Aliança, de Gabriel Martins, João Toledo e Leo Amaral (Brasil, 2014)

fevereiro 7, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

alianca

Típico atípico
por Juliano Gomes

Aliança narra os acontecimentos ao longo de um dia na vida de três amigos de infância por Belo Horizonte. Panda (Gabriel Martins) vai se casar, Pilo (Leo Amaral) e Isaac (João Toledo) viram a garota de Panda com um instrutor de ginástica, e assim coloca-se o conflito inicial: estragar o sentimento do amigo com a má notícia ou deixá-lo viver algo que talvez não possa ser igualmente correspondido, sem intervir? Obviamente o título também alude à união entre o trio, que acaba sendo o verdadeiro centro do filme – a caracterização de um elo de amizade e suas variações. Trata-se verdadeiramente de uma comédia de costumes, um exame de um modo de se relacionar com os outros e de como circular pela cidade.

Na primeiríssima cena, vemos uma imagem de uma mulher se despindo a partir de um ponto de vista voyeur, através do qual ouvimos três vozes narrando com excitação a cena. A cumplicidade que se depreende daí é também a marcação desse ponto de união de um modo de ver o exterior e também um grifo no sexo como tema dominante dos números que o filme narra: além da namorada de Panda como eixo central, a primeira piada não textual de Pilo é ele imaginando-se aos beijos com uma bela passante, assim como o personagem de Isaac é justamente o “virgem” do grupo, por exemplo. O recorte aqui é justamente o do fim da juventude, o momento em que um outro encontro forte – o casamento – pode colocar em ameaça o antigo laço de amizade. É sob o paralelo entre o encontro com amigos e o encontro com as mulheres que grande parte do filme se estrutura.

A escolha pela circulação como motor desses encontros proporciona uma variada galeria de tipos, que são também cenas da cidade, isto é, um mapeamento do espaço urbano, da rua, como espaço de liberdade e de encontros. Quase todo o trajeto se dá na rua, nos espaços públicos, onde há mais riscos, onde se está mais exposto. Exposto talvez seja uma palavra precisa para o projeto de Martins, Toledo e Amaral. Desde a tipografia dos créditos às vinhetas que separam os segmentos, a atmosfera, assim como a trilha sonora, tudo indica de que se trata de um tributo à comédia americana recente (Apatow, Farrely, para citar só dois) e nem tão recente assim (Married… with Children e os filmes de John Hughes). Ao assumir com tanta clareza esse campo, esse objetivo do trabalho com as convenções, Aliança torna-se um filme bastante pretensioso, na melhor das acepções. O filme tem consciência de uma tradição, aponta para sua existência e de fato quer se alimentar dela, jogar seu jogo, que já é, em sua armação estrutural, marcado. O despudor em expor essas entranhas os libera para criar modulações próprias para a apropriação deste repertório. Simultaneamente, a rua belorizontina oferece tipos – como o guardador de carros, o fiscal da sociedade, o chato do bar, os vendedores – que fornecem substância para que esse exame sobre a ética, sobre as condutas ligadas à estima de um outro, se realize em sua plenitude.

A cidade é um ingrediente essencial nessa relação, na medida em que fornece um material que não se ajusta com aderência total à hipótese de uma “cópia” dessas matrizes. Na verdade, a questão maior é quase a inversa. Ao contrário de uma possível esterilidade por uma suposta reverência a um caldo de cultura estrangeiro, o problema aqui, a oscilação de intensidade, se dá muitas vezes pela construção de um universo excessivamente local, interno afinal. As quedas de ritmo parecem ser causadas, em boa parte das vezes, por um certo desnível entre o que acontece na tela e o lado de fora. Lá dentro, a diversão corre solta, mas aqui fora por vezes parece nos faltar material. Um exemplo é uma das cenas do segmento final, em que os personagens vomitam após uma noite de bebedeira, sentados numa praça. A falta de ênfase no nome da praça (Raul, que remete a uma gíria que se refere a vomitar) deixa o espectador numa fruição mais direta da cena que a desintensifica por faltarem-lhe camadas: beberam, agora passam mal.

Por outro lado, a tipificação, a construção dos personagens, seu desenho interno e externo, é sem dúvida um ponto absolutamente fértil que, ao final do filme, não parece ter se esgotado (indício de continuação?). As características de cada um, inclusive dos coadjuvantes, oferecem bastante material para a criação dos esquetes e para sua variação. É notável a força do triângulo principal, em que nenhum dos três se parece com o outro e, ao mesmo tempo, sua ligação se torna imediatamente crível, pela força individual e de relação com os outros. Na primeira grande sequência de interação, no carro, o estabelecimento de empatia se dá na cena que tem um dos melhores ritmos de todo o filme, cheia de modulações internas – antes da chagada de Panda, o flagra na namorada; o contraponto da presença de Panda… tudo isso corroborando com esse compromisso radical da comédia com o corpo de quem vê: é preciso fazer rir, e aqui, eles realmente conseguem. A construção do instrutor de ginástica é notável como estabelecimento de um tom que beira o farsesco, mas que mantém-se um tom abaixo. A potência aqui está justamente em encontrar os momentos certos para se atacar a medida, para ir ao excesso, acelerar os movimentos. Claramente, o filme não tem medo dessas subidas, apesar de nem sempre sair bem sucedido delas.

Colocado em oposição a seus pares, como o recente Muita Calma Nessa Hora (2011), fica claro o êxito do filme mineiro em diversos campos: na criação de tipos realmente desviantes dos clichês mas eficientes como construção, seja nos protagonistas ou na escalação dos coadjuvantes e das mulheres do filmes (cuja beleza não é a das passarelas de moda, para o bem do filme); num mergulho mais sujo no espaço da cidade, com mais riscos e menos marcados pelas questões do universo do consumo. Ao contrário do eventual vazio do personagens de Felipe Joffily, aqui eles parecem, pela sua construção, que têm mais, que podem mostrar mais. O tipo não se esgota e suas relações são construídas em ato, como no personagem de Panda, que parece encontrar um lugar onde a vida amorosa não ameace o laço de amizade, apesar de nunca termos certeza de para qual lado ele vai pender, até o trecho final.

O texto é parte essencial desse processo, não só pelas marcas e ritmo locais, mas pela matéria mesmo dos desenhos dramáticos e pela forma das piadas e desdobramentos. Em grande parte das cenas maiores (com a exceção da primeira do carro e da boate, por exemplo) sente-se uma descida de frequência no texto, na medida em que as situações desse tipo de humor pedem uma escrita que seja sempre incisiva e que consiga modificar, sem arbitrariedades, seu ponto inicial. A palavra e sua transformação constante (duplos sentidos ou mais) é uma das armas de propulsão desse gênero e, quando ela diminui de voltagem e beira a reiteração, só a atmosfera parece não sustentar algumas situações – como a da joalheria, por exemplo. O contraponto dessa eventual baixada de bola é justamente a força física da constituição dos personagens e suas sequências de encontros. Na medida em que se trata de uma espécie de pioneiro, talvez lhe falte justamente cancha nessa construção textual – que, ao que tudo indica, tem grandes chances de se acentuar numa próxima investida do grupo nesse campo.

Da mesma maneira do texto, a montagem é ferramenta essencial nessa manutenção do tônus rítmico e associativo. O humor é a arte do estabelecimento e da quebra constante. Apesar da função mais básica, mas não menos essencial, de fazer o filme avançar, de não deixar dormir os olhos nem o cérebro, a edição é também agente de sentidos arbitrários aqui, que funcionam justamente como esses momentos de “ataque”, de risco, ao introduzir uma modulação mais radical dentro da linha de cena. O melhor exemplo disso é a cena da bebedeira no boteco. Para dar o sentido de passagem de tempo, via acúmulo de garrafas de cerveja, a montagem se acelera gradativamente nos detalhes das garrafas se acumulando, num crescendo rítmico que, ao atingir seu ponto máximo – com as imagens piscando muitas vezes por segundo – vai direto ao ponto trazendo a imagem do rosto do ícone cervejeiro Zeca Pagodinho. Aludindo aos melhores momentos de montagem associativa do humor recente brasileiro (o procedimento é uma tradição do Pânico na TV, por exemplo), essa operação abre campo para uma forma de infidelidade com o universo construído que não viola as regras da convenção, mas as enriquece. Ao mesmo tempo funcional e anárquica, a montagem icônica é uma operação que indica que este mundo tão bem delineado poderia ser mais abalado por dentro, pelas imagens que ele evoca, por intrusos da diegese, já que a convenção abre espaço para esse fora que é também um espaço do filme. Um filme de gênero está sempre fazendo duas coisas ao mesmo: a si e a convenção.

Curiosamente, é justamente a infidelidade (como no exemplo da montagem da cerveja) um dos pontos frágeis do filme. A habilidade na construção de um universo crível, de espaços e relações (como no curta Sandra Espera (2014), de Leo Amaral, também exibido em Tiradentes), funciona como uma âncora que parece limitar vôos associativos para fora desse enraizamento. Um dos curtas recentes de outros do diretores – Gabriel Martins, Mundo Incrível Remix (2014), também parte da Mostra – tem como centro justamente essa ideia de uma montagem intensamente associativa pelas formas, mas que obedece ligações muitas vezes totalmente exteriores às imagens que estamos vendo. A mudança constante de regime no curta – portanto, a ampliação – é o que parece ser tímido na dinâmica dos elos de Aliança: o vazamento do caos dos textos parece ser represado por uma reverência que é também o desejo do estabelecimento real de um drama, de um conflito. Daí a pretensão desse filme barato, antes inimaginável num “circuito de festivais” que, no atual contexto, tornou-se raro.

A arte discreta aqui é a do encontro dessas modulações (mundo adulto x mundo jovem; casamento x amizade; ética x justiça) e, nesse sentido, há uma espécie de nudez nessa transparância de área de trabalho cuja abertura permite uma adesão fácil, pois parece um universo realmente aberto: concluiu-se com o filme que é expor-se, mostrar-se ao outro (até mesmo com o suposto contraponto desta atitude, no personagem de Isaac), o que tem valor e o que proporciona a cena. É aí que se dá o exame ético (é notável a devolução da aliança na boate, neste sentido) dentro do filme. Coração aberto, cidade aberta, referências abertas. A timidez eventual dos procedimentos contrasta então com a grandiosidade dos objetivos do projeto, e o que fica é a nítida impressão de um longo caminho a trilhar, mas que claramente já se sabe a direção, pelo que o filme indica. Esse campo aberto é justamente o da afiação dos ritmos e das quebras e de um maior esmero com as palavras. Então, daí, pode nascer um campo de interseção com o cinema brasileiro que domina as salas, que eventualmente possa indicar uma porta de saída para os impasses atuais de um cinema popular no Brasil. Nesse sentido, sem dúvida alguma, Aliança triunfa. Fiquemos atentos.

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