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“I am a passenger”

O hino à falta de controle sobre o destino proposto por Iggy Pop abre a primeira cena de La Gomera, novo filme do romeno Corneliu Porumboiu – e seu primeiro a ser exibido na competição de Cannes. A música acompanha a chegada do policial Cristi na ilha espanhola que dá nome ao filme: ali ele é um estranho e será transportado por uma história sobre cujas rédeas, logo vamos percebendo, não tem nenhum controle. A forma como o filme se espalha pelo tempo e pelo espaço ao longo da duração vai reforçando a mensagem que os versos de Pop trazem: nós como espectadores também estamos nas mãos de Porumboiu, que costura uma trama cujas idas e vindas espelham os vários papeis e ilusões que cada personagem parece encenar para os outros. A odisseia de Cristi estabelece um diálogo inesperado (por serem dois cineastas com trabalhos tão diferentes) entre La Gomera e O Intruso, de Claire Denis: uma mesma sensação constante de que tudo pode acontecer na próxima cena atravessa os dois filmes, ambos estruturados com a liberdade máxima que a ficção cinematográfica pode se permitir.

Se o filme reforça muitas das características do cinema de Porumboiu (como a preciosa escritura de diálogos e um humor bastante peculiar e amargo), ele o faz numa narrativa que é, ao mesmo tempo, seu filme de maior “tamanho” no sentido mais prático (leia-se aqui orçamento e amplitude geográfica), mas também de ambição de linguagem, com enorme complexidade visual, sonora e narrativa. De fato, La Gomera é um “filme de cinema” em vários sentidos do termo, inclusive nas suas referências a vários gêneros, mas tendo como diálogo principal o “filme noir” na escola de À Beira do Abismo. Assim como no clássico de Howard Hawks, dificilmente o espectador pode, ao final da projeção, dizer que “entendeu” com clareza o que realmente aconteceu durante a duração do filme, pelo menos no sentido narrativo mais direto. Isso acontece porque, como na língua secreta feita de assobios que é típica dessa ilha em que o filme começa (e da qual herda o nome), as mensagens passadas em cada conversa entre os personagens parece sempre cifrada. De fato, ninguém em nenhum momento de La Gomera fala toda a verdade, logo nada que se passa na tela pode ser totalmente confiado e, por consequência, saber o que realmente está em jogo em cada cena é sempre muito difícil.

Essa opacidade inerente às relações humanas (logo ao cinema) está tematizada desde a genial cena logo no começo em que acompanhamos um verdadeiro balé de ilusões, quando Cristi e a femme fatale Gilda (nome nada casual, claro) encenam fisicamente uma relação amorosa que não existe de fato, apenas porque sabem que há câmeras de segurança seguindo cada um dos seus movimentos. Nessa dupla encenação (dos personagens para a câmera dos policiais que os investigam e de Porumboiu para nós) está condensado o interesse do filme: assim como no filme de Hawks, tudo que importa de verdade a La Gomera está ali naquela primeira cena de encontro, completamente encenado pelos personagens. Em meio à mentira mais pura se estabelece o laço humano real que vai carregar todo o entrecho até a majestosa sequência final em que o filme vai, de maneira bastante aleatória, parar em Cingapura.

Esse destino final na aparentemente aleatória jornada do personagem (“I am a passenger”…) se dá não por alguma necessidade da história, mas sim porque o espetáculo de luzes e sons absolutamente artificial que se passa em Gardens by the Bay, atração com um tanto de absurdo e de sonho dessa ilha-cidade-estado que é um pouco “terra de ninguém”, no fundo pode ser um paralelo perfeito para aquilo que o cinema pode ser. La Gomera parece dizer, portanto, que seus personagens terminam sua narrativa ali exatamente porque o cinema permite tudo, e não precisa de nenhuma justificativa para existir além do encanto que as imagens nos causam.

Inegavelmente, essa ideia do cinema como produtor de imagens com valor quase autônomo, sobre as quais podemos projetar narrativas se assim desejarmos, sempre foi uma parte importante da natureza da obra do cineasta espanhol Albert Serra. Pois curiosamente, enquanto o eminentemente “realista” Porumboiu faz sua obra mais etérea em La Gomera, Serra parece estar colocando o seu cinema cada vez mais no campo do “real” – e aqui as aspas são mais do que devidas, porque claro que real para Serra se dá num campo ainda bastante longe do que este assume na narrativa cinematográfica mais clássica. Porém, mais fortemente desde seu A Morte de Luis XIV, o peso do contato físico dos corpos humanos, da passagem do tempo sobre eles, da presença da morte, tudo isso vem dando ao cinema de Serra um ancoramento no real um tanto inesperado – e seu novo filme, Liberté, representa um passo além nesse processo. Em sua cena inicial, por exemplo, dois personagens conversam e colocam de maneira bem clara e exposta quem eles são, onde e porque estão – um tipo de exposição dramática que seria altamente improvável de ver nos primeiros filmes de Serra. De fato, entendemos logo que os personagens de Liberté se aproximam por caminhos estranhos dos de Porumboiu por seu estado absoluto de transitoriedade: expulsos de um lugar, procurando um outro para se instalar, vivem o agora sem saber exatamente onde vão.

No entanto, a função a cumprir por essa “cena de exposição” não é a de exatamente explicar algo, mas sim a de “libertar” (com trocadilho, com o nome e tema do filme): afinal, entender as condições práticas pelas quais aqueles corpos chegaram naquele lugar nos ajuda a nos relacionarmos com eles de maneira mais frontal, e uma vez feito isso o filme pode passar o resto de seus 130 minutos sem se preocupar mais com qualquer coisa que tenha a ver com encadeamento narrativo. Não há, por isso, espaço para outro tipo de confusão, pois entender o contexto histórico da localização daquele grupo de pessoas no espaço indeterminado geograficamente onde o filme se passar é decisivo para este processo de “libertar os corpos”, que é, afinal, o principal tema e objeto de interesse de Serra. O que acompanharemos, então, será aí sim um longo mergulho visual e sonoro na experiência daquele grupo de libertinos isolados e perseguidos: uma descrição atenta e precisa de seus rituais, de suas práticas, de seu cotidiano, buscando construir não apenas uma relação de entendimento racional do seu movimento, mas um entendimento efetivamente sensorial do que pleiteavam como experiência do mundo.

É nisso que Liberté vai se revelar bastante impressionante: trabalhando pela lógica da acumulação, muito mais do que do encadeamento, o filme nos convida a passar uma noite no espaço isolado dessa floresta onde um grupo de homens e mulheres parece viver (enquanto outros parecem por ali passar). Há, claro, uma contradição do termo “liberdade” (para além de sua relação com a libertinagem, que é o que o filme quer discutir): embora estejam “ao ar livre”, os personagens são também prisioneiros daquele espaço, impedidos do contato com a sociedade “civilizada”, pagando o preço por escolher viver de acordo com suas taras e pulsões. A partir daí, o filme vai flertar com várias maneiras de tentar se aproximar dessa experiência de mundo, que não por acaso muitas vezes precisa flertar, por exemplo, com a pornografia. Talvez, inclusive, essa seja a grande questão que o filme levanta em termos de cinema: o quanto a pulsão escópica que leva a filmar (e assistir um filme sobre) o desejo e o sexo tem de espelho com a própria experiência libertina (e não por acaso vemos, no filme, como muito do que eles vivenciam se refere não só à questão do toque e da exploração física dos corpos, mas principalmente questão de espetáculo visual, de olhar).

Ao mesmo tempo em que encena o desejo e a tara, vistos de frente, como uma espécie de “floresta escura” extrema do comportamento humano, Serra aproveita para encenar um filme de época no qual resta apenas a fantasia, no sentido mais estrito: como tudo se passa na floresta, sem nenhuma referência à civilização, podemos imaginar o filme dotado de uma atemporalidade onde, quem sabe, aquelas roupas e maquiagens e adereços podem ser apenas mais uma tara, talvez de um grupo de pessoas contemporâneas que busca reviver e reencenar algo vivido no passado. Sim, porque aqui é onde os filmes tão diferentes de Porumboiu e Serra se aproximam: não importa tanto a eles o onde nem o quando (nos sentidos históricos ou geográficos mais concretos), o que importa mesmo é o poder do cinema de nos fazer acreditar nessas projeções e não conseguir desviar nossos olhos (e ouvidos) dos universos que elas criam.


Eduardo Valente é cineasta, crítico e curador de cinema. Dirigiu quatro filmes, foi editor das revistas de crítica Contracampo (1998-2005) e Cinética (2006-2011). Entre 2011 e 2016 trabalhou como Assessor Internacional da ANCINE. Fundador da Semana dos Realizadores (2009), foi programador para vários festivais do Brasil. Atualmente é parte da equipe de curadoria do Olhar de Cinema e delegado para o Brasil do Festival de Berlim.


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