cannes-dia6-cabecalho

Esse assombroso passado

Se hoje um criador precisa lidar com as lembranças de tudo que existiu antes no cinema, ele ainda pode contar com uma constante: o poder do fascínio da ficção, da necessidade humana de fabular, encontrando no cinema uma ferramenta poderosa pela maneira como consegue acessar um imaginário e fazer literalmente que se veja o mundo por outras lentes.

Nesse sentido, poucos cinemas são tão informados pelo poder da imagem cinematográfica e pela mitologia por ela criada quanto o de Quentin Tarantino. E se isso é verdade desde sempre na sua obra, é inegável a maneira como esse Once Upon a Time… in Hollywood leva a outras alturas o jogo de referências que sempre foi uma parte do fascínio do cinema dele. Sim, porque se uma inegável linha de força no cinema de Tarantino sempre foi a maneira como ele tornava profundamente suas as imagens do passado do cinema, nesse novo filme do cineasta a questão adquire um outro patamar que nos permite entender de maneira mais clara até que grau essas imagens e lembranças não são apenas fontes frias de inspiração.

Dessa maneira, Once Upon a Time… talvez ajude a confirmar algo que sempre entendemos, talvez de forma mais intuitiva, e que muitos cineastas supostamente “inspirados” por Tarantino nunca pareceram compreender de verdade: existe uma energia vital na relação do cinema dele com o passado que não se dá na superfície de quem simplesmente “assistiu uns filmes e quer decalcar algo deles”, mas sim o sentimento de que aquele caldo mitológico do cinema é parte mesmo da sua existência, da sua biografia. Portanto, quando ele se volta para Hollywood em 1969 para localizar seu novo filme, ele está na verdade filmando a sua biografia – sem precisar filmar nem a sua história nem a da sua família. Criado na Los Angeles do período, mergulhado em filmes e no imaginário local, narrar histórias do cinema do período (e não por acaso todos os protagonistas desse filme trabalham na feitura de cinema) é, para Tarantino, filmar sua própria vida. Once Upon a Time… talvez seja, dessa forma, a mais cara e fabulosa (em vários sentidos) autobiografia na história do cinema.

A maneira como isso se expõe em imagens nesse novo filme passa por vários expedientes, a começar por uma exatidão quase maníaca com que ele reproduz os mais ínfimos detalhes de cenografia, figurino, maquiagem, e tudo que tem a ver com o sentimento físico de uma época. Vemos Tarantino passar minutos seguidos em planos de detalhe de uma lata de comida ou de uma revista, e entendemos o quanto para a narrativa do filme tudo aquilo pode ser desimportante mas é essencial como maneira de ancorar no real do período (um real, como sempre, filtrado pelas imagens míticas). De novo, se a obsessão pelo exato parece beirar o fetiche, não há um sentimento distanciado, mas sim de familiaridade. Da mesma maneira, a velha obsessão tarantinesca pelos diálogos longos e, acima de tudo, os modos de expressão pessoal, têm aqui um ponto de inflexão: durante boa parte da duração, Once Upon a Time.., não parece exatamente urdir uma narrativa (embora, aos poucos, fique claro o quanto está) e sim “documentando a imaginação”, por assim dizer. Mais do que em todos os seus filmes desde Jackie Brown, Tarantino aqui está muito mais interessado em expandir o tempo, em detalhar cada entrecho de maneira detida e específica. As cenas tem a duração dos encontros, atentas muito mais às dinâmicas de comunicação (são incríveis, por exemplo, as trocas entre Brad Pitt e a jovem hippie) do que a qualquer preocupação em fazer avançar a narrativa.

Mas talvez o mais impressionante no filme seja a forma como ele escolhe esse 1969 tão caro a ele como um ponto de inflexão que adquire uma importância bem além do pessoal. No cruzamento da narrativa desse ator em decadência vivido magistralmente por um Leonardo Di Caprio auto-irônico ao extremo com a atriz em ascensão vivida linda e discretamente por uma Margot Robbie luminosa, existe ali também a história do fim de uma era que é muito mais do que apenas uma passagem de bastão na história do cinema ou algo assim. Ao incorporar à sua narrativa a história de Sharon Tate e Charles Manson, Tarantino não apenas mexe numa lembrança dolorosa, com motivos e ferramentas bem parecidas com alguns do que usava para se aproximar do nazismo em Bastardos Inglórios. Ao incorporar a melancolia dessa história maior do que a ficção, Tarantino fala também do momento em que alguns dos nossos sonhos começam a morrer – e reafirma, de novo, que só o cinema, pelo menos para ele, pode permitir que o sonho siga vivo se retrabalhado. É um filme a ser analisado por muitos vieses com mais calma, mas certamente essa capacidade de ser ao mesmo tempo profundamente prazeroso e deprimente é uma qualidade impressionante.

Aqui, podemos perceber uma ponte talvez pouco esperada com o novo filme de Karim Aïnouz, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão. Menos porque haja algo de distantemente autobiográfico nesse filme de época (o cineasta foi criado por mãe e avó da mesma geração das que vemos na tela, e certamente faz desse filme uma ode às mulheres e sua força de resistência e continuidade), e mais pela maneira como Aïnouz também mergulha no caldo de uma narrativa e imagem cinematográfica (que vem de Douglas Sirk, filtrado por R. W. Fassbinder, com certeza) como maneira de propor uma visão bem mais ampla sobre algo que é profundamente determinante na história do Brasil. E como o resultado do seu filme consegue ser, pela maneira de filmar e encenar a pequena tragédia que está no coração da obra, ao mesmo tempo capaz de causar em iguais doses o sentimento de euforia e desespero.

Sim, porque a pequena vida invisível de Eurídice (mas também de Guida, de Filó, etc) se torna relevante para além da sua grandeza própria, justamente pelo que permite perceber de estruturante da sociedade brasileira, dos seus silenciamentos e das suas inúmeras mortes. No entanto, se “Euridíce, somos nós”, por assim dizer, ela também é profunda e especificamente um indivíduo – e aqui é preciso notar o trabalho de enorme precisão com que o diretor e a fotógrafa Heléne Louvart (de vários trabalhos com pessoas como Claire Denis, Jacques Doillon e Nicolas Klotz, por exemplo) buscam encontrar a distância exata para conseguirmos ao mesmo tempo inserir as personagens no entorno (a cidade e especialmente a natureza do Rio de Janeiro são personagens muito importantes) e estar muito próximos da pele e do olhar delas.

No entanto, se pelas quase duas horas de duração em que o filme está no passado ele consegue criar esse sentimento de partilha, é no entrecho final, em que ele pula de maneira repentina ao presente (numa elipse bastante corajosa e eficaz no seu efeito de choque), que A Vida Invisível… dá o seu passo mais forte. Não que a relação do filme com o presente não estivesse clara no aspecto temático ou de origens, mas simplesmente a corporificação da passagem do tempo e do peso da ausência criada pela mesma, a partir de uma presença absolutamente luminosa de Fernanda Montenegro, dão ao filme uma outra dimensão e peso. A maneira como se dedica a filmar o rosto de Fernanda (numa alusão direta e tocante a Central do Brasil) demonstra que Aïnouz tem claro que não existe maneira mais forte e eficaz de filmar o peso do passado do que pela força das marcas que ele deixa.

Claro que é essa a própria matéria sobre a qual se estrutura um filme como Nuestras Madres, que já abre com as imagens de um esqueleto sendo montado, como um quebra-cabeças, sobre uma mesa de laboratório. Trata-se, de novo, da superposição de uma história pessoal com a tragédia de um país e de um povo – no caso o da Guatemala marcada pelo regime militar e pela guerrilha. Apenas que nesse filme aqui só o presente é filmado – um presente em que tanto um jovem tenta encontrar o contato e o sentimento de finalização de uma ferida aberta quanto as pessoas que viveram os momentos na pele precisam sentir que seus testemunhos e todo o sofrimento vivido poderá ter algum sentido de continuidade. Como em muitos filmes que lidam de forma tão direta com uma situação histórica ainda bastante recente (os fatos a que o filme se refere são do começo dos anos 1980), existe um sentimento de que a ficção é usada como uma ferramenta de apoio com pouca autonomia. Ela atende a uma demanda do real, a uma demanda supracinematográfica inclusive, de ajudar a escrever e registrar uma história. Isso não impede de todo que o filme atinja eventuais momentos de força, dramática e visual, mas estabelece um pouco os limites do seu alcance. Colocar a História sobre a história permite ao filme cumprir um papel, mas talvez posicione o cinema num lugar secundário – o que é compreensível num país que mal teve chance de escrever sua própria história, que dirá filmá-la como mito.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


Leia também: