violências da representação e representações de violências. Digo mais: muitas das imagens vistas permitiram o desvelamento de diversas facetas do que se costuma sentir como insuportável e que antes transitavam incólumes diante da naturalidade de uma plateia majoritariamente branca e heterossexual. Genocídios de corpos negros. Torturas de escravos. Estupros não mostrados, mas vividos, sentidos, percebidos, afetados e conceituados, como ocorre no belo curta Tentei, de Laís Melo. Repressões cotidianas, como as intervenções – tão violentas, tão triviais – do Batalhão de Choque. Escravos assassinados: sem vozes, sem rastros, sem legendas claras e arcos dramáticos consistentes. Poucos percebem ou constatam, mas o cerne do calor dos melhores debates vivenciados no último Festival de Brasília traduziu anseios de linguagem. Sim, de linguagem genuinamente cinematográfica, de linguagens permeadas também por reivindicações de lugar de fala, já que ambas vertentes não são excludentes. O que antes era inominável ou silencioso ganhou substantivos, adjetivos, preposições, predicados, frases completas, perguntas bem formuladas, inquietações traduzidas com primorosa eloquência. Não seria isso, primeiramente, um gesto de linguagem? Ou preferíamos o silêncio de uma boa e comportada plateia branca, contaminada pelo seu bom senso, a discutir os rumos da questão racial?

O que mudou foi o circuito de olhares e a nomeação de incômodos que quedavam silentes. O que filmes como Vazante, de Daniela Thomas, e O Nó do Diabo, de Ramon Porto Mota, Gabriel Martins, Ian Abé e Jhésus Tribuzi, entre outros, mostraram não foram apenas as abjetas condições históricas dos corpos negros explorados e escravizados. O que se tornou evidente e insuperável foram as cisões e as legítimas disputas sobre as vozes dessas representações. No caso da obra de Daniela Thomas, muitas das angústias suscitadas durante os debates brotaram de percepções estéticas: personagens sem voz dramática, sub-representados, ancilares na narrativa, enquadrados única e exclusivamente como um fraco contraponto aos personagens brancos, como se esses fossem naturais protagonistas da história. Foi certo anacronismo dramático que tornou-se visível, uma negligência que não poderia ser silenciada. E esse questionamento certamente só se obtém quando o filme acontece, na tela, na plateia, entre os corpos que vivenciaram a experiência fílmica. Não seria esse também um vetor estético-político de debater problemas sociais?

Pessoalmente, acho extremamente saudável que este monopólio do debate esteja, hoje, em xeque. Como são brancas e masculinas as mãos que digitam estas linhas, vejo, de maneira evidente, limites históricos na minha formação, nos conceitos que manejo e nas minhas cosmologias. Diante desses limites, cabe escutar e ir, aos poucos, refletindo perante esse novo contexto, essa potente e irrequieta episteme que aflora. No entanto, há algo mais, ainda bem mais bonito de constatar. A linguagem também explodiu na tela à mercê desse debate. Boa parte dos filmes premiados – entre curtas e longas – optaram, de forma extremamente sofisticada, por uma abreviação da violência das imagens. Precisavam exalar o respiro, como bem traduziu o mote de Café com Canela, ou deixar de mostrar a violência constantemente sofrida por corpos negros, femininos, transexuais – uma violência, que se diga, que o Cinema da Retomada tornou-se exímio em representar de forma (quase) espetacular. Essa transformação não foi trivial, mas traduziu os impasses estéticos (assim como suas opções) diante da saturação de violência das imagens desses corpos que costumam circular nas nossas mídias. Em vez de filmar mais uma cena de extermínio, Peripatético opta pelo catchup e um mínimo afago. Em vez de encenar um estupro, Tentei pergunta-se, no fervor dessa importante imagem ausente, o que fazer, o que ver e mostrar depois dos corpos suportarem tamanha violação. Em vez de exibir o preconceito contra a mudança de sexo, Música para Quando as Luzes se Apagam foca nas belezas dos instantes de resistência, de dúvidas, de sussurros e murmúrios.

O curioso – voltando ao teor dos debates – é perceber que foram essas mesmas vozes que, assoberbadas com tanta violência gratuita, vociferavam por uma pausa do tipo de imagens violentas que bem caracterizou o Cinema da Retomada. O debate, portanto, foi bem mais estético do que se imagina, se propaga e se supõe. Esta plêiade de imagens, por outro lado, encontrou um público e uma crítica cindida em diversas clivagens, em claras fendas do atual e borbulhante chão histórico que pisamos. E é isso que preciso salientar nestas linhas: uma dupla dificuldade. Mais do que perguntar se as imagens são, em si, violentas, deve-se investigar a quem, a qual lugar, elas potencialmente violentam.

Imagens agressivas só ferem se os sujeitos reconhecerem naquelas cenas, naqueles símbolos e gestos, uma afronta à autoimagem que almejam, dignamente, cultivar. Quando imagens violentas não violentam concepções identitárias, elas tornam-se um pernicioso voyeurismo, já que, distantes, elas esmaecem, elas enquadram, elas permitem ver o sofrimento alheio como se fosse apenas as contorções emocionais de outros corpos, de outros gêneros, de outras raças. Paralelamente, não reconhecer como agressivas imagens que são, por grupos diversos, nomeadas como violentas é também, em si, um gesto autoritário, já que não admite alteridades estéticas e catárticas que se autodenominam como feridas. São cegas, sim, ou por demais ensimesmadas, diante das potencialidades imagéticas que afetam diferentes subjetividades sociais.

O mais difícil de constatar, nesse debate que coliga o Festival de Brasília ao modo como as imagens circulam na contemporaneidade, é como estamos diante de uma guerra religiosa de imagens, cujo desafio ético implica em saber lidarmos com a diferença de modo que não flerte com a barbárie e com a vontade de aniquilação do outro – e da diferença. São paradoxos. São impasses, nos quais a maior afronta é não reconhecer o discurso do outro, sobretudo dos grupos que se dizem incomodados, como uma comunicação legítima e desprovida de inquietações estéticas. Para certa geração da crítica, ainda causa pânico e faniquitos admitir que vivemos numa época e num caldeirão tão complexo no qual a ética não se separa da estética e no qual forma e conteúdo falam, há muito tempo, a mesma linguagem cinematográfica. No calor da hora, é digno admitir um saudável descontrole dos códigos de debate; é desejável que se admita nossa dificuldade, sensível e conceitual, de lidar com imagens perversas.

Assim, a violência transforma-se também num ato de linguagem, onde a sua representação pode ser apaziguadora, justa, mas também insustentável num afã de encontrar um equilíbrio perfeito, puro, entre violências possíveis e impossíveis violências. Barthes chegou a afirmar que todo discurso possui laivos fascistas, pois totalizadores, destruidores de certa alteridade. Todo discurso, salvo as obras de artes, salvas as ambivalências das imagens. Eu acrescentaria: toda disputa por linguagem passa também por dissensos, por ímpetos violentos. Imagens insuportáveis – numa época em que as imagens possuem circulação essencialmente pornográfica – revelam discursos que não suportamos mais conviver; são valores que, de forma anímica, almeja-se simplesmente destruir. É essa pulsão que, seja na crítica ou na realização cinematográfica, devemos apontar como um ponto de partida de um diálogo futuro – e não como o fim de um debate. Por ora, basta reconhecer certa incapacidade de lidar com imagens que outros julgam normais, ou que outros julgam violentas, incluir e aumentar o vocabulário político e estético que nos afeta, reconhecer certa crise epistêmica e ousar vislumbrar uma saída que esteja além do bem e do mal, que ultrapasse o perigo que as imagens, no melhor do seu fervor estético, tendem a despertar.

Para além dos escudos dicotômicos

De todos os filmes exibidos no último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o documentário Por Trás da Linha de Escudos é o que melhor traduz essa indisposição que se demonstra diante de imagens hostis, agressivas, perversas, arredias. Numa palavra-síntese, o filme de Marcelo Pedroso é genuinamente iconoclasta. Afinal, quem, em sã consciência, apreciaria olhar, ver, enxergar e se defrontar com os sujeitos que estão por trás daquelas fardas? O próprio filme responde a esse asco, ao encadear cenas de fãs do batalhão posando e tirando fotos ao lado deles. Quais afetos essas imagens geram? Como lidar com imagens – e gestos cívico-militares – que enaltecem a violência bélica de forma tão deliberada? Essa pergunta, inclusive, coaduna-se às inquietações de Intervenção – Amor Não Quer Dizer Grande Coisa, de Tales Ab’Sáber, Rubens Rewald e Gustavo Aranda, no qual vemos imagens que não queríamos ver, posicionamentos que preferíamos apagar.

A obra de Pedroso foi a primeira, dentro do recorte do Festival de Brasília, a ultrapassar as dicotomias das imagens de representação de violência. Por isso foi tão polêmica e causou tanto desagrado, seja em grupos mais próximos de uma clássica militância de esquerda, seja para as reivindicações de novas subjetividades e de novos lugares de fala. Ao ser submetido ao treino de preparação, ao segurar a arma e atirar, é o próprio diretor quem se torna perverso: ele não está imune, ele adentra na engrenagem que critica, ele faz parte das imagens que colocaria em crise. Nesse aspecto, o filme não é compreensivo (embora essencialmente etnográfico), como propuseram em algumas críticas. Ao contrário, há um máximo tensionamento diante da impossibilidade de se aceitar esse outro. É uma alteridade fugidia – ferida e cindida, como uma cicatriz ainda aberta, a sangrar – que o filme de Pedroso convida a enxergar: uma imagem do horror invisível, mas de uma presença que extirpa, desapropria, reintegra, obedece.

De forma hábil e corajosa, o diretor realiza um deslocamento da violência e da linguagem; ou, se assim optarmos, ele duplica toda imagem violenta e toda violência de imagem. O primeiro aspecto desse deslizamento – visual e conceitual – ocorre quando a câmera, o diretor e o espectador tornam-se cúmplices e testemunhas de uma operação para conter e inspecionar uma revolta num presídio de Recife. A violência da imagem e da sequência ocorre na banalidade da situação: corpos nus de homens negros completamente submissos e subalternos diante de armas que apontam, amedrontam, diante da câmera e dos olhos dos espectadores. Trata-se, contudo, de uma corajosa imagem documental, na qual o horror da imagem é apenas um índice da violência da situação. Ali, no fervor dessa sequência, a imagem se enfraquece diante dos fatos e é para o fato social, para o acontecimento da violência cotidiana, que o diretor conduz nossos olhares. Aquela imagem é mais do que uma denúncia, é mais do que um apontamento – ela é uma imagem “nossa”, construída por dentro, da qual o espectador também passa, de forma insuportável, a fazer parte. Por ser “nossa”, por pertencer ao espectador, ela instila uma violência insuperável, uma violência amoral que repercute e se fragmenta numa série crescente e infinita de questionamentos éticos.

É nessa cadência que Por Trás da Linha de Escudos fabula duas imagens invisíveis, não mostradas, mas potencialmente presentes em cada sequência. A primeira é interna: ela diz dos “nossos” demônios, da demonização que assumimos ao lidar com qualquer batalhão de choque. Esses demônios são perpassados por diversos afetos: a repulsa, o medo, o asco, a vontade de aniquilamento, de fuzilar – simbólica e mesmo fisicamente – esse batalhão que, cotidianamente, engata uma prática leniente de pena de morte ao conjunto da sociedade brasileira. Mais: o batalhão, de modo geral, encarna parte do protagonismo de tantos genocídios iminentes. A demonização interna dessas imagens está no fato da montagem do documentário de Pedroso realçar esses profissionais como cidadãos. E essa escolha torna-se, de fato, insuportável, insustentável – mas ela ocorre. O que acontece quando tais “monstros” e “demônios” são tratados como iguais? Que tipo de demônio é preciso extirpar e expiar? Como encadear catarse se o que vemos são entes e imagens totalmente envenenadas?

Essas questões não são fortuitas e elas conduzem aos principais dilemas éticos atravessados por qualquer imagem perversa. Pouco a pouco, desvelam-se os trejeitos de um monstro invisível; um monstro com nome próprio que se costuma chamar de Estado; ou, se quisermos, o horror dessa imagem nos leva à face abjeta do próprio Leviatã. E se o Estado é comumente definido como “o monopólio legítimo da força”, o filme de Pedroso permite enxergar menos a sua força do que os ardis da sua legitimidade. Mais: é como, bem ou mal, esse Estado genocida está, queiramos ou não, bastante legitimado por várias das forças políticas que nos é antagônica.

Esse Estado genocida também exibe seu rosto num filme como Martírio (2016), de Vincent Carelli, Ernesto de Carvalho e Tatiana Almeida. Nada trivial, a diferença entre as obras ocorre no fato do documentário sobre os Guarani-Kaiowá apostar na denúncia enquanto Por Trás da Linha de Escudos equilibra-se, de forma tensa, num retrato que se fia em certa neutralidade etnográfica (como modo narrativo) e que nos faz, justamente, compartilhar dos dilemas éticos de cada imagem violenta.

“Quando a imagem morre, a barbárie começa”: a reflexão de Marie José Mondzain traduz bastante do saudável (e também perigoso) pânico que assolou os debates no Hotel Brasil 21, no último Festival de Brasília. Traduz porque um grupo mais conservador da crítica cinematográfica não se permitiu vislumbrar novas pulsões imagéticas, novas inquietações genuinamente estéticas para as quais o “lugar de fala” é apenas um pressuposto, um índice primário de uma ambição bem maior, a qual aponta para uma nova estética da existência. Traduz porque é preciso também saber enxergar a imagem como um gesto estético-político, de ampla repercussão, mas que esboça seus limites mais evidentes. O filme de Pedroso, por outro lado, expõe “nossa” dificuldade de ultrapassar os demônios, internos e externos, que cada imagem insuportável carrega consigo. Ele nos convida a olhar para além das imagens, dos ícones, dos ídolos. Não por acaso, o filme termina com a queima da bandeira brasileira, num peculiar ritual, como se fosse necessário olhar menos o país que seu fogo, suas chamas, suas cinzas, e dali construir uma comunidade futura. Queimar, sim, arder para além de toda e qualquer bandeira.

Para além da imagem – dos ídolos e conceitos empedernidos – como se dentro e fora dos escudos, dentro e fora das polícias, legítimas, antigas, arcaicas e contemporâneas, o gesto político busca descobrir o que está num horizonte que nossas vãs idolatrias não permitem sequer imaginar. Numa época em que as imagens invadiram o cotidiano político e o tornaram totalmente opaco, potencialmente bárbaro, é hora de instaurar ética onde se inflamam discursos bélicos. Ou, pelo contrário, é hora de fazer do debate por, entre e com imagens, um afoito instante de inauguração ética, no qual a guerra, se necessária for, seja uma etapa para criarmos outro universo político.

Iniciei estas linhas relatando um episódio que vivi há quinze anos nessa mesma instituição chamada Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Fiz questão de frisar as diferenças históricas para mostrar como, felizmente, vivemos um momento totalmente distinto, um contexto no qual, por motivos óbvios, pensamentos e declarações como aquelas padeceram de um saudável constrangimento e seguiram outras trilhas diversas das que vieram depois. Não vejo “patrulha ideológica” nenhuma ao respirar esse constrangimento numa atmosfera de debate democrático. E se eventualmente houve um exagero aqui ou ali, eles não nos levariam à década de 1930, como sugeriu um leviano balanço do festival publicado por Inácio Araujo, na Folha de S. Paulo . Vale lembrar que essas são questões de 2017, contemporâneas, afloradas nesse intenso agora (e não em 1968), que nos desafiam, nos interpelam e muitas vezes impedem que uma resposta imediata seja formulada diante dos seus mais evidentes limites e impasses. E se agora escrevo isso é porque esse desafio ético não está apenas na análise das imagens e dos filmes, mas também no cuidado e nos discursos dos críticos junto aos filmes (e mesmo contra eles, quando necessário for). Mais do que cobrar réguas morais (e nada éticas) dos filmes e dos seus discursos sobre/com e entre lugares de fala, talvez seja o momento de a crítica realizar um gesto reflexivo, de estranhar-se, de se colocar como um objeto esquisito na linha do tempo que nos separa “de 1930”, dos filmes do Cinema da Retomada e daqueles que são feitos por outra geração. Há uma crise no debate que evidencia clivagens de estilo de crítica (entre o modelo jornalístico e a crítica que circula pela internet), geracionais e também curatoriais. Mas a crise não estaria na etimologia da palavra “crítica”? Por que negá-la? Por que esse receio de reconhecer os limites da própria crítica? Não seria esse gesto também uma vontade de se desdobrar eticamente junto aos filmes que vimos, comentamos e criticamos? Não seria, enfim, o momento de a crítica se permitir uma revisão ética?

 


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