in loco - cobertura dos festivais
Super Nada, de Rubens Rewald (Brasil, 2012)
por Thiago Brito

Não tá fácil pra ninguém

A vida de Guto, interpretado por Marat Descartes, é uma trilha que se debate entre trabalhos autorais com pouca ou nenhuma perspectiva de crescimento e a possibilidade de se integrar ao espaço comercial pela participação no programa protagonizado por Zeca (Jair Rodrigues) - uma espécie de "Zorra Total", no qual slogans, bordões e lugares-comuns pontuam o humor. Um em especial salta aos olhos e nos intriga pela acidez: "Não tá fácil pra ninguém". Ouvimos esta mesma frase inúmeras vezes em nosso cotidiano. Seja de forma cômica, seja de forma efetivamente séria, ela nos reporta a um beco sem saída que o filme de Rubens Rewald pretende atacar e problematizar frontalmente. "Não tá fácil pra ninguém" revela uma determinada sabedoria popular em se contar a verdade desmentindo, isto é, em se revelar a carapuça apontando a carapuça. A falta de perspectiva de Guto em meio ao cenário paulistano é amarga porque não oferece perspectivas para além do jogo esboçado... uma perspectiva que pode ter eco tão forte na realidade que podemos muito bem não conseguir ignorá-la.

Uma espécie de fábula surrealista da tortuosa batalha por sobrevivência de atores na capital paulista, Super Nada nos apresenta uma discussão não muito distante da que foi colocada por O Gorila, de José Eduardo Belmonte, ou até mesmo daquilo que se viu esboçado no longa Riscado, de Gustavo Pizzi. Com o crescimento do país, o cinema brasileiro vem colocando, continuamente, a questão da utopia, do crescimento, da ufania, e da passagem para um novo em estágio como ponto de inflexão. As reflexões se espraiam desde elementos de grande representação da sociedade brasileira, como em Pacific, de Marcelo Pedrosa, no qual o auge da classe média em tocar na terra de Utopia se desvela de forma crítica e triste, a filmes como Doméstica, de Gabriel Mascaro. Ao mesmo tempo, filmes como O Gorila apontam para a necessidade de transformação e compreensão do novo estágio ou regime de coisas no qual nos encontramos, no fato de que mudanças irão ocorrer, por mais traumáticas que possam ser, e que este novo tempo não irá pedir licença. Precisamos nos ater e corresponder a ele. Éden, de Bruno Safadi, nos lembra também da necessidade de resistência e força diante do jogo de interesses atuais, expresso principalmente na maneira como a protagonista se resguarda para fazer de seu filho algo seu e não apenas um joguete ou uma representação da vontade alheia.

Como parte que é dentro deste panorama maior, Super-Nada nos pede a força para encarar um estado de coisas que nos impinge, imediatamente, com certo amargor. O rosto de Marat Descarte é um mar de expressões angustiantes, de desejos para sempre postergados e nunca correspondidos. Sua impossibilidade de estabelecer um caso amoroso com Livia (Clarissa Kiste), sua instabilidade financeira, sua relação oblíqua e distante com sua filha e sua mãe, sua falta de perspectiva que, aos trinta e poucos anos, o obriga a viver como que à deriva, sua paixão pelo personagem de Zeca (o Super Nada de um programa de quinta categoria esquecido por muitos, que sobrevive à margem do imaginário das pessoas como um fantasma do passado...), tudo isso soma ao desespero contido e reprimido de Guto, que depende apenas da entrada de Zeca em sua vida para aflorar terrivelmente.

Assim como em O Gorila, a necessidade de lidar com o mundo aparece de forma contorcida. Como uma trilha que dá mil voltas em caracol, o caminho de ambos os protagonistas com a realidade que se posta firme do lado de fora é um mergulho num mundo de suspeitas, de sombras, tendo por registro eminente o cinema de gênero. É quando, num momento de extremo furor, ele arrebenta o corpo e rosto de Zeca, que dançava com Livia – a eterna proibida, aquela que sempre termina por desprezar ou fugir dos braços de Guto – que a vida de Guto vira de ponta a cabeça. Super Nada, novamente em consonância com o filme de Belmonte, envereda pelo território do suspense, no qual as figuras da rua se transformam e nosso protagonista começa a viver uma realidade paranóica, com medo de que tenha matado Zeca, com medo de que alguém tenha visto, com medo de ter se transformado em um suspeito no imaginário coletivo.

A vontade de se integrar esbarra, quase simultaneamente, com a vontade de se libertar. A liberdade de Zeca seria a liberdade para ser aquilo que gostaria de ser, de ser um ator com vontade e desejos próprios, com sua autoria e seu público. Mas a reviravolta do mundo faz com que, acuado, tome atitudes violentas que corrompem sua aspiração maior, faz com que se sinta um culpado em desbragada aventura de se livrar do crime. É quando sentimos o cansaço de Marat Descartes, quando vemos que seu corpo começa a alquebrar logo após o tapa inicial que indicia o choro do recém-nascido, que o peso do mundo se instaura. O mundo novo vem eternamente velho, como um longínquo canto de cisne em pleno nascedouro - e Guto esmurra Zeca.

Mas Zeca, ao contrário de Guto, já sacou a parada. Não há muito o que fazer, a decadência é perpétua - o programa "Super Nada" não será nada além do que é, assim como ele, Zeca, não poderá se desdobrar em qualquer coisa de mais vital. A vitalidade de Jair Rodrigues como ator vem da consciência de Zeca, da noção de seu papel na história e na narrativa. Um Chacrinha no presente: sabe-se esquecido, sabe o que funciona, o que não funciona, e acaba até mesmo rechaçando grandes inovações. Não é necessariamente aquilo que Guto esperava da vida? Bem, não tá fácil pra ninguém.

O final do filme destoa enormemente de O Gorila ao não se comprometer ou pactuar com um horizonte que, fatalmente, não percebe ou confia. A felicidade no filme de Belmonte vinha no desenrolar da vida, no fato de que a vida continua e que o destino do homem está em suas mãos. Aqui, Guto recebe de Zeca o terrível legado da consciência de seu papel: o horizonte se fecha, o mundo se torna sombrio. Falso? Verdadeiro? Talvez o melhor que podemos dizer é: duas faces possíveis para um mesmo estado de coisas. Existe um funil atrás de todo o nosso progresso, existe uma face macabra e excludente por trás do novo Brasil, existe, por fim, tanto em Super-Nada, quanto em O Gorila, a noção da decadência. Decadência do novo, decadência do antigo? Talvez um pouco dos dois. Mas, definitivamente, pode-se perceber, através dos dois projetos, um ímpeto forte de questionamento e indignação, de vontade de visão e horizonte. Se existe um plano atual para o cinema, a cultura, e o Brasil, inúmeros são os cineastas que dizem: cabeças hão de rolar.

Novembro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


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