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Os outros

Todo narrado pelo ponto de vista de Eduardo (João Miguel), o pai da família formada também por Julia (Marina Person), sua mulher, e o casal de filhos dos dois (ele, no limiar entre adolescência e idade adulta; ela, entre infância e adolescência – e estarem ambos nesse estado “de passagem” não parece nada desimportante para o que está em jogo no filme), Canção da Volta toma o partido da pessoa que “recebe o gesto” numa tentativa de suicídio – ou seja, não quem a comete, mas quem está a seu lado. Tal decisão parece ter a ver com um pressuposto tanto dramático quanto ético da parte dos realizadores (o de que o suicídio não é coisa sobre a qual se possa ou deva tentar urdir lógicas compreensíveis) como com a admissão de um “lugar de fala” masculino, desse filme roteirizado por dois homens e montado por outro. Assim, se as profundezas dos motivos e sentimentos de Julia nunca serão alcançados (ao menos, não mais do que Eduardo pode acessar pelos cinco sentidos disponíveis), certamente isso não se trata de uma construção inadequada de personagem “superficial”, mas uma constatação de que seu protagonista é quem não consegue ultrapassar essa superficialidade, seja por falha constitutiva de seu caráter, seja porque tal conquista de contato seja impossível a qualquer um de nós numa relação amorosa. É nesse sentido que Canção da Volta, entre vários gêneros de cinema com os quais parece flertar, tem inclusive o seu quinhão de filme de detetive na tradição que vai de À Beira do Abismo (1946) a Zodíaco (2007): quanto mais se investiga e desencava elementos, mais longe de uma conclusão satisfatória se parece estar.

Falando em gêneros, ao longo de sua duração, há uma série de momentos em que o filme se permite “delirar”, algumas sequências que pululam ao longo de todo o filme sem uma âncora mais firme na realidade da trama (em grande parte realista) que se acompanha. É um desses momentos que talvez dê a chave de aproximação mais adequada para repensar a narrativa que o filme apresenta: nele, todos os cômodos da casa em que habita a família central do filme completamente vazios – não apenas de pessoas, mas de mobiliário, de roupas, de livros, de fotos nas paredes (uma das marcas mais fortes da direção de arte). Em algum lugar entre a projeção e o sonho/pesadelo, essa sequência propõe antes de tudo uma sensação: a de que os espectros na tela desencarnaram daquele lugar, que restou vazio, porém ainda habitado – seja pelas marcas físicas (manchas nas paredes, móveis embutidos), mas principalmente pelas lembranças que ali foram construídas (pelos personagens, claro, mas antes e acima de tudo, em se tratando de cinema, por nós espectadores que os assistimos).

O motivo para afirmar que essa sequência emprestaria a tal chave de aproximação mais adequada é que ela torna sensível a dimensão que assombra o filme: a do tempo que vem depois que já não estamos mais aqui. A sequência não tanto presentifica a morte, esse espectro que ronda toda a narrativa de Canção da Volta (algo que está mais forte, por exemplo, em outra dessas sequências oníricas, em que o personagem principal parece descobrir que a casa está soterrada, pois seja qual porta ou janela abra só encontra terra), mas de fato nos faz olhar aquela casa como hospedeira de uma história que já foi, dando a pista para o que o filme realmente parece ser: uma clássica narrativa de casa mal-assombrada. Que no tempo diegético da narrativa os personagens não estejam (ao menos não formalmente) mortos é o de menos: o que o filme indica é que, no que tange uma tentativa de suicídio, a morte passa a consumir automaticamente todos em volta dela, não apenas o sujeito do ato.

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A partir do momento em que percebemos Canção da Volta como um filme de fantasmas perambulando pela tela, fica mais fácil entender que, assim como tantas narrativas do gênero, o dilema dos personagens é resolver a equação: “ok, nós morremos, mas e agora, o que podemos fazer com isso? Daqui, para onde?” Se todos os personagens da família parecem movidos por essas perguntas, Eduardo, que funciona efetivamente como nosso guia nessa “viagem ao além”, é o que mais torna física essa dimensão de zumbi. O estado de suspensão em que ele se encontra ao longo de todo o filme (suspensão da realidade ou talvez da “verossimilhança” frágil das pequenas narrativas que urdimos para dar sentido a nossas próprias vidas – profissionais, familiares, etc) aos poucos nos faz duvidar que ele já tenha sido capaz de experimentar a vida de outra maneira – e, portanto, talvez a cadeia de causalidade do filme não seja a que aparentava no começo (“Julia tenta cometer suicídio e isso dispara uma série de comportamentos naqueles à sua volta”). Na medida em que passamos mais e mais tempo com ele – e que o filme vai deixando claro não ser uma exploração da depressão, e sim da paranoia – vamos não exatamente entendendo as motivações de Julia por si, mas partilhando de um sentimento de sufoco e distância que, talvez, façam o tempo do filme parecer circular, ao contrário da sua aparente linearidade. Será que no final não estamos de volta ao começo? Será que Julia não sai do mar, volta para casa e em seguida Eduardo viaja? Ou ainda: será que Julia nem sai do mar?

Seja quando guia seu carro pelas ruas (em sequências que podem remeter inclusive a um gênero ainda mais improvável, o do slasher movie, quando ele oferece carona para sua estagiária ou quando persegue obsessivamente a sua mulher), seja quando simplesmente perambula pela sua casa à noite buscando pistas escondidas ou iluminando o corpo de sua mulher que dorme, Eduardo turva mais e mais os lugares de sanidade e de loucura pelos quais o filme transita (e nos quais os filhos tem sua dimensão de projeção futura de esperança, ainda que constantemente ameaçados). Esse lugar do homem como dono de uma potencial energia violenta atravessa o filme em muitos momentos (no confronto com o filho, no destrato com os colegas de trabalho, na rachadura da taça de vinho…), construindo a chave de uma neurose partilhada, em que Eduardo precisa de Julia instável para se sentir mais potente, apenas para logo se desestabilizar frente a qualquer sinal de maior potência dela.

Não é, em suma, uma imagem bonita a que Canção da Volta projeta para a construção da família nuclear contemporânea. Sem precisar estereotipar o casamento (com filhos) como uma prisão masoquista, ele apenas constata sua dimensão de contrato onde o equilíbrio entre as necessidades e os desejos das partes parece sempre frágil – e no qual talvez a insanidade partilhada seja o único possível porto seguro que permita desaguar numa poética cena à beira mar, e onde rimar amor com dor possa tentar ser apenas verso de canção.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinemaformado em cinema pela UFF, com mestrado na USP. Dirigiu três curtas e um longa-metragem, todos exibidos em distintas mostras do Festival de Cannes, entre outros. Foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Fundador da Semana dos Realizadores (2009), fez curadoria para vários festivais do Brasil. Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Atualmente é curador do Festival de Brasília e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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