Quase Samba, de Ricardo Targino (Brasil, 2014)

agosto 12, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Marcelo Miranda

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Confronto sem confronto
por Marcelo Miranda

Em que medida um filme pode ser considerado “popular”? O adjetivo se refere à abordagem temática (personagens do “povo”), à quantidade de público (contagem numérica ou financeira de quem viu o filme) ou as duas coisas? Existe o compromisso de um filme realizado num país de Terceiro Mundo em ser “popular” de alguma maneira? Eis questões sem respostas fáceis, que retornam a cada novo trabalho cuja presença do “popular” surge como motivação primeira de sua existência. Nem seria preciso que o crítico, se achasse ser o caso, definisse Quase Samba como “cinema popular”. A própria sinopse do primeiro longa-metragem do diretor Ricardo Targino o faz sem ressalvas, acrescida de um “como você nunca viu antes” (arriscando promessa difícil de cumprir). Em Quase Samba, o termo “popular” se refere essencialmente à abordagem de personagens de uma “periferia imaginária” (de novo a sinopse) às voltas com questões afetivas, financeiras e sociais.

Um dos desafios da criação artística é dar a ver o elo entre as ambições daquilo que se faz (algo nem sempre consciente na partida do ato de criação) e o objeto propriamente finalizado. Quase Samba não esconde a pretensão de tentar ser uma “alternativa” ao cinema industrial brasileiro, tomado por comédias “populares” (aqui no sentido de sucessos de bilheteria) financiadas por grandes orçamentos e pautadas numa repetição ad eternum do mais-do-mesmo de programas de televisão. Ao “popular” das globochanchadas, o filme de Targino vem com outra possibilidade de “popular”, um quase-tropicalismo munido de questões que o filme instituiu chamar publicamente de “combate dos afetos”: um cinema em que os personagens vivem e sonham, entram em conflitos por desejos, batalham por um lugar ao sol, enfrentam as adversidades e estão (quase) sempre com sorrisos no rosto ou lágrimas nos olhos.

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O “combate dos afetos”, porém, muitas vezes pode ser uma arapuca. Em crítica sobre Ela Volta na Quinta (André Novais Oliveira, 2014), publicada aqui na Cinética, Raul Arthuso escreveu que “o afeto tornou-se uma pedra de toque do cinema brasileiro até se tornar um conceito vazio, usado criticamente para valorar filmes cujo olhar está voltado inteiramente para a subjetividade e o grupo ao redor, formado por ligações de amizade, familiares ou de convivência”. O raciocínio é de que o afeto, até pela superutilização como mola teórica, tornou-se justificativa ou viés legitimador de muitos filmes cujas fragilidades estavam na estrutura dorsal, por mais “afetuoso” todo o resto tentasse ser. Não bastava aos filmes, portanto, serem impregnados de afeto; era preciso que o afeto fosse também suas formas de encenação, tais como Arthuso detecta justamente em Ela Volta na Quinta.

O filme de André Novais, aliás, é o exemplo maior dentro do cenário contemporâneo brasileiro do que seria tanto um cinema de “afeto” quanto “popular”, por fissurar a cada plano tudo o que estas palavras entre aspas significam, sem por isso frisá-las dentro do filme a todo instante. São poucos, de fato, os exemplares desse tipo de cinema nos últimos anos no país – filmes nos quais identifica-se a tensão primordial entre o que se arranca do real como representação do popular e a transfiguração desse tensionamento em forma. Falsa Loura (Carlos Reichenbach, 2008) segue como um dos mais importantes títulos ficcionais brasileiros dos últimos dez anos, muito por conta de fissuras como essas. Ele pode ser seguido (em alguma distância, mas com dignidade) pelos curtas O Brilho dos Meus Olhos (Allan Ribeiro, 2007) e Quinze (Maurílio Martins, 2014). Manifestações genuínas das mesmas tensões surgem em objetos tão distintos como Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013) e Billi Pig (José Eduardo Belmonte, 2011), por se diferenciarem de abordagens mais “burguesas” do elemento popular de filmes como Domésticas (Fernando Meirelles, 2001) e Família Vende Tudo (Alain Fresnot, 2011).

Quase Samba está nesta encruzilhada de caminhos complicados, entre o “combate dos afetos” e os efeitos de uma encenação que parece não ser suficiente para se chocar e efetivamente gerar confrontos. Não basta colocar pessoas “do povo” em cena para se ter algo “popular”. É preciso também um gesto, uma ranhura provocadora de fagulhas justas com aquilo sobre o que se está falando. No filme, quando o conflito central se estabelece, a ação acontece fora de campo, numa escolha tão legítima por suas escolhas quanto questionável em relação aos sentidos que oferece. O afeto está sempre em mais evidência do que o combate, mesmo que Quase Samba se apresente, ainda no prólogo, como um trabalho consciente do mundo ao qual pertence (vide as transmissões radiofônicas noticiando as manifestações de 2013). Mas que esse mundo fique ali fora, no extracampo, parece dizer o filme, porque aqui dentro, entre letreiros em neon e cores vibrantes, só cabem os bons afetos, mesmo que fique claro que os maus estão esmurrando a porta.

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O que Quase Samba está tentando encontrar? No retrato da família formada pelas circunstâncias (mãe solteira grávida, uma criança e uma travesti), há o paralelo com Madame Satã (Karim Aïnouz, 2002), e as diferenças entre um filme e outro caracteriza-os devidamente. Temas pungentes (corrupção, violência policial, machismo, opressão social, sexualidade) parecem sobrar no filme, ainda que sejam lançados como estímulos a situações que não se concretizam. Os interstícios musicais soam intrusivos, pela falta de fluidez, ao mesmo tempo em que carecem de força dramatúrgica para serem apenas desvios dos personagens num imaginário que o filme se esforça em construir. Nem tão “popular” nem tão “autoral”, Quase Samba surge como incógnita, a tatear numa tradição do cinema brasileiro historicamente desafiadora (para muitos, um fardo). O filme tenta contribuir de alguma forma a um dos grandes enigmas do audiovisual no país – a tal noção de o que seja o “povo”, conceito que Giorgio Agamben sistematicamente tenta capturar ao defini-lo como “aquilo que não pode ser incluído no todo do qual faz parte e não pode pertencer ao conjunto no qual já está desde sempre incluído”. Nunca é tarefa fácil.

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