Praia do Futuro, de Karim Aïnouz (Brasil/Alemanha, 2014)

outubro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Raul Arthuso

As ruínas colossais
por Raul Arthuso

Dedicado a Nuno Ramos

Logo na primeira imagem de Praia do Futuro, duas motocicletas percorrem pequenas dunas em direção à praia, em meio a grandes hélices de usinas eólicas que dominam a paisagem em plano geral. Há um contraponto entre o movimento irregular das motocicletas e o eterno rodeio das grandes hélices: a energia vigorosa e moderna da máquina contrasta com o moroso giro das estruturas da usina. Colocadas em movimento pela força do vento, as hélices parecem resistir à energia da natureza, numa tendência maior ao repouso que à velocidade. Essa imagem, porém, passa despercebida diante da junto à música alta e a brevidade do momento, pois no instante seguinte, as motocicletas param na praia e os pilotos entram no mar. A câmera faz uma panorâmica em direção ao céu, deixando o mar na parte debaixo do quadro, e o título do filme domina a tela, revelando esta seqüência como um prólogo. Assim, como em O Céu de Suely (2006) e O Abismo Prateado (2011), a introdução de Praia de Futuro se dá também na praia. Porém, enquanto no filme de 2006 a textura de super-8 e a música pop carregavam o momento de nostalgia, o paraíso perdido, aqui a câmera aponta para a frente, o além-mar a perder de vista. Colocar essa introdução em perspectiva serve para apontar algo que ficará sensível no restante do filme: Praia do Futuro é como um ponto de fuga na obra de Karim Aïnouz. Isso não significa dizer que o filme seja especial, apenas atenta para um sentido de trajetória de procedimentos, temas, motivos e questões recorrentes aqui cristalizados.

Em seguida à introdução, o protagonista Donato (Wagner Moura) é apresentado como o salva-vidas da praia que resgata Konrad (Clemens Schick), um dos pilotos da motocicleta, mas perde o outro, que morre afogado. O encontro acidental Donato e Konrad deflagra uma mudança em suas vidas: Donato se muda para Berlim com o alemão, deixando sua vida e família no Ceará sem maiores explicações. Donato é, portanto, mais um personagem fraturado do cinema de Aïnouz, numa linhagem iniciada por Madame Satã, com ponto mais ilustre em Suely. São personagens aparentemente instáveis, desejosos de mudança, retratados no momento em que deixam uma vida para trás em busca de um outro lugar no mundo incerto. Hoje parece claro que a dramaturgia de Karim Aïnouz existe na dualidade entre a mudança e o abandono, com um eixo de personagens que partem em busca de uma nova vida (Hermila-Djalma-Donato), e outro dos abandonados (João-Violeta-Airton), numa dialética que se sustenta por uma elíptica representação da opacidade dessa mudança. Isso se dá pelos deslocamentos das personagens: a instabilidade dos pequenos trajetos de João Francisco (Lazaro Ramos) para tornar-se Madame Satã; o movimento pendular da personagem de Hermila Guedes entre Sul e Norte; o tour pelo Rio de Janeiro de Violeta (Alessandra Negrini) em O Abismo Prateado; a viagem transcendental de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, cuja dualidade está estampada no próprio título. O principal é como esse deslocamento físico mostra um trajeto da própria personalidade que deixa de ser alguém para ser outro, como João Francisco/Madame Satã; Hermila/Suely; Djalma-presença/Djalma-ausência; o narrador-necessidade/narrador-paixão. Essa conjunção de um deslocamento territorial com o desvelamento da opacidade de suas personagens tem sido o ideal do cinema de Aïnouz: uma busca por representar uma trajetória tanto territorial quanto existencial, física e psicológica, natural e cinematográfica.

Em Praia do Futuro, chega-se ao ponto máximo da disjunção desse ideal – morte anunciada desde de Viajo porque Preciso… . Na introdução do filme, a câmera aponta para o além-mar; posicionada no ponto de partida, mira o destino que não pode ser visto. Em vez de acompanhar um processo que tem o deslocamento como pedra de toque, Aïnouz estrutura seu filme em blocos – três momentos que delineiam uma espécie de antes, durante e depois da ida de Donato à Alemanha com Konrad. São momentos estanques, como pontos cardeais do abandono: um dado já previsto, confirmado e em seguida confrontado. Cada um dos blocos acompanha quase descritivamente o encontro de Donato com Konrad, sua estadia na Berlim onde decide ficar, e a chegada de Airton (Jesuíta Barbosa), irmão mais novo abandonado que aparece anos depois para reencontrar Donato. Entre um e outro grande evento, a elipse, a fenda, um oceano de possibilidades de trajetos escondidos como um salto no espaço, como um vôo que leva rápido ao destino, mas impede de se ver a paisagem por estar além das nuvens.

Trata-se, então, de um filme com uma contradição fundamental, de uma fábula que cria a opacidade e transformação de uma personagem ficcional que sua forma não acompanha. Praia do Futuro é um filme de imobilismo, tentando formular uma trajetória com ausência de trajeto. As personagens – suas sensações, aflições e traços psicológicos – já estão consolidadas quando viram presenciais. Isso se manifesta na encenação ortogonal do filme: a concentração se dá no centro do quadro, com elementos das bordas retornando para o meio. Ao invés de criar um jogo de possibilidades com seus limites, a câmera fixa puxa as ações e personagens para o centro. Nos poucos momentos de câmera se mexendo, como a discussão entre Donato e Konrad no parque durante o início de uma nevasca, a câmera na mão parece desconfortável e, em seu temperamento, esse plano resulta desajeitado no meio das composições tão programadas do restante do filme. Não existe um jogo extensivo com o fora de quadro, tornando o extracampo surpreendentemente insípido para uma ficção calcada na suposta opacidade das intenções do protagonista. Um bom exemplo está na seqüência em que Konrad e Donato dançam uma música pop no apartamento do alemãom no auge do romance, as saídas de quadro são programáticas, respeitam um código de encenação dessa situação quando a câmera permanece fixa, frontal à matéria do mundo. Os personagens se mexem, saem, mas logo voltam… criam um movimento que é mais escritura do que jogo. A fissura de Donato é a sua ficção em Praia do Futuro: o trajeto, a mudança, a transitoriedade e todas as sensações, climas e ritmos possíveis daí estão de fora; foi-lhe interditada sua própria crise. Se, em Viajo Por que Preciso…, existia um descompasso narrativo pelo qual o filme encontrava-se no contracampo da voz que tentava recompor um relato fraturado, o verdadeiro filme da ficção de Praia do Futuro naufragou no mar que separa seus momentos, relegado ao fora de quadro e elipses de um bloco narrativo a outro.

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Cabe aqui um parênteses: em sua crítica a O Abismo Prateado, Fábio Andrade aponta que “A maior contribuição de Karim Aïnouz ao cinema brasileiro parece estar na reanimação do realismo como possibilidade de expressão. Ele é, de certa maneira, figura inaugural de um novo realismo que, embora desejoso das pequenas epifanias, não mais se calca no esforço alegórico dominante no cinema brasileiro até aquele momento”. Concordo com a sinalização de um novo realismo, principalmente em oposição ao naturalismo “padrão Oscar”, obsessão da obra de profissionalismo que contaminou o chamado “Cinema da Retomada”. Por outro lado, mesmo os cineastas da Retomada, em sua busca de um grau zero naturalista da representação no cinema, já se afastavam da força alegórica do cinema moderno brasileiro. A particularidade do cinema de Karim Aïnouz é que a afirmação de Fábio Andrade é integralmente válida apenas para Madame Satã, único caso em que Aïnouz não lança mão da alegoria de forma ostensiva. O Céu de Suely, por exemplo, subsiste com uma alegoria do paraíso perdido colocada na introdução do filme, com a praia, o namorado, a canção pop e a textura da película super-8 criando um espaço nostálgico para onde Hermila tenta voltar no restante do filme. Nesse sentido, a trajetória de Hermila é uma descida ao inferno e sua troca de nome e personalidade não é apenas uma venda do corpo, mas uma purificação às avessas, um purgatório pelo sacrifício da pureza, marcando uma impossibilidade de voltar ao paraíso, mas possibilitando reconstituí-lo em novos termos. Viajo Porque Preciso… lança mão de diversas imagens alegóricas, a mais marcante delas o colchão largado no sertão, onde ninguém se deita, e que alegoriza a solidão física e psicológica do protagonista. A idéia mesma de um “abismo prateado”, que nomeia seu filme anterior, existe enquanto alegoria do abandonado – e não seria a essência da alegoria essa colagem de fragmentos representando uma idéia imprevista?

Em Praia do Futuro, Donato é identificado como um super-herói: a ação deflagradora do filme é o salvamento de Konrad na praia do futuro pelo protagonista. Fora isso, ele se relaciona com Airton pelo intermédio de apelidos de super-heróis. Mas, principalmente, as cartelas que nomeiam cada um dos blocos temporais do drama trazem a alegoria para primeiro plano, ao identificar a seqüência de ação dramática como etapas da existência desse “herói”. Assim, o protagonista e sua transformação seguem uma trilha determinada por uma alegoria, como se Donato fosse um herói recusando seu chamado e sua vocação para ser trazido de volta quando Airton, anos depois, vai buscá-lo em Berlim. É claro que se pode especular sobre o dedo do roteirista Felipe Bragança nesse ponto, já que, em seus filmes como diretor, ele lança mão de alegorias como mediação entre o gesto narrativo e a matéria do mundo – inclusive utilizando-se do super-herói em A Alegria (2010) e Claun (2012) mas, se a parceria entre Bragança e Aïnouz chega aqui no terceiro filme, parece mais sólido pensar que, de O Céu de Suely a Praia do Futuro, essa mediação de um imaginário alegórico como forma de poetização do drama e criação de outra camada ficcional na fábula é parte integrante do estilo de Aïnouz como cineasta.

A questão principal é que essa mediação em Praia do Futuro é extremamente tênue, funcionando mais como dado externo que parte orgânica da narrativa. É nesse sentido que a alegoria com super-heróis expõe aqui o mesmo problema com relação ao realismo apontada por Fábio Andrade em seu texto sobre O Abismo Prateado, pois a mediação e a evidência da costura narrativa dela enfraquecem o “disfarce” da ficção e o projeto de um realismo singelo cai por terra. O projeto artístico de Aïnouz sempre andou no fio da navalha, equilibrando seu tratamento da encenação com o tom das atuações, pois seu cinema, por mais alinhado ao cinema contemporâneo, sempre pendeu mais para o lado da grande estrutura, com parcerias de Walter Carvalho e Fátima Toledo. Praia do Futuro é o filme em que o tom parece o mais desajustado, com gestos, movimentações e situações dos corpos armados para transmitir a intenção da não-intenção. Não consigo lembrar de uma troca de olhares num café da manhã tão embaraçosa em sua tentativa de parecer uma manhã qualquer, mas contaminada por um gestual de atuação com intencionalidade da “verdade” quando a que se vê aqui – ao mesmo tempo em que os atores tentam escondê-la, a revelação das intenções é inevitável. É um passe de futebol telegrafado: a ficção se desmonta no descompasso de sua construção. A ficção, como um estado de embriaguez cuja cadência dos eventos existe no horizonte do possível, é minada pela própria narração, que vai se sobrepondo ao universo ficcional.

Essa medida é particularmente sensível no caso do cinema contemporâneo, no qual as amarras se configuram de outro jeito. Deslocamentos, fissuras, fronteiras, acidente, melancolia, opacidade do mundo são conceitos de um vocabulário crítico muito em voga para designar o que de melhor – e de pior – aconteceu no cinema mundial em grandes festivais ao longo dos anos 2000, e serve aqui porque Praia do Futuro segue uma carta de comportamento do cinema contemporâneo, alinhando-se principalmente ao cinema de Claire Denis: condução liqüefeita da narrativa e criação de um espaço de possibilidades onde se representa uma certa ambigüidade do mundo através das sensações e da aproximação com os corpos; planos que se aproximam dos corpos, recortando-os para criar um retrato “epidérmico” da cena; cenas de Donato extravasando sua tensão na balada de música eletrônica, após decidir morar em Berlim (algo que se repete com Airton momentos depois!); o momento das personagens dançando em foro íntimo uma música pop do passado que espirra seus sentimentos na tela; o personagem sozinho andando em círculos com a moto num espaço vazio; a fatídica imagem do corpo na água como um “instante decisivo”…

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Quantas vezes esses motivos já não foram articulados no cinema recente? Inclusive o próprio Karim Aïnouz, em O Abismo Prateado, já experimentara parte dessas ferramentas, fazendo daquele filme algo como um esboço para Praia do Futuro. Aqui, o manejo da “linguagem do cinema contemporâneo” no domínio do plano se mostra incapaz de lidar com toda a ação: a montagem que abre frestas; uma temporalidade outra que não a da eficiência narrativa; o retrato do corpo como formas naturais; a montagem em elipses; a maneira soft dos atores com seu banho de melancolia como tônica. Mais que uma aproximação ética com o cinema de Claire Denis, uma releitura ou um retrabalho de pesquisa formal, o desfile de tiques Praia do Futuro denota um recalque, a estandardização da estética de fluxo enquanto código.

Isso nos leva de novo à primeira imagem. Pois, como Luiz Carlos Oliveira Júnior escreve sobre a estética de fluxo, ela “trabalha prioritariamente com sensações puras, com atmosferas, com a hipnose da experiência bruta dos significantes materiais. (…) O importante não é fixar e definir as coisas, mas gerar fluidez, movimento, continuidade, colocar em circulação as matérias e as formas, as energias e as forças”. E completa: “seria, antes, uma dissolução das formas, um transbordamento das matérias, uma profusão sensorial que parece em sintonia com um estado vaporoso do mundo, com uma nova realidade em que as relações de espaço-tempo se acham em processo de interpenetração e confusão”. Mas em Praia do Futuro tudo tende ao imóvel: a hélice da usina que parece cansada de seu movimento; o trem que irrompe a ponte logo da abertura do segundo bloco e passa morosamente como se algo o retraísse; os peixes no grande aquário, numa cena em que todo o movimento parece em câmera lenta. O ar, inicialmente puro movimento que tenta com dificuldades por as grandes hélices para funcionar, termina o filme em suspensão, denso, pesado, carregando a imagem na forma de neblina que vai engolir no horizonte a motocicleta, elemento da velocidade que briga para encontrar seu espaço dentro do filme.

Em Praia do Futuro, a estética de fluxo é consolidada, é um monumento a impedir o filme de ser construído a partir do instrumental contemporâneo como uma narrativa propriamente de fluxo. As idéias de experiência e processo, tão caras ao cinema contemporâneos, dão lugar ao modo de usar (destino inevitável das novidades?). A ficção cheia de mistérios e ambigüidades do cinema contemporâneo é automatizada na clareza da articulação da postura, na construção das cadências, buracos, climas e imperfeições de um estilo. A melancolia de Donato, pontuando o tom geral do filme, perde sua faceta de opacidade dos verdadeiros sentimentos da personagem; quanto mais sua opacidade se carrega como forma de expressão, mais claro fica seu caráter de recurso narrativo e mais apagado o personagem se torna. Wagner Moura faz possivelmente seu trabalho mais pobre, em que o tom é tônica e as nuances vão se desfazendo pouco a pouco, deixadas pelas cenas. Praia do Futuro, apesar do nome remetendo ao Ceará, é frio como Berlim, pois sua linguagem é a de importação. O ideal do cinema contemporâneo de representação da ambigüidade do mundo, indo direto à sua matéria sensível em estado bruto, desaparece por debaixo camadas de concreto armado da convenção. É o cinema de fluxo sem fluxo, destino para onde sempre apontou o cinema de Aïnouz: é o narrador de Viajo porque Preciso… que nunca ganha o filme, permanecendo na falsa primeira pessoa do extracampo; é Violeta que não entra no avião para uma nova vida; mas, principalmente, é João Francisco que perambula, briga e luta para tornar-se Madame Satã, mas termina com o mesmo plano frontal, como uma fotografia de documento, do início do filme, o plano que nega a transformação desejada de sua condição, como um deslocamento em círculos retornando para o mesmo lugar.

O mar, deixado pela panorâmica inicial de Praia do Futuro que apontava para outro tempo, se retrai na praia alemã. Nada resta: junto à decadência das ruínas colossais, as areias solitárias e inacabáveis estendem-se à distância.

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