Chatô, o Rei do Brasil (idem), de Guilherme Fontes (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Raul Arthuso

chato1

Entre equívocos (e desgraças)
por Raul Arthuso

Podem-se arranjar muitos subterfúgios para abordar Chatô a partir da conhecida história da produção arrastada ao longo de vinte anos, envolvendo órgãos de fiscalização, brigas judiciais e, claro, muito dinheiro (público), buscando no filme as pegadas de sua odisséia. Elementos não faltarão: a briga do protagonista Assis Chateaubriand (Marco Ricca) contra o governo, na figura do presidente Getúlio Vargas (Paulo Betti), por quem é perseguido, na visão da narrativa, injustamente; o programa de TV que entremeia a estrutura biográfica do filme, espécie de “juízo final” do protagonista, confrontado com sua história diante da platéia de brasileiros, numa mistura de cenário carnavalesco com programa dominical, transformado em julgamento público de Chatô; e o apresentador inspirado em Chacrinha, encarnado pelo próprio Guilherme Fontes, com sua indumentária distorcida, aparentemente saída de um filme de terror, sambando e rindo na cara da sociedade, apontando diretamente para a câmera diversas vezes, ponto de vista que se confunde entre o do protagonista e o do próprio espectador. Em especial, há um elogio do pioneirismo da personagem que hoje parece deslocado: Chatô é um visionário, incompreendido por seu espírito sonhador voltado para a ação, a realização a qualquer custo, apesar de todas as advertências de pessoas próximas quanto às suas empreitadas mais próximas do delírio que da realidade. Dinheiro não é problema para o empresário: mais importante que a boa administração é o desejo de promoção da novidade para o desenvolvimento do país e a satisfação pessoal, misto de empreendedorismo capitalista e narcisismo. Nesse sentido, ocorre algo curioso: Chatô está mais próximo das narrativas de fundação de quando o filme começou ser realizado – os febris desejos (sexuais) de Carlota Joaquina e (empreendedores) de Mauá – que dos quiproquós de gerenciamento do cotidiano dos sucessos de bilheteria atuais.

Tudo isso, porém, é anedótico, como a cartela inicial de uma firma de advocacia junto aos patrocinadores do filme deixa transparecer. Ficar aí só gera algo entre a condescendência e a indiferença silenciosa: polemizar fazendo da obra aquilo que ela não é – um bom filme – ou ignorá-lo pelo produto que é – uma superprodução desgarrada de seu tempo histórico. Mas Chatô traz duas questões formais interessantes de se observar tendo em perspectiva o cinema brasileiro hoje, especialmente porque o filme de Guilherme Fontes se constrói a partir de equívocos no entendimento delas.

Primeiro, a estrutura geral de Chatô está baseada numa ideia de cultura brasileira como antropofagia cultural, postulada logo no início: Chatô, a personagem, apresenta sua origem em um texto para a câmera que culmina no plano dele com figurino indígena comendo um pedaço de carne – sugere-se que humana – em frente a um ritual antropofágico no fundo do quadro. Chatô se compõe, então, de cenas com tons, tratamentos visuais, escolhas de posicionamento ou temperamento de câmera e até mesmo de gêneros cinematográficos completamente diferentes: vai do pastiche de cena de guerra, com fotografia de cores frias e pouco contraste, em planos mais apertados para mascarar o cenário de batalha reconstruído, para uma festa da alta sociedade, luminosa e cheia de pompa, invadida, de repente, por Chatô numa performance do “cabra macho” que estaria em sua essência; do colorido do cenário do Chacrinha à reprodução “naturalista” de uma redação de jornal aos moldes do cinema de estúdio americano dos anos 1940. Mais que cenas, flashes da vida do protagonista.

chato2

“Tudo nos é estrangeiro, pois nada o é”, parece ser a vulgata mestra de Chatô, lida em algum livro por aí, mas entendida ao contrário (e eis o equívoco!): nada é estrangeiro, pois tudo o é. É como se a cultura brasileira fosse permissividade e não contradição. Assim, Chatô é um vale-tudo: devora-se a carne, mas não há digestão oswaldiana. Toda a potência da deglutição se perde na confusão da incorporação de elementos variados como forma e a colisão desses elementos sem forma alguma. Por isso, é difícil falar em composição, uma vez que os elementos do filme não se articulam, mas sim se acumulam. As passagens chocam-se numa montagem que parece resgatar o melhor de cada tom, tomada ou gênero que restara da filmagem. A montagem é antes uma coletânea que uma construção, como um disco que retira as faixas do contexto construtivo original e as coloca em sequência por uma outra arbitrariedade que não o gesto criativo. O equívoco de Chatô no entendimento da forma é a apoteose da negação ao pensamento compositivo: há muitos temas, cores, anedotas, tons musicais, coqueiros, cartolas e sotaques soltos ao longo do filme. Muito delírio num corpo inerte, como o protagonista preso à cama de um hospital devaneando sobre seu passado.

chato3

Talvez venha daí o segundo equívoco: pensando nessa permissividade tomada como antropofagia, a marca da cultura brasileira da qual Chatô é pioneiro, Chatô tenha sido feito numa concepção desregulada de cinema popular. Há traços de chanchada em todas as inserções de elementos carnavalescos ao longo do filme; de uma sexualidade escrachada e libidinosa de comédias eróticas dos anos 1970, mas perturbadas pelo pudor comercial dos anos 1990; a grandiosidade técnica típica de o que a Retomada fez de pior, o mimetismo irônico dos anos 1980, a empostação pseudo-nacionalista da Vera Cruz e seus problemas de acuidade nos detalhes típicos de qualquer coisa fora do eixo Rio-SP – bastante evidentes nas performances dos sotaques paraibano de Chatô, gaúcho de Vargas e o portunhol de Lola (Leandra Leal). Uma das primeiras sequências se detém na discussão entre duas figuras do poder, encarnadas pelos atores José Lewgoy e Walmor Chagas – o primeiro falecido em 2003 e o segundo, em 2013 – fantasmagorias de momentos e ideias de cinema no Brasil que não são mais que isso: fantasmas. Chatô parece perdido nesse limbo de todas as desgraças do cinema brasileiro: nem chanchada, nem Retomada; nem tropicalista ou programa de auditório de domingo.

A forma aleatória dessa reapropriação das camadas superficiais das tentativas de cinema popular industriais praticadas no Brasil fazem do filme uma mera reprodução de todos os equívocos, o elogio quixotesco de um pioneirismo que não frutifica, assim como seus antepassados. O popular é, como muitas vezes (e não apenas no cinema), mistificação, folclorização e histeria, uma permissividade própria da equiparação de popular com comercial por osmose. Ambos podem coincidir, mas é preciso entender que a característica do produto comercial é o instante, o imediato, enquanto o popular é uma construção de imaginário e se faz no decurso do tempo. No que é popular se chocam passado, presente e futuro. Chatô perdeu seu instante e carece completamente de construção de o que quer que seja. A lição a tirar de seu “pioneirismo” é a de que uma obra não se faz por acaso.

Logo em seus primeiros minutos, uma montagem ágil de fragmentos revela ações em espaços e tempos diferentes. O plano de um olho parece o leitmotif da sequência, recheada por imagens distorcidas a partir de efeitos óticos da lente, modificando a realidade observada por esse olho (ou pelo menos, é isso que fica sugerido). Ao final da sequência, com a “normalidade” estabelecida, Chatô crava: “Eu tive uma alucinação”. Perdido em seus equívocos, que distorcem o mundo, esse é um dos poucos momentos de lucidez do filme.

Share Button