Envolto nas sombras

julho 17, 2013 em Em Pauta, Filipe Furtado

kairo23

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

por Filipe Furtado

Há um desentendimento na apreciação no cinema de Kiyoshi Kurosawa que nasceu de ele chamar a atenção pela primeira vez junto ao cinéfilo ocidental em meio ao boom de interesse pelo cinema de horror japonês no fim dos anos 1990. Quando um cineasta contemporâneo se notabiliza pela produção de filmes de gêneros populares, logo se assume que se trata de algum tipo de revitalizador de formas. Mas a verdade é que Kurosawa não é um cineasta especialmente interessado em narrativa ou gênero, assim como Shinji Ayoama – o cineasta japonês ao qual ele mais se aproxima e, não por coincidência, outro ex-aluno do crítico e professor Shigehiko Hasumi. O interesse maior de Kurosawa é de localizar em formas populares um sentimento de desarranjo.

De certa forma, tanto Kurosawa como Ayoama retomam a tradição do cinema novo japonês que também nasceu da indústria de filme B local, mas com a agressividade que lhe era característica substituída por uma inquietação constante. Se a grande maioria dos filmes de Kiyoshi Kurosawa, mesmo os mais naturalistas como Sonata de Tóquio (2008), está sempre prestes a sugerir um elemento sobrenatural, é justamente porque a sensação de desconforto e o mistério de um fora de campo nem sempre reconhecível servem perfeitamente a este sentimento de desarranjo. Existe muito dos filmes produzidos por Val Lewton no cinema de Kurosawa: é sempre como se, envolto em sombras, o desconhecido anunciasse um mal terrível e essencial que já estava ali antes da projeção, pronto a envolver os homens. No melhor dos filmes de Kurosawa, Pulse (2001), o homem literalmente desaparece na sua própria solidão até que a própria existência do mundo seja posta em questão.

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Este gosto pelo mistério fica explícito na forma como o sentido frequentemente é fluído nos filmes de Kurosawa. O estilo opaco de boa parte dos filmes do diretor convida o espectador sempre a uma participação mais ativa, menos um desejo de transformar seu jogo de quebra cabeças em algo acessível e mais de encarar imagens cujo significado é sempre fugidio. A árvore no centro de Carisma (1999) não deixa de ser a mais exemplar de todas as personagens de Kurosawa: sua presença é capaz de causar reações diversas, um objeto maligno e benigno dependendo de como se olha. Os filmes de Kurosawa sempre estão marcados pelo inexplicável (pensemos no protagonista comatoso de License to Live, de 1998, a acordar repentinamente); haverá sempre estas figuras nebulosas, não porque se aposta no obscuro, mas porque o mistério que as envolve reforça este sentimento de desencontro que envolve todos os seus filmes.

Podemos aprender muito sobre as preferencias de Kurosawa comparando Cure (1997) com Foi Deus Quem Mandou, que Larry Cohen realizou vinte anos antes. No filme de Cohen, um detetive investiga uma série de assassinatos similares, nos quais o responsável sempre declara cometer o crime porque foi Deus quem mandou, e a investigação acompanha a crise de fé do protagonista enquanto a ação se move de um naturalismo, no primeiro ato, até um tom barroco absurdista na altura do clímax que essencialmente refunda o catolicismo como uma seita alienígena. É um dos melhores filmes americanos do período, reconfigurando um sem número de fobias no mesmo mergulho histérico. Cure tem exatamente o mesmo ponto de partida: há uma série de crimes cometidos por pessoas diferentes que aparentam serem levadas a matar por alguma forma de possessão, um detetive atormentado cuidando do caso, um líder de seita que parece ser o responsável e repete incessantemente a pergunta “quem é você?”, e uma conexão pessoal entre o serial killer e o detetive (a mãe no filme de Cohen, a esposa em Cure). Se o filme de Cohen busca seu sentido justamente na forma em que escapa ao controle, o mesmo material é tratado por Kurosawa num tom concentrado e sóbrio muito controlado. Se o desarranjo em Cohen é uma questão de misturar elementos narrativos díspares, em Kurosawa ele já existe antes do primeiro plano. O detetive interpretado por Koji Yakusho é um homem condenado bem antes de dividir o plano com o assassino.

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

Cura (1997), Kiyoshi Kurosawa

Assim como Eureka (2000) de Ayoama, Cure é assombrado pelo ataque de gás ao metro de Tóquio pela seita Aum Shinrikyo dois anos antes, e a perplexidade nacional diante da violência inexplicável é sentida ao longo do filme. O que era uma série de fobias americanas se redefine num muito mais especifico trauma japonês (Kurosawa repetiria o processo de absorver ficção ocidental com sentimentos japoneses quando refilmou o cult Seance on a Wet Afternoon, de Bryan Forbes, como Seance, três anos depois) e, no processo, muito do que seria reconhecível acaba encoberto em sombras. A única certeza é de que se está diante de uma existência maculada, que todos os personagens não podem escapar do mesmo mal-estar. Se David Cronenberg faz filmes de horror sobre doenças do corpo, podemos dizer que Kiyoshi Kurosawa faz filmes de horror sobre doenças da alma, cujo paciente é uma entidade especialmente agoniada chamada Japão.

Pulse é o filme chave da obra de Kurosawa e, por coincidência, aquele que mais se assemelha à produção média de horror local (com direito inclusive a um remake americano medíocre), com uma ideia a principio bem básica em torno de uma espécie de site de internet assombrado, mas que se revela a cada vez que uma nova sequência expande seu escopo, até que uma existência insignificante abra espaço para um mundo todo a desaparecer. Pulse promove o improvável casamento entre Michelangelo Antonioni e Yasujiro Ozu, um filme cujo peso é construído a partir da exploração arquitetônica que extrai da sua Tóquio esvaziada um sentimento de desolação, como se a violência do desenlace esvaziado de O Eclipse contaminasse todo um longa-metragem, desde suas externas iniciais, revelando um trabalho forte em isolar cada ator dentro do quadro e reforçar uma desconexão entre corpo e arquitetura (o passeio de carro por uma Tóquio abandonada próximo ao fim do filme é certamente um dos momentos mais perturbadores do cinema contemporâneo). Uma das boas sacadas do filme é justamente um uso deliberado do transporte público para reforçar o sentimento de isolamento, primeiro numa viagem de ônibus e depois encenando uma das sequências chave do filme num metrô fantasma. Muito se viu Sonata de Tóquio como excursão de Kurosawa pelo território do drama familiar à Ozu, mas a conexão entre os dois cineastas sempre esteve muito aparente e Kurosawa, bom estudante, revela um gosto por um design de espaço, em particular na ênfase em linhas verticais, derivado do mestre japonês que, quando combinado com o trabalho de movimento de câmera, garante que cada locação funcione como um verdadeiro caixão encerrando cada personagem.

Doze anos depois, a ideia de um apocalipse mediado pela internet traz uma inegável aflição da virada de milênio, mas há algo de elegante na forma como o filme trabalha com o espaço entre homem e máquina diante de um mundo todo mediado por tecnologia. Pulse não é a única obra de ficção a traçar o paralelo entre solidão e computadores, mas poucos a traduziram em imagens tão marcantes. O uso das sombras na parede para representar o desaparecimento dos personagens (uma imagem com associação inevitável com Hiroshima) assim como seus fantasmas, que se apresentam como borrões no quadro, reforçam o uso expressivo que Kurosawa encontra em algumas ideias muito simples: no mundo de imagens saturadas de Pulse, perder contato com o outro é essencialmente uma questão de sair de foco.

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

Imagino que a maior parte dos cinéfilos tenha tomado contato com Pulse pela tela de sua TV ou no monitor de seu computador, e é notável que, no momento em que o filme se propõe a finalmente olhar um fantasma de frente, ele apague a distancia que separa o plano de cinema das imagens reproduzidas dos vários monitores que se multiplicam ao longo do filme, a mesma imagem rasa e artificial, como se a marcar uma última ponte entre o mundo a tecnologia. É uma lógica que é exposta pelo uso de CGI ao longo de todo o filme, em que se busca não o efeito de realidade habitual, mas seu oposto, um distanciamento artificial que reforça a desconexão de cada uma das suas personagens. Se Pulse é um filme aterrador, é porque Kurosawa encontra em cada uma das suas ideias, uma imagem justa que faça uma passagem poética entre o mundano e o fantástico.

kairo12

Pulse (2001), Kiyoshi Kurosawa

É por isso que, mesmo um filme a principio realista como o thriller de vingança Eye of the Spider (1998), acaba envolto por uma atmosfera de mistério que torna crível um salto a qualquer instante no sobrenatural. O apelo do fantástico permanece sempre à mão nos filmes de Kurosawa, como antes fizera nos filmes de Val Lewton e Georges Franju. Assim como estes realizadores, Kurosawa pensa essencialmente por meio de imagens assombradas. O que lhes move é muito menos responder a alguma tradição, mas liberar um sentimento reprimido e localizar, para ele, uma imagem que lhe convém, com a justeza terrível e memorável de um grande pesadelo.

Share Button