Conversa com Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso

setembro 27, 2013 em Cinema brasileiro, Em Campo, Entrevistas, Victor Guimarães

Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, em foto de divulgação de KFZ-

Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, em foto de divulgação de KFZ-1348 (2008)

por Victor Guimarães

A conversa a seguir aconteceu durante a mostra Encontro com cineastas pernambucanos, organizada pelo SESC Palladium, em Belo Horizonte, entre os dias 5 e 9 de junho deste ano. A mostra foi uma oportunidade valiosa de reencontrar os filmes de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, dois dos olhares mais instigantes do cinema brasileiro contemporâneo. Realizadores que experimentam, a cada filme, maneiras diferentes de se relacionar com a realidade brasileira – e descobrem, no processo, novas possibilidades estéticas –, Marcelo e Gabriel também são dois sujeitos fortemente interessados nas discussões que circundam o cinema: duas vozes singulares (como se poderá perceber), mas que partilham de um mesmo entusiasmo pelo debate e não hesitam em se posicionar diante dos temas mais controversos.

Do começo, com a direção conjunta de KFZ-1348 (2008), passando pela proposta radical de Um lugar ao sol (2009) – dirigido por Gabriel e montado por Marcelo – até a apropriação das imagens alheias em Pacific (Pedroso, 2009) e Doméstica (Mascaro, 2012), as aventuras pela ficção em Avenida Brasília Formosa (Mascaro, 2010) e Corpo Presente (Pedroso, 2011) ou o experimento terrorista Câmara Escura (Pedroso, 2012), esses dois olhares seguem afirmando, a cada filme, suas singularidades e suas potências. Na conversa de aproximadamente duas horas que tive com eles, convivem a retórica densa de cada um e a abertura ao livre fluxo das ideias compartilhadas, a convicção e a espontaneidade. Alguns dias antes que os protestos escancarassem a indignação de tantos brasileiros nas ruas, palavras como tensão, política e violência já ocupavam o centro do debate.

Cinética – A cidade parece ser uma questão importante para o cinema de vocês. Como é a relação de vocês com o Recife?

Gabriel – Eu tenho me relacionado com uma pesquisa que tenta perceber uma tensão corporal no espaço, uma negociação do corpo no espaço. Para mim, afeto tem violência. Afeto não é doce. Pode também ser violento. Eu acho que os meus trabalhos, quando se propõem a se relacionar com o espaço urbano, vão incorporar essa relação de tensionar uma experiência corporal no espaço. Num bairro como Brasília Teimosa, que está dentro de um contexto midiático, da eleição do Lula, que foi lá com uma caravana de ministros, eu busco perceber as mudanças, a complexidade. É o paradoxo do desenvolvimento que me interessa nesse contexto de pesquisa. É um estado de suspensão do mundo. Por Recife estar se transformando tão rápido, isso cria um cenário de perceber esse corpo suspenso, e esses personagens me interessam nesse contexto de suspensão.

Marcelo – Eu não tenho muita coisa com a cidade, não.

Câmara Escura tem algo disso…

Marcelo – Câmara Escura nasceu de outras coisas. Ele acaba acontecendo na cidade, mas nascia muito mais de uma coisa ligada à enunciação, à fabulação, à relação com o outro. Mas como ele tinha um gesto que implicava necessariamente um contato mais epidérmico com essa superfície urbana, resultou naquilo ali. Eu vivo numa cidade ríspida, árida, excludente, conservadora. Por mais encantos que ela tenha, por mais que se configure ali um espaço de reconhecimento afetivo interpessoal, a cidade, em si, é um espaço muito hostil, muito injusto e desagregador. A vida comum se dá em ambientes nos quais eu não sinto identificação. A vida comum em Recife acontece no shopping. Em Recife só, não, né? Nas grandes metrópoles. Mas lá tem alguma dimensão em que isso se acentua, em que o convívio público se esvazia, em que os espaços públicos são atravessados por um esvaziamento. Em Câmara Escura, na hora de escolher as casas onde a gente iria deixar o artefato da câmera, escolhemos casas mais fortalecidas, muro alto, cerca elétrica. Toda essa violência simbólica que está na cidade e que é reflexo de outras violências que se sedimentam ali historicamente, cuja fonte é meio imperceptível.

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Câmara Escura (2012), Marcelo Pedroso

Um traço que me instiga nos filmes é uma vontade permanente de problematizar as relações sociais, associada a um desejo de descobrir outras formas de fazer cinema. Queria saber como vocês enxergam isso, e que relações vocês encontram entre o cinema e a política.

Marcelo – Essa aproximação entre as instâncias estética e política é muito comum. E é muito fácil falar disso a partir do senso comum. Tudo é política, nada é política. Mas eu acho que essa coincidência acontece, sim. É uma busca de uma articulação entre essas duas dimensões que o filme pode conter. E ela acontece, pra mim, quando o filme é capaz de transfigurar uma percepção da realidade. Quando o filme consegue desarticular uma percepção e os sentidos em torno de determinadas formas de se olhar pro mundo, aí a gente chega no que seria, pra mim, uma forma política possível para os filmes. Isso é uma dimensão eminentemente estética.

Gabriel – Se você desloca o sensível da forma de olhar pro mundo, você configura nova política para o mundo. Com a forma de abordar esse mundo, a partir da estética.

Marcelo – Tem essa dimensão política que está nos filmes e tem a política dos filmes também. A forma de conceber o escoamento desses filmes, como eles vão ser devolvidos ao mundo. Eles partem do real, de uma visão subjetiva do real, e a forma como a gente vai rearticulá-los no mundo também corresponde a um desejo político, não sei se de transformação, mas em algum nível, de confusão. De tentar tensionar outras realidades, outras configurações possíveis do sensível, da organização da vida social. Quando a gente consegue fazer com que imagens articulem possibilidades de sentir, de experienciar o mundo para além daquilo que seria possível dizer, isso também nos convida a uma forma de trabalhar esses filmes no mundo real, no retorno.

E como vocês pensam a distribuição dos filmes?

Marcelo – Há uma dificuldade de equacionar essa busca política na forma do filme e a própria articulação de uma mensagem possível. Por que os filmes não conseguem tanto apelo de público? Por uma série de condições de mercado. Mas será que essa dimensão política que eles atingem é o bastante? É necessário que a gente tensione a linguagem, a estética, para um campo que não está dado, mas às vezes isso acaba se revertendo numa armadilha pra gente, na própria experiência de retorno que os filmes vão ter. Essa sensação de a gente estar ilhado, em uma bolha, de ter uma comunidade sensível que está compartilhando daquilo, mas que a gente, às vezes, fica preso ali. Não estou falando de mercado, de rentabilidade, nada disso, é outra dimensão. Eu parto do pressuposto de que para filmes que partem de financiamento público, esse aspecto da distribuição é vital. A gente não conseguiria, nunca, financiar os filmes que a gente faz via mercado. Porque o mercado nunca se interessaria em financiar essas doideiras. Então, se o financiamento é público, se a sociedade, através de ferramentas democráticas, acredita que esses filmes precisam existir, como é que a gente faz para que esses filmes existam para além da nossa comunidade que usufrui desses filmes, que se permite um olhar mais reflexivo sobre eles e se deixa atravessar por eles? Como é que a gente vai ampliar esse alcance de uma mensagem que não é verbal, cognoscível, centrada, mas que é uma mensagem sensível, estética, como a gente vai ampliar isso, fazer chegar em outros cantos? Essa talvez seja a maior inquietação política que os filmes enfrentam hoje.

Vocês percebem isso como um nó, um desafio, ou já pensaram formas para que essa bolha seja furada?

Gabriel – A gente tem pensado em várias estratégias. Cada projeto vem contaminado de uma vontade meio inusitada de sair dessa bolha. Eu acho que algumas são bem sucedidas, só que elas não são formalizadas como válidas pelas instituições que avaliam e mensuram as distribuições de cinema. O Marcelo distribuiu Pacific por meio de uma cartilha com textos sobre o filme. No Um Lugar ao Sol, eu tive a experiência de fazer um guia didático para professores de ensino médio, que poderiam trabalhar o cinema documentário em sala de aula. Foi distribuído por uma rede que atinge dois mil professores. Rolou esse tipo de distribuição, mas isso a gente não consegue mensurar, isso não é válido pela agência que regula o cinema.

Marcelo – É um alcance de formiguinha, mas a gente tá fazendo. É muito louco, mas a gente é impelido a uma atuação que não consiste só em fazer os filmes. A gente não pode se furtar a essa experiência de pensar em como fazê-los reverberar socialmente e politicamente.

Um Lugar ao Sol (2009), Gabriel Mascaro

Um Lugar ao Sol (2009), Gabriel Mascaro

Continuando sobre essa relação entre cinema e política, queria saber se essa ideia de problematizar relações sociais e de poder era um projeto, desde o início, ou se foi aparecendo com os filmes.

Gabriel – A gente se conheceu na política.

Marcelo – A gente se conheceu no D.A., na universidade. Ele era oposição à minha chapa, mas aí ele me cooptou, eu entrei na chapa dele… É muito louco isso, porque esse engajamento político nos filmes alcança uma dimensão completamente diferente. Não são filmes panfletários, não são filmes engajados numa reprodução… A política é justamente, às vezes, a desconstrução dessas matrizes discursivas monolíticas que categorizam o que é o possível dentro de uma normatividade. Então a política hoje é um pouco o reverso daquilo que a gente fazia na faculdade. Do D.A., de panfletar, de defender uma ideia. Às vezes o que a gente está querendo fazer agora é desarticular, é virar pelo avesso as estruturas do poder, das relações sociais silenciadas. Qual é a ferramenta que a gente tem para uma tessitura às avessas? Para destecer o tecido?

Gabriel – É como se a gente estivesse, hoje, reagindo ao nosso momento de formação. Indo contra alguns dogmas que a gente tenta, de alguma forma, desconstruir.

Marcelo – Ao mesmo tempo, tem uma busca de uma inadequação nesse momento histórico, do fim da política, do fim da ideologia, da pós-utopia. Porra, velho, pra mim tem uma vontade do caralho de dizer: meu irmão, que porra nenhuma, meu irmão! A gente tem que levantar bandeira, a hora é essa. Eu fico pensando em como a repressão, hoje, é uma instância autointrojetada. A repressão está na gente, mesmo. A gente está tão normatizado, tão absorvido, pelas novas configurações do capitalismo, que já traz na gente a própria dimensão de repressão que antes seria cabível ao Estado, à polícia. A gente já está desconstruindo o próprio gesto, não ousa, não tem coragem. Ao mesmo tempo em que os filmes não são panfletários, eles também buscam essa coisa: mas então o que é, hoje, que faz um filme ser político? Qual é o engajamento possível pra gente hoje? O que é que a gente vai falar, o que é que a gente vai defender? Que bandeiras levantar? Às vezes, a desconstrução é um bom mecanismo.

Doméstica (2012), Gabriel Mascaro

Doméstica (2012), Gabriel Mascaro

Gabriel – Ao mesmo tempo, dentro desse contexto, dessa ética do capital, também residem alguns problemas éticos que surgem na tessitura dos filmes. Várias das dilatações das fronteiras éticas que a gente trabalha processualmente nos filmes tentam criar os ruídos nessa ética dominante, totalizante, nessa ética que protege um estado de ser do mundo. Os filmes, de certa forma, se jogam nesse jogo perverso. Não são éticas pelas quais necessariamente eu vivo ou acredito. São éticas que estão além de mim, e das quais eu me aproprio para tensionar uma experiência que não é só minha. A ética do capitalismo é perversa. E às vezes ela é jogada dentro do próprio filme, como um turbilhão.

Marcelo – É um pouco do cinismo, né? De se apropriar das ferramentas do capital para também operar articulando conceitos, jogando com isso. Com Câmara Escura, passei um ano com o filme engavetado sem conseguir olhar para o material bruto. Me culpando, me penalizando: que doideira é essa? Como é que pode um gesto tão violento, tão agressivo? Tive uma ressaca moral terrível de ter causado transtorno na vida das pessoas. E, no entanto, era necessário. Foi o filme que trouxe aquilo, não fui eu. Eu fiquei pensando: esse filme não era pra eu ter feito, porque talvez eu não tenha conseguido levar ao extremo o que seria o gesto para fazer esse filme. Ao mesmo tempo eu acho que foi justamente esse comedimento que conseguiu tornar o filme um lugar onde eu me reconheço, algo que eu possa defender. Mas esse processo realmente causou um deslocamento de como eu sou no meu dia-a-dia, de quem eu sou, de como eu lido com as pessoas, dos meus pudores, dos meus medos.

Gabriel – Quando você escreveu sobre Um Lugar ao Sol (nota do entrevistador: Gabriel se refere a um texto que escrevi sobre Um Lugar ao Sol à época da exibição do filme na Mostra de Cinema de Tiradentes, em um blog já finado), você tensionava a dimensão ética da escritura. Qual é o limite, né? Você citou o Comolli: como filmar o inimigo? Mas qual ética você vai buscar para filmar o inimigo? É a ética do amigo? Que ética é essa? É uma coisa que eu não sei. Está além de mim, é uma ética que não tem limite. Na relação do jogo de poder, na relação do mercado de capital, há uma ética perversa; a própria perversidade é parte do jogo, é parte da minha pesquisa. Teu texto buscava uma equalização possível numa ética possível pra abordar isso. Para mim não existe ética possível, dentro do contexto do mercado, do capital, para justificar ou balizar o limite.

Marcelo – E a eleição do que é esse inimigo não é a pessoa, o personagem, de forma alguma…

Gabriel – O inimigo é você mesmo. O inimigo é você.

Marcelo – É uma estrutura que está armada ali. É uma dimensão sistêmica. Não é fulano, beltrano. É a gente mesmo. Nós que fazemos parte disso e as pessoas fazem parte disso, à revelia de si mesmas.

Já que você falou de Um Lugar ao Sol, acho muito interessante essa pergunta: qual ética a gente vai buscar pra trabalhar num mundo em que a ética dominante é a do capital? Será que é a ética do amigo? Por outro lado, o que me incomoda em Um Lugar ao Sol é que o resultado estético da abordagem daqueles personagens talvez não problematize algo que a gente já sabe sobre eles, e que resulta em certa planificação. Algo que eu vejo em Pacific e Doméstica – que é o gesto de tornar as coisas ainda mais complexas do que elas parecem a primeira vista – eu não percebo em Um Lugar ao Sol. O gesto terrorista me interessa muito, tanto em Câmara Escura quanto em Um Lugar ao Sol, mas nesse último eu acho que a montagem ou o próprio método só conseguiram confirmar uma expectativa que o espectador já tinha sobre aqueles personagens. Ou seja: como ir além do ridículo, como ir além do riso que, de certa maneira, faz parte do consenso? Como operar de uma forma realmente dissensual?

Gabriel – Eu procuro sempre imaginar Um Lugar ao Sol como um grupo de personagens em estado de exceção. Foram os últimos nove que aceitaram participar de um filme sobre morar em coberturas, dentro de um livro que mapeia pessoas que fazem parte de um guia de socialites. É um estado de exceção. Porque o inimigo de verdade não dá entrevista pra mim. Ele está cultivando nióbio em algum lugar… O inimigo de verdade tem outro rosto, está muito distante, não está no filme. Eu me interesso pelo filme a partir do momento que você percebe um grupo de personagens em estado de exceção que tenta, a partir de um filme, instrumentalizar um jogo para falar algo, cultivar um certo mundo socialite num filme que, de alguma forma, desconstrói isso. Acho que eles acham que estão sendo terroristas comigo e eu estou sendo com eles. É um jogo performático, eu estou performando, eles também estão.

Marcelo – Esses filmes estão sujeitos e expostos aos riscos e aos erros. E eu acho que Um Lugar ao Sol é um filme fundador de um tipo de olhar, de uma experiência. De um redirecionamento do olhar documental para outras possibilidades. Ao mesmo tempo é um filme com todos os problemas que ele traz. Porque são os problemas que ele traz que fizeram Pacific, que fizeram Doméstica. Então, a gente não deve se esquivar nem blindar o filme, de jeito nenhum.

Pacific (2010), Marcelo Pedroso

Pacific (2010), Marcelo Pedroso

Gabriel – Eu lembro que participei da oficina de formação do Doc TV, e foi meu primeiro contato com Jean-Claude Bernardet. Nessa oficina, ele nos desafiou, com muita força: “o documentário brasileiro vai mudar quando os diretores pararem de chamar os personagens para o palco no dia do lançamento”. Aquilo foi muito forte pra mim. Os filmes tinham uma condescendência, um pacto com a aprovação do personagem. No lançamento de Doméstica no Rio, um personagem do filme disse pra mim: “Ó, você roubou esse filme de mim, viu? Eu quero autoria do filme. Fui em que filmei, é minha história”. Quando eu poderia imaginar que esse jogo perverso que instrumentalizou o olhar dos personagens, e virou o jogo contra eles, ia fazer com que, no final, o cara pedisse a autoria do filme, dizendo que eu estou enrolando? Isso traz uma força do próprio descontrole que esse método coloca em jogo. No Pacific, alguém fez uma crítica ao filme no Youtube: “só tem gente bizarra nesse filme”. Aí um personagem respondeu: “Que bizarro o quê? Não sou bizarro não. Minha viagem foi massa, minha esposa curtiu, o cara pediu pra fazer um filme e é isso aí, minha vida é essa. Estou muito feliz”. Quando você pensa o jogo e abre mão desse pacto, o próprio jogo se reverte. Se há um ponto em comum entre esses filmes que a gente está citando, talvez seja a possibilidade de um risco da não aprovação pelo personagem. É um jogo que se constitui como risco que leva em conta a câmera, o cinema, a arte como um tensionador de uma experiência de mundo.

Marcelo – Eu acho que a duração compartilhada, aquele instante em que documentarista e personagem dividem a cena, é capaz de implodir perspectivas de mundo que estão enraizadas nos dois. Se o filme não conseguir abrir essa dimensão que a gente consiga olhar, se identificar, se projetar, ver a nós mesmos ali dentro, a gente está fodido. Na primeira sessão do Pacific lá em Recife, no Janela, eu saí da sala. Porque as pessoas riram tanto durante o filme que eu fiquei numa crise. Fui pro debate mortificado. As pessoas diziam: “Quem era você? Você era um espectro ali?” No outro dia eu reuni a equipe e disse: “Ó, esse filme não vai existir não. A gente vai sepultar hoje mesmo, acabou. Obrigado, foi massa o trabalho de vocês, mas esse filme saiu pela tangente. Como é que pode a gente fazer um filme em que se exercita um olhar e uma sensibilidade sobre o mundo, sobre as pessoas e a reação é escárnio, é riso descontrolado?”. Aí passei por um processo de conversa com a equipe, e passei a entender o quanto esse riso de escárnio do público durante as sessões também denota a própria dificuldade do público de olhar para aquilo.

Gabriel – Acho também que tem um pacto que se estabelece entre mim, espectador, e aquele personagem que está sendo ridicularizado pelo grupo, que me faz negar que aquela experiência é válida. Por outro lado, pra mim, rir é muito mais complexo do que o ridículo. Eu me divirto muito com Pacific, mas na diversão existe a complexidade. No Doméstica tem várias cenas com riso, engraçadas. De repente, a mulher fala do filho morto: silêncio. Cena propositalmente montada pra ser uma virada narrativa clássica. Eu não tenho problema nenhum com o riso. O riso é parte desse jogo de risco: é uma experiência, em si, tensa. Acho que dentro do riso tem muita tensão, muita potência.

Doméstica (2012), Gabriel Mascaro

Doméstica (2012), Gabriel Mascaro

Falando agora dos filmes mais recentes: de onde vem esse interesse de olhar para as imagens dos outros?

Marcelo – Tinha uma coisa de começar a se debruçar sobre a coisa do espetáculo. Um primeiro movimento: por que a gente precisa filmar se está todo mundo filmando? Eu nem conhecia muito os filmes que se valiam desse procedimento. Fui conhecendo durante a montagem, Videogramas de uma Revolução, umas coisas assim. Mas tinha esse desejo de apreender a imagem enquanto um dos elementos que constitui a vida coletiva. Isso olhando para si próprio, olhando para o apetite por imagens que existe no seio da minha própria família. Nessa época de Pacific, ainda não era nem Facebook, era Fotolog, mas eu já ficava completamente arrebatado por essa construção social que as pessoas faziam em torno de si mesmas. Tinha uma coisa muito clara pra mim: quem eu sou e quem eu quero ser. Quem eu sou é algo intangível, porque a gente está permanentemente construindo esses personagens, mas quem eu quero ser diz muito sobre quem eu sou; quem eu quero ser, às vezes, é a dimensão palpável de quem eu sou. Isso não é nada novo, é Jean Rouch, já estava lá. Jaguar; Eu, um Negro. O que Jean Rouch fez naquela época, hoje está sendo feito permanentemente em todos os lares que possuem um celular com câmera. Era partir desse pressuposto para entender as relações em um mundo que tem a imagem como centro de força.

Gabriel – No meu caso, eu assisti o Sociedade do Espetáculo, do Guy Debord. Há um momento em que ele pontua: por que filmar, se o mundo está repleto de imagens? O que fazer com essas imagens? Então ele ressignifica as imagens de publicidade a partir das teses do livro dele. No Doméstica eu tento fazer uma experiência próxima, mas que também se distancia: me apropriar um pouco do Reality TV, que negocia sua experiência do espetáculo, mas na forma midiática. Não mais a performance presa a um desejo, mas o jogo como processo da imagem. Doméstica, antes de tudo, é um filme sobre a negociação da imagem, onde eu articulo com um pesquisador local, que fala com um jovem, que fala com a empregada. Há uma rede de hierarquização na relação do fazer, estabelecida a partir do pacto que é fundada num jogo. É em cadeia. Eu nunca falei com a empregada, nunca falei com o jovem, nunca tive nenhum contato com ele. De que forma esse jogo pode tensionar algo para além dele? Para o jovem é um filme sobre a empregada, para mim pode ser um filme sobre um jovem que está falando sobre a empregada. São vários eixos possíveis a partir do processo.

Marcelo – Eu estava ficando curioso com essa ausência da cena. Talvez seja uma das grandes tensões, reflexões do documentário a impossibilidade do real, o real reinventado pela presença da equipe e da câmera. Aí eu ficava achando que esse gesto era uma articulação entre o cinema de interação – porque havia interação, não entre uma equipe e os personagens, mas entre o personagem e uma câmera – e um cinema de observação que consumava o ideal do cinema direto, da mosca na parede. Eu não estava no navio, era um olho realmente invisível que estava lá, ninguém sabia que aquilo ia virar filme, e eu ficava muito deslumbrado com esse esvaziamento.

Pacific (2010), Marcelo Pedroso

Pacific (2010), Marcelo Pedroso

Tanto em Pacific quanto em Doméstica, há um trabalho de dramaturgia muito forte. Como é que vocês pensam isso na montagem? Essa organização dramatúrgica de um projeto não-dramatúrgico, no sentido tradicional?

Marcelo – Esses filmes dão margem a perceber o quanto a forma de filmar é roteirizada a partir de experiências de imagem que o personagem reproduz no ato de filmar. A imagem vem contaminada por outras imagens, ela reverbera um catatau de imagens que o personagem absorveu ao longo da vida e que estão ali, voltando à tona. E pelo fato de essas imagens já serem elaboradas a partir de uma certa matriz de mise en scène, a forma como as pessoas se organizam no espaço já encontra filiações que permitem que a gente estabeleça uma dramaturgia a partir de algo que já está presente ali. A apropriação que os personagens têm da linguagem cinematográfica, jornalística ou documental nos permite criar essas pontes. Não são imagens puras e brutas que correspondam a um estado virgem de um olhar, mas imagens que já vêm contaminadas por esses princípios.

Gabriel – Quando essas imagens chegam pra gente, a gente também não se imagina trabalhando com uma pureza, ou uma ingenuidade nesse processo de articulação. Eu gosto de imaginar e desconfiar dessas imagens. No Pacific pode ser que tenha coisas que não foram filmadas por eles. Pode ser que tenha voz off que não seja real. No Doméstica, pode ser que eu tenha filmado também. Provocar esse desconforto eu acho que é bacana. Imaginar um corpo de filme que está num limiar de uma tensão de mundo que se dá a partir dessa reapropriação, ressignificação do olhar do outro, mas que também se dá a partir de uma montagem que flerta com uma experiência narrativa que organiza essas imagens.

Marcelo – Esse gesto acaba gerando uma escrita que não é sem autor, mas em cuja noção de posse ou de autoria é truncada. Esses deslocamentos que se operam geram um tipo de coisa que nem te pertence, nem pertence a quem filmou. É um tecido polifônico, o que você quiser chamar, mas que é alheio. É como se fosse uma escrita estrangeira. Porque, por exemplo, no exercício mais convencional do documentário, a gente está aqui, eu estou filmando vocês, isso aconteceu, aí você fala uma coisa que eu achei massa, aí eu vou explorar mais isso. Esse controle se desagrega nesses filmes. Você não tem a possibilidade de “porra, queria tanto poder ver mais disso, queria tanto explorar esse garçom que apareceu nas entrelinhas”. Transformar essa impossibilidade em potência é que é a grande história.

Gabriel – As relações de poder ficam meio dissipadas, isso cria uma suspensão e um desconforto. “Como assim tu articulou plenamente? Como assim tu conseguiu fazer um filme como Pacific, na dimensão da articulação mesmo?”. Esse desconfiar abre para um descontrole, para um outro regime de negociação das imagens.

Marcelo – Para mim o filme não tem que ser puro, ou puritano (o que seria pior ainda). Manter-se fiel a uma filiação estética, ou a um procedimento. O filme nasce de um gesto inicial e, até virar filme, passa por tanta coisa que se soma ali, que não importa. Não vou te achar mais honesto ou menos honesto. Para mim é como o filme foi capaz de se apoderar do mundo, transformar aquilo em imagem e som. A própria reação de desconfiança revela a matriz ideológica de quem espera algo dado do mundo.

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