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Fora da ordem

Hoje, tão fácil quanto produzir, editar, divulgar e distribuir imagens, é recusá-las. O mesmo clique que dispara também afasta e, assim, a roda do mundo (virtual) continua a girar entre a adoção e afastamento de um mar de pixels. Mas as imagens existem. Mais que nunca. Se elas mantinham um valor de ícone ligado a rituais muito concretos da comunidade, servindo como mediação entre seres humanos e instituições – a igreja católica desde a Idade Média, os Estados nacionais a partir do século XVI, e, por que não?, a arte – que motivaram discursos contra imagens e sua proliferação, pois a produção de imagens representativas sempre esteve, por razões mais ou menos dedutíveis, associadas com a mentira, o engano, a trapaça, seu poder de trazer a público o que é ausente (ou seja, representar) ainda hoje impressiona, perturba e escandaliza. Esse efeito é amplificado quando o que está em jogo é a relação com este fenômeno fugidio, caótico e aleatório que a cultura ocidental convencionou chamar de “real”.

O que é real quando a principal instituição que nossas imagens mediam são suas próprias imagens? Sua força representativa se dissipa proporcionalmente ao reforço da imagem enquanto coisa em si. As imagens, adoradas ou recusadas, existem. São coisas no mundo. São como a mensagem na garrafa deixada ao mar na esperança de que alguém do outro lado esbarre nela em algum momento. O outro lado: a morte. A morte das imagens. Atualmente é muito simples matar uma imagem: basta o toque do dedo do criador na página de seu perfil. Contudo, as imagens não morrem. Elas existem como coisas no mundo repousadas em grandes prateleiras aguardando expirar o prazo de validade dado pelo “real”, ou serem encontradas em alguma praia desconhecida habitada por pessoas que, ao lerem a mensagem, compartilhem a “boa nova”. O que é uma imagem assim? Justamente, uma imagem.

Intervenção, novo longa-metragem da dupla Tales Ab’Sáber e Rubens Rewald, aqui em parceria com Gustavo Aranda, se apropria de uma série de imagens encontradas em diversos cantos da Internet. Diversos não, um deles: aquele canto que o campo progressista da população não está olhando. São, portanto, imagens recusadas e ignoradas por pessoas que pensam um certo país, buscam um determinado modelo de sociedade e desejam um outro Brasil. As imagens de Intervenção não passam na minha timeline do Facebook, nem nas dos meus amigos, provavelmente nas dos leitores deste texto também não. Pois o mundo virtual tem mecanismos muitos simples de exclusão de imagens abjetas, cujos parâmetros são estabelecidos por uma certa sensibilidade comunitária invisível de critérios afásicos.

Após começar com um programa supostamente jornalístico do MBL, apresentado por Kim Kataguiri, mostrando a fala de Reinaldo Azevedo no Clube Militar de São Paulo, segue o encadeamento de uma série de anônimos discorrendo sobre a realidade nacional e chegando à conclusão de que a única solução é a intervenção militar. Estas pessoas comuns pedem, rogam, suplicam pela ação do exército para salvar o Brasil do grande mal (uma chance apenas para descobrir o que ele é…). Ditos com a convicção da canalhice ou da ignorância, os pedidos de intervenção militar são acompanhados pelas mais complexas teorias de conspiração e explicações geopolíticas, desde a invasão comunista cubana via Venezuela que, dizem, está em vias de acontecer, passando por “informações privilegiadas” de que o exército bolivariano está atravessando a fronteira via Paraguai para tomar o poder, até o grande xadrez mundial de dominação do Brasil pela China para combater a hegemonia dos Estados Unidos na América. O tom é de urgência, mesmo quando o orador está em Miami. Só o exército salva.

A primeira reação é o riso. Entre as repetições e variações que a montagem proporciona, é possível identificar os diferentes estereótipos da direita brasileira, motivo de chacota geral nos últimos anos. O nacionalista que mora em Miami, pedindo o exército nas ruas e reivindicando o direito da população de ter armas em casa para defender sua propriedade, como ele tem nos EUA; o adorador da cultura estadunidense, exibindo a bandeira norte-americana como fundo de tela de seu computador pessoal, defendendo os valores liberais contra o comunismo; o cientista político que analisa o avanço brutal do comunismo no mundo; o milionário meritocrata; o anarco-reacionário (sim, eles existem). Como uma grande galeria do fracasso do esclarecimento, Intervenção dá a ver essas figuras grotescas por aquilo de comum que carregam. O grotesco leva ao riso, mas de uma destilação nervosa, pois no fundo é o horror que contamina a experiência do filme – um horror profundo que começa exatamente quando percebemos as ruínas do projeto humanista tão frontalmente próximo. Entre um e outro maluco de ocasião, Intervenção mostra sujeitos que se pensam racionais, equilibrados e eruditos em matéria de geopolítica, ciências sociais e filosofias afins. Se fingirmos por alguns instantes que não dizem canalhices, sobra a retórica da sabedoria e do esclarecimento, esses anônimos se colocando como reveladores da verdade escondida pela grande mídia e os discursos oficiais, numa demonstração frontal da mais perversa característica do esclarecimento: “Pai, eles não sabem o que fazem, mas o fazem como se soubessem”.

A sensação de horror ganha outros contornos pela situação da sala de cinema. Se é fácil recusar qualquer imagem nos dispositivos caseiros de compartilhamento de arquivos, a sala de cinema cria essa situação na qual os fragmentos de discursos tirados do YouTube ganham amplitude e energia pela dificuldade da recusa. O cinema de terror deve muito de sua força ao aparato de exibição: a escuridão da sala, a regressão psíquica do espectador, a suspensão de temporalidade. Aqui, o gesto de sobreposição de diferentes versões do mesmo motivo leva ao sufoco pelos mesmos efeitos. A recusa, na sala de cinema, requer uma energia da mesma grandeza que a excitação do horror.

Em Intervenção, o espectador é confrontado com este horror anônimo, grotesco e ridículo (como todo horror). Esta confrontação é literal no campo visual. As imagens recolhidas no filme são intervenções diretas dessas pessoas desconhecidas, falando com uma audiência virtual, sem rosto e identificação, que se reconhecem nessas ideias, gestos e retórica de um saber que se coloca, na maioria dos casos, como revelação da verdade. A representação está suspensa: as personagens desses pequenos vídeos discursivos se apresentam como indivíduos que têm algo a apresentar – a verdade por trás das representações cotidianas da TV, dos jornais impressos e dos veículos de internet. São anônimos sendo anônimos preocupados com a vida de outros anônimos, e assim se apresentam. Mas é claro que eles representam: criam uma mise-en-scène para seus corpos em um determinado espaço que será transmitido a reboque de uma determinada retórica construída contra a representação. Nesse sentido, a intervenção do título se desdobra, não apenas como o assunto desses discursos horrorosos, buscando intervenção na realidade, como uma tropa de choque sem lenço e sem documento que apenas vai; mas também a intervenção do próprio filme na política, criando um confronto no espaço da imagem desses rostos, olhando diretamente para a câmera, e os espectadores, que encaram essas imagens sem recusa… um tour de force no campo simbólico de anônimos discursando contra a representação política e espectadores anônimos empenhados em outra política da representação.

Contudo, as grandes imagens de Intervenção são os raros momentos em que estes discursos se mostram não só delírios individuais, perdidos em cápsulas isoladas do mundo virtual das imagens, mas retóricas de interação. São raros momentos de conferências – via Skype – em que várias pessoas se reúnem para discutir essas ideias (como direito a participação de poucos rostos conhecidos, como Olavo de Carvalho e um fantasmagórico Lobão). Em especial, as imagens de igrejas onde jovens negros, mulatos e outros quase brancos desfilam vestidos com fardas militares, carregando a bandeira do Brasil ou fazendo coreografias que exaltam os guerreiros contra o comunismo, em favor dos valores da família brasileira. Nesses momentos, o assombro é de outra ordem, pois os discursos a favor da intervenção militar deixam de ser loucuras jogadas ao vento na esperança de encontrar seus receptores e passam a constituir um vínculo comunitário, estranho e imprevisto, pois vai além dos clichês do coxinha que tira férias em Miami e reclama da Veja que chega fora do plástico. As ideias reacionárias, que estas cenas de coletividade apontam, são também muito populares.

Quando Juliano Gomes crava que “A reviravolta brasileira que se avizinha começa a dar as caras aqui em Brasília, com sua encantadora – e negra, e indígena e bicha – ontologia infiel, fazendo a egípcia para as deprês da casa grande”, há o otimismo de um Brasil ainda em construção que se revela nas ruas, universidades, espaços culturais e artísticos como nunca antes na história desse país. Intervenção mostra que no outro lado do muro mora um outro Brasil, contra o qual nem a deprê da casa grande nem a euforia de um novo mundo em construção bastam para conter. Um Brasil enfurecido, delirante e disposto a explodir o salão de festas para não ter que dividir o bolo. O horror do filme aponta para uma queda de braços em curso na realidade entre um Brasil ainda em construção e outro Brasil pronto, a já fazê-lo ruína.


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