Murmúrios do território

outubro 2, 2013 em Cinema brasileiro, Em Pauta, Pablo Gonçalo

Serras da Desordem (2006), Andrea Tonacci

Serras da Desordem (2006), Andrea Tonacci

Sobre guetos do cinema (dito) brasileiro
por Pablo Gonçalo

“Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha”.

Bernadro Soares (heterônimo de Fernando Pessoa)

Botafogo, noite. Um outdoor de um canal de televisão por assinatura estampa um slogan peculiar. “Brasil: muitos sotaques, uma só língua”, era o que, sem pestanejar, dizia, afirmava, vendia. A imagem do cartaz colava cenas do cinema brasileiro mais recente e, não por coincidência, o canal divulgado era inteiramente dedicado ao ‘cinema nacional’. Sintomático, o slogan é mais interessante nos seus equívocos do que no seu fraco teor publicitário; insiste, astuta ou ingenuamente, em enfatizar a unidade da língua e a identidade de um país sempre e incessantemente inventado.

Qualquer transeunte mais atento que parasse e analisasse o cartaz poderia colocar aquelas afirmações em xeque. O slogan ignorou a pluralidade linguística existente neste território chamado Brasil. Se ficarmos apenas com as 305 etnias indígenas que hoje vivem nesse (nosso) ‘país’ conta-se, segundo o IBGE, 274 línguas distintas e diferentes (isso sem considerarmos as demais línguas vindas de outras bandeiras e continentes); ou seja, são línguas que ignoramos, que não escutamos e, muitas vezes, como naquele cartaz, sequer reconhecemos como línguas. O orgulho desta unidade linguística que nos religa é também o orgulho de uma violência histórica, com a qual centenas de línguas, ao longo dos séculos, foram caladas, relegadas, foram e ainda são silenciadas. Nessa linha, pulsa uma dúvida: porque persistir nessa unidade ficcional, seja da língua, seja do território? Por que associar o brilho dessa unidade justamente ao cinema brasileiro?

Num dos seus escritos corsários, Pier Paolo Pasolini chegou a defender a riqueza cultural e histórica dos dialetos na Itália, como uma forma de resistência aos arroubos de poder da invenção de uma identidade nacional italiana, que ocorreu tardiamente. Sim, dos dialetos, que não são sotaques nem línguas. Para Pasolini, escrever poemas em dialetos não seria apenas uma maneira de negar as marginalizações vindas de um projeto de união territorial, militar e monetária; seria menos um grito ingênuo contra a nação do que a busca pela exploração poética de uma singularidade linguística. Pouco importa se, quando escrito num dialeto, um poema será quase desconhecido e menos divulgado; nesse recorte, realça-se a força de dizer algo que só pode ser dito a partir daquela cosmologia. A força de uma atuação multicultural e policêntrica, como sugere Robert Stam na sua crítica ao eurocentrismo, só viria por incessantes gestos de traduções, por uma nova e cosmopolita hermenêutica das mediações.

Desde os anos 2000, uma interessante parte do cinema feito no Brasil talvez erga um dos seus principais pilares observando e atuando a partir das singularidades dos territórios. Em Serras da Desordem (2006), de Andrea Tonacci, essa inquietação salta de maneira ímpar. Como único sobrevivente de sua etnia, Carapiru, o protagonista desse documentário, também é o último falante da sua língua. Mais do que trágica, essa condição nos é transmitida de uma forma que compartilha incompreensões. Os monólogos de Carapiru não possuem legendas e não são, de fato, apreendidos pelo espectador. Ao ser impossibilitado de traduzir seu personagem, Tonacci inverte e compartilha com o espectador o isolamento daquele sobrevivente. À primeira vista, essa opção parece eivada por um menoscabo; no entanto, Tonacci grifa uma diferença, tece um perspectivismo. Ao não compreendermos uma língua, prestamos atenção à sua superfície, aos sons, ao ritmo musical das sílabas, às formas como as pausas são encadeadas, aos adornos dos significantes em intenso estado de não significação. É essa experiência sensível que Tonacci sugere. Por alguns minutos, sentimos o mundo como Carapiru, órfão de sua língua materna, está condenado a sentir: onde a língua e o território vão, de forma violenta, acuando, regredindo, perdendo força, perdendo brilho, perdendo existência, numa bizarra poética que anuncia uma cultura na iminência da extinção.

Frontal ou indiretamente, a criação de diferenças passa pelo território, pelas próprias sobreposições geológicas que criam os terrenos que pisamos e as paisagens que contemplamos. Às vezes essa singularidade do território é traduzida pelas intensas diversidades abrigadas por uma cidade, um bairro, uma rua. Um filme como A Cidade é uma Só? (2012) , de Adirley Queirós, traz essa preocupação logo na pergunta do seu título. Assim como em toda a obra desse cineasta, o que se filma é um ponto de vista da Ceilândia, uma forma de ver o mundo a partir do local, da rua, das quebradas onde o diretor e seu coletivo cresceram, moram, criam suas famílias. O filme de Adirley não retrata apenas uma especulação imobiliária ou a história de como o território da Ceilândia foi inventado, numa logística de desapropriação e gentrificação que a história do Brasil foi e é perita em realizar. Cioso do seu palavrear perfiérico, Adirley acaba por compor, com seus amigos de bairro, uma topografia sentimental desse acuamento. O filme inova justamente por construir espaços sensíveis onde os sujeitos ora estão fora de contexto ora estão simbolicamente apropriando aqueles espaços.

A Cidade é uma Só? (2011), Adirley Queirós

A Cidade é uma Só? (2011), Adirley Queirós

Um personagem como Dildu, protagonista de A Cidade é uma Só?, ganha força não apenas pelos seus anseios quixotescos de participar de um espaço eleitoral que não tem espaço para ele. Ele não rouba a cena apenas por viver as diferenças entre a Ceilândia e o Plano Piloto. É por meio das suas falas, por suas gírias, pelo modo como sua voz modula o espaço físico e modula-se na tela que grifa-se uma diferença. As quebradas de Dildu são traduzidas pela sua estridência, por seus ruídos, por uma fala que está sempre fora do contexto e algumas vezes sequer é ouvida ou aprendida com precisão. Dildu abriga muitos murmúrios, muitos reclames, muitas inquietações; são ecos, sons e anseios que não se transformam numa voz política clara. Apenas por meio da ficção e da performance, prenhe de uma auto-ironia, é que sua fala modula para um canto, para uma forma de ver, atuar e participar. Fora da ficção, não há lugares, e, assim, nessa chave, o ato de ocupar um espaço ou um território passa pelo gesto de inventá-lo.

Dildu e Carapiru (e talvez, nessa linhagem, seja importante lembrar do personagem de A Alma do Osso, de Cao Guimarães) sintetizam murmúrios que oscilam entre o silêncio e um anseio de obter uma voz, seja ela política, sensível, ou falsamente profética. São filmes que também reivindicam uma forma de lidar afetivamente com o território, uma inquietação que desdenha fronteiras, bandeiras ou outros veios identitários mais genéricos. Como os cadáveres evocados nas obras de Jean Marie Straub e Danièlle Huillet, suas vozes emanam da terra, estão nela enraizadas e neles impregnados.

Muitas das vozes e dos territórios articulados pelo cinema brasileiro contemporâneo passam por sensações similares: eles se afastam de uma certa herança nacionalista e cinema-novista, da qual ainda encontrávamos vestígios no cinema dito de retomada, que buscavam geografias vagas, idealistas, melancólicas e figuras alegóricas. Nesse diapasão mais recente e jovem, lidamos com filmes que enfatizam tanto a casa como local privilegiado de convergência subjetiva e (des)encontro entre sujeitos (como Rua de Mão Dupla, de Cao Guimarães e outros dispositivos voltados para a casa) quanto a rua (em O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho), os prédios (desde Edifício Master até Um Lugar ao Sol) ou uma cidade isolada (como em Os famosos e os duendes da morte, de Esmir Filho) e tantos outros entroncamentos espaciais possíveis, como ocupações, apropriações e desapropriações de lugares sedimentados por vidas, histórias, narrativas. São espaços potentes. São potências do espaço captados por câmeras que não querem apenas retratar desmontes, mas que estão imiscuídas entre os sujeitos e os personagens, entre as paredes e a amplidão das ruas, como ocorre em O Céu sob os Ombros (2010), de Sérgio Borges. Dramaticamente, os sujeitos desses filmes formam-se em contato com uma geografia concreta, que brota do dia-a-dia,e seus desejos são também constituídos numa interação direta com esse chão.De forma delicada, os espaços passam a habitar os sujeitos – atuam como Bunkers,locais de resistência que, pela diferença, traçam uma autonomia – e eles são cinematograficamente inventados por essa arquitetura sensível.

A corrosão de uma esfera pública

Por outro lado, é preciso salientar o que, vagarosamente, ficaria cada vez mais para trás nesse percurso histórico e encarar criticamente alguns dos guetos – políticos, conceituais e até estéticos – que a história do cinema “brasileiro” vem traçando. Curiosamente, o nacionalismo na história do cinema surge, com uma força mais notável, logo após o advento do cinema sonoro, a partir de 1930. Não é por acaso que Limite, de Mário Peixoto, traça um elogio nostálgico aos espectadores de cinema que riem diante de uma sessão de Chaplin. Há, ali, nessa ontologia do cinema silencioso, um anseio de comunicação mundial que passa além das línguas faladas e enfatiza uma gramática centrada prioritariamente na organização das imagens. O interessante é perceber como a tecnologia sonora tornou tanto a piada mais cultural, mais falada e cheia de singularidades linguísticas, quanto possibilitou uma institucionalização do cinema que passou a abrigar, no mundo todo, anseios estadistas (inicialmente com veios totalitários) de proteção, valorização e difusão da história e da cultura dos seus países. Dos anos trinta aos nossos dias, toda a história institucional do cinema – e da TV, certamente – visa sobretudo uma unidade do território e uma preservação da língua. Não é por acaso que, no nosso contexto, ainda hoje fala-se de uma ‘voz do Brasil’, para o rádio, ou busca-se um cinema e uma teledramaturgia que retrate o país nas telas.

Aconteceram, paralelamente, outros registros. Desde a formação da Embrafilme, ocorre um encontro único entre formas de financiamento, produção e distribuição, com um discurso nacionalista, e um projeto militar e territorial de radiodifusão, que acabou por criar novas fronteiras. Num livro primoroso, José Mário Ortiz Ramos traça o percurso histórico e sociológico que, dos anos setenta em diante, acabou por separar o cinema, como instituição, da televisão e da publicidade. Criaram-se guetos, campos fechados, ensimesmados, que não dialogavam entre si e moldaram uma forma de disputa simbólica. Ortiz Ramos enfatiza que esse tessitura histórica foi na contramão do que ocorreu em outros países nos quais ocorreu um agenciamento entre as linguagens da TV, da propaganda e do cinema como uma forma de resistência à predominância de produtos audiovisuais vindos dos Estados Unidos. Foi uma forma de implementar um diálogo que possibilitou e ainda permite a migração e o compartilhamento de formatos de produção e de linguagens, além de uma convergência de modelos de financiamento.

No Brasil, essas divisões entre o cinema, a publicidade e a TV ainda permanecem, à mercê, é claro, da existência de algumas trajetórias profissionais que conseguem transitar bem entre esses guetos. Em todas essas esferas, essa guetificação acarretou numa hiper-inflação dos brasileirismos, das brasilidades ou dos outros adjetivos que precisam inventar uma bandeira para teimarem numa autonomia simbólica. Após o fim da Embrafilme e a derrocada da produção cinematográfica dos anos noventa, houve, ao longo das últimas décadas, uma retomada não apenas da produção, mas da reinvenção dos espaços institucionais que acabaram repetindo ou sendo vítimas de algumas dessas trajetórias dos guetos eivadas por um discurso nacionalista. Há, hoje, um cenário bem diferente daquele dos anos noventa, que aponta para uma hiperinstitucionalização do cinema brasileiro, com o qual celebra-se o aumento quantitativo de filmes produzidos mas, paradoxalmente, criam-se espaços e nichos (seja dos filmes de sucesso de público, seja dos filmes que empolgam os festivais) que desdenham-se mutuamente e preferem o isolamento e o cerceamento ao conflito e à produção simbólica e discursiva da diferença. A pretensa unidade do discurso nacionalista construída pela Embrafilme é pouco a pouco contraposta a uma pulverização da produção, dos formatos, dos públicos, das linguagens e dos anseios; uma pulverização que acabou constituindo espaços vinculados por afinidades eletivas, num tom comum e mais modesto, distante das vagas generalizações sobre a pátria, o território, a língua.

Entretanto essa descentralização acabou por forjar guetos entre guetos, e, com esses nichos dentro de nichos, perde-se, de forma evidente, uma esfera pública de circulação dos conteúdos audiovisuais. O soerguimento dessa esfera talvez reivindique um efetivo e conflitivo diálogo entre as práticas e instituições cinematográficas e televisivas – como ocorreu, num exemplo remoto, com o Doc TV – num exercício de um multiculturalismo policêntrico, interno aos territórios, que pulse e crie espaços dinâmicos, polivalentes, que incorpore o choque de valores vigentes para sua transvolarização. Não basta um rearranjo institucional, nem uma decisão tecnocrática, se não houver uma incorporação dos conflitos dos discursos, dos conflitos entre valores que murmurejam entre os guetos.

No livro “Meus Prêmios”, o escritor Thomas Bernhard nos conta uma história que ilustra parte desses argumentos. De forma irônica e autobiográfica, ele narra as festas que celebravam os prêmios literários que ganhou ao longo da vida. Bernhard traça um auto-retrato como um sujeito isolado que não possui afinidade nenhuma com essas celebrações públicas, cheias de decoros, formalidades e frequentada, como ele mesmo narra, por profissionais e burocratas que não entendem nem apreciam a literatura. No entanto, ele era seduzido pelo valor dos prêmios e não conseguia recusá-los. Vaidoso, com o dinheiro ele comprou carros caros, roupas elegantes, e viajou a Europa inteira. Ao ganhar o prêmio austríaco de literatura, Bernhard opta por realizar um discurso que ressalta a apatia e a monotonia do povo austríaco. Cria uma polêmica, mas fala o que pensa. O ministro da cultura da Áustria estava presente nessa ocasião. Indignado, ele levanta-se da primeira fileira e joga os papéis do discurso na cara do escritor homenageado que, até então, era a principal atração da festa. Em solidariedade ao ministro, toda a platéia levanta-se e e retira-se do auditório, onde permanecem apenas a tia e um amigo do escritor.

O caso é real e, à época, foi noticiado pelos jornais como um escândalo das letras austríacas. No entanto Bernhard aponta para os dilemas de uma hiper-institucionalização da arte que ora oscila à cooptação, ora reivindica gestos de autonomia. Guardadas as devidas proporções e diferenças entre os cenários, esse dilema parece, em parte, contaminar o atual contexto de hiper-institucionalização do cinema brasileiro. Embora haja diversas matizes, gradações e refúgios ímpares nesse diagnóstico, muitos desses conflitos passam pelas contorções entre os guetos, como mônodas, e os murmúrios dos territórios, que, certas vezes, reverberam como urros, uivos, e cantos destoantes aos ouvidos de quem embala-se no coro dos contentes. Aos poucos, emerge um contraste entre espaços inventados e espaços habitados; entre espaços fictícios e territórios concretos; entre recortes territoriais abstratos e territórios que inventam-se no ato de celebração do comum. Se a história do cinema brasileiro foi e é exímia em forjar fronteiras, hoje, paulatinamente, são os murmúrios daqueles territórios que melhor explodem nas telas.

Em “A condição humana”, Hannah Arendt começa um dos seus capítulos anunciando que irá criticar os pressupostos conceituais de Karl Marx. Contudo, Arendt salienta que sua incisiva crítica não é fruto de um ressentimento, de uma frustração ou de qualquer outro sentimento negativo; mas, pelo contrário, ela criticará seu mestre como uma forma de respeito e admiração. Grandes pensadores, diz ela, merecem críticas duras e à altura das que elaboraram. Há uma generosidade no gesto da crítica que passa além do objeto que está sendo criticado e, nessa lida, a melhor maneira de homenagear uma tradição passa por criticá-la, de forma veemente, apaixonada, mas, também, sem concessões. Se hoje critica-se os guetos do cinema (e do “audiovisual”) que chamamos de brasileiro, é por perceber o esgotamento de um discurso nacionalista e sua perigosa insistência nas fronteiras que cria, nos anseios que cerceia. Criticar essa hiper-institucionalização é também uma homenagem ao trabalho árduo das gerações e dos indivíduos que dedicaram suas vidas ao cinema brasileiro. E se a crítica for necessariamente violenta, essa violência do teor, do conteúdo ou da forma, torna-se, ao longo dos anos, irrisória, desprezível. A crítica, de fato, importa menos que as inconsistências percebidas e os desdobramentos que ela sugere. 

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