Tudo por um Furo (Anchorman 2: The Legend Continues), de Adam McKay (EUA, 2014)

maio 5, 2014 em Em Cartaz, Fábio Andrade

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Comédia ostentação
por Fábio Andrade

O Âncora: A Lenda de Ron Burgundy (2004), de Adam McKay, foi uma comédia de notável sucesso nos EUA – que, inclusive, passou quase em branco pelos cinemas brasileiros, como estampa a descontinuidade arbitrária do título em português deste Tudo por um Furo, ou simplesmente Achorman 2 – em que Will Ferrell, um dos grandes nomes do gênero naquele momento, e um afiado grupo de atores coadjuvantes (entre eles, o então pouco conhecido Steve Carell, em momento brilhante) se muniam de um arsenal potentíssimo de grosserias sobre a cultura norte-americana, catalisada (e nem sempre nos bastidores) em um noticiário de integridade duvidosa. O caminho das pedras estava encontrado: usar o benefício da distância do filme de época (que aqui brinca com seu lado de profeta de fato consumado, como brilha uma inspiradíssima piada sobre a BP Oil – companhia de petróleo responsável por um vazamento monumental na costa norte-americana, aqui apresentada como “nature’s best friend”) para escancarar o lado mais sórdido e preconceituoso da sociedade norte-americana, sem estabelecer uma ruptura que colocasse o presente em uma posição segura em relação a esta severa auto-crítica.

Pois O Âncora olhava para os anos 1970, para a lenda, mas falava sobre o presente, sobre tudo que permanecia na zeitgeist norte-americana em 2004, e que era escancarado pelo exagero e a inflamação do politicamente incorreto do filme. Dez anos depois, o célebre news team se reúne em Tudo por um Furo, reavivado por uma oportuna premissa: a criação do primeiro canal de jornalismo 24 horas no ar (no filme, a GNN – corruptela tão clara que não precisa sequer ser decifrada, mas que ganha um delicioso subtexto ocasional para os espectadores brasileiros: o GN é sigla de Global News). Em uma busca genealógica, o filme reinstala o presente em relação às escolhas de um simbólico idiota do passado (o próprio Ron Burgundy, um Zelig do presente), sem, novamente, criar uma ruptura que assegure ao espectador contemporâneo a posição do conforto da não-identificação. Se havia uma lenda de sordidez no passado da imprensa ocidental, este novo filme reafirma a sobreviência do diabo em seu subtítulo: a lenda continua.

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Continuar, de fato, é preciso, mas não sem reconhecer que, mesmo antes de o filme começar, não é difícil intuir tudo que mudou na década que separa os Anchorman: embora Will Ferrell já não tenha mais o prestígio de outrora, o Ron Burgundy que criou para estes filmes foi rapidamente alçado ao panteão de ícones solventes de uma Hollywood cada vez mais massificada pelo marketing agressivo, capaz de alçar até um filme como Batman – O Cavaleiro das Trevas (2008) ao topo das listas de melhores do ano, sem que o filme tivesse sequer sido exibido pela primeira vez. Se esse prestígio garante a Tudo por um Furo outra possibilidade orçamentária, e até mesmo o lançamento de duas versões nos cinemas americanos (uma “limpa” e outra “suja”), o dinheiro traz consigo a obrigação de estar aparente: tudo aqui é sensivelmente mais “belo”, acrescentando uma suntuosidade aos cenários e à composição chic da paleta ocre de cores que, ao mesmo tempo em que gera ruídos interessantes no contato com o humor chulo do texto, não deixa de higienizar o que o primeiro filme tinha de mambembe, de improvisado. Além disso, coadjuvantes então em momento muito diferente de carreira – como Steve Carell, Paul Rudd e Christina Applegate – retornam reencorpados por uma mitologia própria e individual, desenvolvida em uma série de trabalhos de sucesso no cinema e na televisão. Dizer que Tudo por um Furo é um filme mais pesado e inchado do que o primeiro, porém, é afirmar o óbvio. A questão, no caso, é como Adam McKay e cia lidam com o peso de seu próprio legado.

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Ciente dessa sobrecarga, o primeiro ato deste segundo filme é surpreendentemente promissor. Ao mesmo tempo em que McKay consegue buscar, desde o argumento inicial, um evento cronologicamente preciso para desenterrar (quase literalmente, no caso de Brick – Steve Carell) seus personagens, o potencial crítico do primeiro filme parece muito pouco abalado por todo o contexto que permite que esta sequência exista. Ao contrário, os preconceitos e a estupidez de Ron Burgundy – um sujeito racista, machista, sexista, vaidoso e brilhantemente idiota como poucos no cinema hoje em dia – não só estão mais escancarados, como encontram contraponto perfeito em sua nova chefe, Linda Jackson (Meagan Good, em uma acertada escolha de casting por um rosto menos habitual ao grupo aqui reunido), mulher, negra e suficientemente competente para dar até mesmo o braço a torcer à burrice de Burgundy, quando ela se mostra lucrativa, em uma lógica de competência que anuncia o futuro porvir. Por um lado, há um compreensível, e não muito bem sucedido, esforço mercadológico de alçar Steve Carell (um dos maiores atores em atividade, sem dúvida, mas lutando aqui com um material que raramente faz jus ao seu talento) ao posto de co-protagonista do filme, em um romance extremamente mal clivado com Chani (Kristen Wiig) – e se, por um lado, o casamento de Carell e Wiig como dupla de cena é de uma felicidade quase óbvia, é alarmante que nada aqui funcione tão bem quanto na parceria bem menos óbvia entre Carell e Juliette Binoche, no belíssimo Eu, Meu Irmão e Nossa Namorada (2007), de Peter Hedges. Por outro, embora seja necessário desviar desses entulhos pelo caminho, sequências como aquela em que Ron Burgundy é apresentado à sua nova chefe (em um equilíbrio preciso entra a comédia física, o character acting, a sitcom, a comédia de erros e a crítica social) – ou a cena na lanchonete que vende morcego como se fosse frango, tão absolutamente sintética de tudo que o filme fará em seguida, e não muito distante da ideia de “cinema de contrabando”, de Luc Moullet; ou ainda a do grupo de jornalistas experimentando crack durante um programa ao vivo – não proliferam em abundância no cinema contemporâneo. Há carne suficiente para se cravar os dentes aqui, pois, embora o primeiro ato de Tudo por um Furo seja tão assombrado pelo gigantismo de sua própria obrigação em ser relevante quanto lhe é inevitável sercomo É o Fim (2013)… como as sequências de Se Beber, Não Case (2011 e 2013)… como This is 40 (2013)… como, em algum medida, o filme coletivo Movie 43 (2013), a despeito do grande episódio de Peter Farrely –, há uma química flagrante aqui, e cada vez mais rara em tempos de CGI, que compensa uma escritura vacilante com o timing cirúrgico do elenco e a desfaçatez de sua própria vulgaridade.

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Mas passada a primeira hora de projeção (e estamos falando de um filme de mais de duas horas de duração), Tudo por um Furo passa a ser lentamente consumido por um desejo leviatânico que já afundava Isto é o Fim: a vontade de tudo ser. É curioso que esse desejo, em 2008, servisse para alimentar um dos melhores filmes dos últimos anos – Trovão Tropical, de Ben Stiller – e, tão pouco tempo depois, ele já tenha se transformado em um peso encarcerado para toda uma geração de filmes, tirando por completo qualquer senso de proporção. Em Tudo por um Furo, é ilustrativo que essa desproporção tenha como centro a figura de Will Ferrell, reafirmando o ciclo predatório da indústria de Hollywood, capaz de inflar todo artista de mínimo talento até que não lhe sobre mais mistério aos olhos do público, e ele seja prematuramente descartado para antologias impressas em papel reciclável. Pois Ferrell está tão pleno em Tudo por um Furo quanto em qualquer bom papel do passado, mas ele não deixa de carregar uma certa consciência de algo que “já não é mais” – como Jim Carrey já não é mais; como Adam Sandler já não é mais; como Rob Schneider já não é mais; como talvez as Apatow Productions já não sejam mais; como mesmo a Pixar já não é mais. Ou seja: como parte consciente de uma macroestrutura de trituração e auto-reciclagem da qual sobrevivem apenas (e até quando?) sujeitos de aguda inteligência de posicionamento de carreira, como Steve Carell e o próprio Ben Stiller.

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Nesse sentido, não há sequência mais cristalina do que a recriação de um dos grandes momentos do primeiro O Âncora: a guerra de gangues de jornalistas, em uma representação literal da batalha por audiência que remete diretamente ao The Warriors (1979), de Walter Hill. Pois se a surpresa da solução original não pode ser repetida, a saída é resgatá-la já como auto-paradigma, em meio a um last minute rescue ainda por cima, e adensá-la com toda sorte de cameos – essa mais-valia contemporânea – que o capital conseguir reunir, para tentar renovar o interesse do espectador a cada nova aparição inusitada. Se, por um lado, há gangues criadas a partir de ideias que se impõem e que se justificam na ação, pela ação, boa parte delas parece estar ali apenas para acomodar o maior número possível de convidados e auto-citações, em um esforço por extrair o sumo restante de um star system de estrelas decaídas, em raciocínio não muito distante do que fia a auto-suficiência do casting em filmes tão distintos quanto Os Mercenários (2010), Cartada Final (2001) ou As Horas (2002).

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Em seu galope rumo uma auto-implosão que não é nem potencialmente anárquica, nem forte enquanto espetáculo de destruição (em slow motion), Tudo por um Furo parece ambicionar ser tudo, mas termina sendo de fato muito pouco. Em uma indústria em que o presente parece cada vez mais efêmero, e que justamente por isso faz parecer necessário que ele seja experimentado na plenitude estapafúrdia que redunda nas salas 4D, é justamente a ligeireza do formato seriado – na TV, com Louie e o inesgotável Saturday Night Live; no VOD, com Arrested Development; ou mesmo na internet, com Comedians in Cars Getting Coffee que se afirma como porto-seguro de uma certa leveza cotidiana do humor que parece não mais “ser digna” do cinema.

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Mas o que seria, então, digno do cinema? A se julgar por Tudo por um Furo, e pelo fato de que ele está longe de ser um caso isolado, apenas o brilho ostentatório de seus próprios escombros. Nessa constelação de seres cansados e pesados, resta apenas reviver as glórias de um passado inventado, tentando extrair as últimas gotas de uma presença que há muito se tornou miragem.

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