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Projeções do real

Não é preciso nenhuma grande interpretação crítica, até porque tal fato está falado com todas as letras no testemunho de um dos entrevistados com maior acesso ao personagem-título de Diego Maradona: na combinação desses dois nomes havia na verdade duas pessoas diferentes com quem os próximos a ele precisavam se relacionar. E se não se pode dizer que a ideia dessa necessária separação entre “Diego” e “Maradona” não chegue a ser uma novidade (afinal, Pelé – sempre ele assombrando narrativas de Maradona – já falava sobre essa identidade e a de “Edson”), o que o filme retrata mais do que tudo é como o momento histórico da passagem dos anos 1980 para os 90 em que Maradona atinge maior penetração mundial é justamente aquele em que a cultura das celebridades começa a se fortalecer de maneira mais radical, reforçando a que ponto essa fratura identitária se impõe. E o mais interessante no filme, sem nenhuma dúvida, é a maneira como consegue usar um material de arquivo inédito, realizado por encomenda do próprio jogador e sua equipe na época da sua ida para a Itália, para conseguir capturar como a construção do mito Maradona era vivida de maneira física por Diego e aqueles à sua volta.

De fato, a história de Diego Maradona é puro teatro, trágico. Fazer um filme sobre ela é lidar com tamanha quantidade de entrechos dramáticos possíveis e construções simbólicas acerca de uma série de coisas (a alma argentina, o lugar do futebol no imaginário mundial, a narrativa de ascensão e queda dos mitos, etc) que o fato do filme resultar tocante não chega a ser um elogio – aliás, muito pelo contrário. A impressão que dá é que Asif Kapadia, já realizador dos filmes (Ayrton) Senna e Amy (Winehouse), usa de maneira “hiper profissional” todo um arsenal de recursos estéticos inflados (trilha sonora, ruídos de sala sobre imagens de arquivo, entrevistas contextualizadoras), o que mais destitui o filme de poder do que exatamente ajuda a contar essa história. Não por acaso seu grande momento é aquele em que o filme literalmente faz silêncio e se foca em apenas um plano do rosto de Maradona por quase um minuto: ali, ele reconhece que o que realmente importa precisa de muito pouco, e ao mesmo tempo que a maneira solene como coloca em cena indica sua compreensão disso, tudo o que há em volta parece ainda mais assumir a condição “muito barulho”. É preciso reconhecer que Maradona não precisa do cinema, no sentido das suas ferramentas tradicionais: ele é puro cinema, no campo e na vida – e se Kapadia e sua estrutura excessiva não conseguem retirar do filme o interesse que o personagem impõe (até porque o material a que tem acesso é efetivamente impressionante), é verdade que impede que ele atinja o nível de potência que a narrativa desse rosto já nos propõe de saída, e naquele plano impressionante.

Curiosamente, no mesmo dia se projetou no festival um outro documentário cujo título se resume ao nome da sua protagonista: Indianara, primeira produção brasileira a ser exibida na mostra ACID, uma seleção paralela proposta por uma associação de cineastas franceses a partir de 1993 e que só recentemente começou a exibir alguns filmes estrangeiros. Assim como no caso do filme acerca de Maradona, fica claro que há duas formas de se aproximar da personagem Indianara, e que também tem a ver com a dimensão pessoal e o símbolo. Afinal, embora por óbvio ela não seja uma figura mitológica no imaginário mundial, Indianara também representa algo bem além de si mesma, sendo uma das mais dedicadas e presentes ativistas brasileiras das causas LGBT, especificamente no que tange as pessoas trans. O filme de Aude Chevalier-Beaumel e Marcelo Barbosa está plenamente consciente dessa dupla dimensão tanto que, efetivamente, se divide quase sempre entre dois espaços que representam as distintas instâncias: a casa de Indianara, onde vive com seu companheiro (e, logo, marido); e o espaço que ajuda a gerir e que representa uma espécie de abrigo para uma parte da marginalizada comunidade trans carioca.

Como em Diego Maradona, o acesso a uma intimidade empresta ao filme seus momentos de maior força. No entanto, e isso é distinção importante, esse material aqui é todo capturado no calor do presente pela equipe do filme – só são usados arquivos numa sequência bem específica que mais dá pistas do que explica a trajetória anterior de Indianara. O curioso é que, embora um material seja do passado e outro do presente, ambos acabam servindo a mesma função do condensado de uma existência em relação a circunstâncias maiores: para Maradona, os anos da chegada a Nápoles, onde se dá sua ascensão e queda, condensam toda sua trajetória (e possivelmente o filme seria mais forte se se resumisse a ficar ali); já para Indianara, o período que a equipe a acompanha também será marcante de eventos pessoais (casamento, impedimento de candidatar-se em eleição, expulsão do abrigo) e nacionais (assassinato de Marielle Franco, eleição de Jair Bolsonaro). Assim, se dá uma das mágicas do documentário: o real se impõe para além dos planos, e aquele retrato de Indianara passa a significar algo ainda maior do que ela. Dessa maneira, um filme que começa no enterro de uma pessoa termina acompanhando, na prática, o velório por um projeto de país.

Numa outra dessas coincidências fortes, um dia antes o festival havia exibido outro filme onde boa parte da narrativa se desenvolve ao redor de uma comunidade de pessoas trans buscando o suporte e a afirmação através de uma existência coletiva. Trata-se de Port Authority, primeiro longa de ficção da documentarista Danielle Lessovitz, filme que nasce do interesse da realizadora pela chamada “cena kiki”, onde parte da comunidade queer realiza concursos de uma mistura de dança e passarela de modelo. Lessovitz decide chegar nesse universo pelos olhos de um personagem que chega a Nova York e se sente perdido e rejeitado por esta, ainda que seja um jovem branco e heterossexual. Ali ele termina encontrando uma espécie de espelho na “cena kiki” à qual vai sendo incorporado lentamente através de uma relação pessoal com uma mulher trans.

Lessovitz consegue criar uma narrativa de (inesperado) espelhamento e (esperada) retração entre os dois universos, a partir desse casal, num movimento pela tradicional estrutura Romeu e Julieta do encontro que causa rupturas com seus entornos. Mas o grande problema do filme é que a química essencial ao casal principal nunca chega a nos fazer acreditar de todo nessa sua atração mútua, onde o jogo bastante contido dos dois atores cria uma distância difícil de transpor. De fato, a impressão que fica é que o interesse de Lessovitz pelos universos onde insere os personagens (não apenas a cena kiki, mas também o cotidiano em abrigos para sem-tetos em Nova York) é maior do que por urdir os detalhes da ficção que tem em mãos. Como resultado disso, a verdade é que falta carne (cinematográfica) à relação entre Wye e Paul (o casal principal) – algo que, por exemplo, Indianara e seu companheiro Mauricio conseguem construir com duas ou três cenas de troca cotidiana no documentário. O real parece se impôr e termina permitindo que fabulemos nós toda uma relação entre um casal que não chegamos a ver em tela pela sua simples presença, enquanto no outro a junção pela ficção resulta algo plana, pouco consistente, e a tentativa de fabular pouco nos permite acreditar naquela verdade. Se é verdade que os delicados laços entre fantasia, mito e verdade atravessam o cinema, independente dos filmes se identificarem como documentários ou ficções, a capacidade de nos fazer ir além do que vemos na tela é o que permite, de uma forma ou de outra, a penetração maior de uma obra no nosso imaginário. E por vezes é fascinante ver como o que seria um puro registro direto pode fazer fantasiar mais do que as narrativas fabuladas.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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